No terceiro filme da trilogia de Hannibal, há a fantástica cena em que ele come um cérebro enquanto o que está sendo devorado não só está vivo como também participa, comendo alguns pedacinhos, enquanto ainda pode permanecer, sob sedativos, acordado e, no caso, eufórico. Apesar de ficção, o que está naquela aquela cena é, hoje, perfeitamente possível de ser vivida em situação real. De fato, chegamos ao ponto de termos quem consegue não só cortar um cérebro de modo preciso, e também temos medicamentos que, cada vez mais, atingem partes do cérebro ativando funções cerebrais … êpa! Funções cerebrais ou funções mentais? O que devo dizer? Perdemos a barreira entre uma coisa e outra?
Donald Davidson é o filósofo mais atual quanto ao enfrentamento dessa questão, a da termos ou não barreira entre o corporal e o espiritual, o cerebral e o mental. É por este assunto que começaremos nossa exposição. Mas antes, dou algumas informações gerais sobre esse fantástico filósofo.
Davidson é uma espécie de “filósofo de filósofos”. Seus textos requisitam do leitor alguma familiaridade prévia com aspectos técnicos da filosofia analítica. Todavia, não muito. O inglês claro e conciso de Davidson ajuda o entendimento, e com algum tirocínio acadêmico qualquer bom leitor de humanidades é capaz de seguir o filósofo.
A obra de Davidson pode ser dividida em quatro partes: teoria da ação, teoria da interpretação, discussão sobre a articulação entre ambas e tangenciando alguns problemas clássicos da filosofia, como o do ceticismo e do perspectivo, por exemplo; por fim, a discussão mais avançada sobre filosofia da linguagem a partir de questões específicas de teoria semântica.
Davidson formou uma escola de pensamento filosófico. Mas há praticamente dois tipos de Donald Davidson, quando olhamos os comentadores. Um grupo tende a tornar Davidson um autor que só poderia ser lido com instrumentos da lógica. Outro grupo vê Davidson como um filósofo não tão distante de pensadores que não colocam linguagens formais em excesso para a investigação que promovem e para a divulgação do que fazem. Fico entre os segundos, como os filósofos Richard Rory e Bjorn Ramberg.
A idéia básica de Davidson é a de que podemos seguir – e radicalizar – a filosofia de Quine no quesito a respeito da “indeterminabilidade da tradução” (no limite e resumindo ao máximo: a tradução realmente não existe; ou, nietzschianamente: temos só versões), sem que isso signifique acreditar que não nos entendemos ou que a linguagem é algo que nos engana e que, no limite, não nos possibilita uma comunicação efetiva e uma descrição do mundo. Na resposta a essa sua própria radicalização, Davidson traça uma filosofia descritiva, um modo não metafísico de construir uma espécie de antropologia filosófica, isto é, uma forma de dizer como o homem age, fala e pensa.
Uma parte dessa antropologia filosófica está exposta na filosofia da mente de Davidson. E é sobre esse tópico que versa este artigo, construído em especial para leigos em filosofia e com interesses no “campo psi”.
2. Cérebro e Mente
Os pensamentos são fenômenos mentais. Não são fenômenos físicos, pois não ocupam espaço. O corpo é alguma coisa do âmbito do que denominamos de físico. O cérebro é algo físico que fica na cabeça, faz parte do corpo. A mente depende do cérebro, pois não funcionaria sem ele, ou seja, não teríamos pensamentos e sentimentos sem o cérebro. Deve haver algum modo de ligação, “dentro de nós”, provavelmente no nosso cérebro, entre o que não é físico e não ocupa espaço – os nossos pensamentos – e o que é físico e ocupa espaço, ou seja, nossos neurônios que, por sua vez, se comunicam com o resto do nosso corpo por meio de nosso sistema nervoso.
Isto que resumi em um parágrafo acima, em linguagem propositalmente simples, é o que a maioria das pessoas – inclusive alguns filósofos e médicos – sabem a respeito do campo chamado atualmente de “filosofia da mente”. É pouco? Bem, é mais ou menos o que Descartes sabia, no século XVII. Assim, quem sabe isso (ou só isso) tem pela frente o mesmo problema que Descartes enfrentou.
Qual problema?
Se o mundo mental não ocupa espaço e não segue as mesmas regras que o mundo físico obedece, então como que falamos do relacionamento entre “nossa psicologia” e “nosso corpo”? Ou seja: como que aquilo que não é físico, que é da ordem do mental, pode interagir com aquilo que é corporal? Como que uma crença ou um desejo criam movimentos no meu corpo? Esses movimentos, eu sei que são provocados por crenças e desejos, mas, às vezes, penso também que há movimentos que não identifico como relacionados com minhas crenças e meus desejos e, no entanto, eles acontecem – e eu claramente digo que eles também são movimentos ou “efeitos” da minha “vida psíquica” sobre meu corpo. Como que o não-físico se relaciona com o físico?
A idéia de Descartes para explicar isso foi engenhosa. Ele disse que haveria em nosso corpo uma glândula – a “glândula pineal” – para fazer esse serviço. Ela seria como que uma diminuta usina de transformação de coisas materiais em coisas espirituais e vice versa. O que vinha do sangue como “espíritos animais”, um tipo de substância muito rarefeita, como que um “ar” bem fininho mesmo, responsável por nossos movimentos, entraria na glândula por pequeninos orifícios e faria vibrar esse lugar, e a vibração desse lugar, em um nível muito diminuto, mexeria com o campo não físico, não material – o mental ou psicológico. A resposta seguiria o mesmo caminho de volta. E assim, a res extensa se relacionaria com a res cogitans.
Não gostou da explicação? Ficou frustrado porque Descartes, mesmo sendo um homem de ciência, usou de uma pitada de magia para dizer o que acontecia lá dentro da glândula? Bem, o modelo de Descartes é mecânico, e se parece com alguns artefatos e engenhocas de seu tempo. Aliás, para descrever o coração e o sistema nervoso, ele também continuou nessa linha, fazendo do coração um tipo de chaleira – mas isso não vem ao caso. O que é importante notar é que a sua solução para a relação entre mente e corpo não é boa.
De Descartes até nós, uma série de filósofos e cientistas tentou explicar essa situação toda, isto é, essa conversa sobre “mente e cérebro”. Umas dessas pessoas foi o filósofo estadunidense Donald Davidson (1917-2003). O que Davidson propôs?
Como vários homens de ciência do século XX, Davidson também pode ser visto como um materialista contemporâneo. Mas há materialistas e materialistas. Há aqueles materialistas do século XIX, que simplesmente postulavam o materialismo. E há os materialistas do século XX, que tentaram resolver os problemas gerados pelo materialismo.
Em geral, um materialista ou, como dizemos hoje em dia, um fisicalista[1] é aquele que diz que o mundo todo é um só, natural; um mundo em que tudo que há não pode escapar das leis naturais e, portanto, da causalidade que governa todos os fenômenos. É uma posição razoável, não é? Creio firmemente que é uma posição razoável. Todavia, há objeções contra essa posição. Os que assim pensam, em geral chamam os materialistas de reducionistas.
Por que chamam os materialistas ou fisicalistas de reducionistas?
Bem, dizem que se somos materialistas somos também reducionistas, pois reduzimos todo o vocabulário que temos – que muitas vezes nos obriga a usar termos que só são apropriados para os fenômenos mentais – a vocabulários do âmbito do físico. E pior: acusam-nos de fazermos isso de modo ilegítimo, pois se eliminamos o vocabulário do âmbito do mental, ou seja, as palavras relativas a “típicos fenômenos mentais”, simplesmente não conseguimos dizer algo útil a respeito do fenômeno em questão. Assim, nosso reducionismo, na primeira esquina, se mostraria não só inútil, mas um erro grave – ele acabaria se mostrando irrealizável e, então, seria um tiro pela culatra: provaria que o mundo dos fenômenos naturais não pode ser unicamente físico. Como podemos responder a isso?
Durante muito tempo as respostas dos materialistas não foram boas. Todavia, os “papers” sucintos de Donald Davidson, a partir dos anos sessenta, são hoje uma parte substancialmente rica do que temos para fornecer boas respostas aos adversários do materialismo.
Anomalia do Mental
Como ser materialista e não ser reducionista? Davidson dá elementos para uma resposta para esta questão por meio de sua doutrina do monismo anômalo.
Com o termo “monismo”, Davidson indica que está em oposição ao dualismo. No campo das discussões metafísicas, portanto, ele é aquele que diz que ontologicamente não vivemos em um duplo mundo, mas em um único mundo. O mundo natural é o único mundo em que vivemos. Assim, estamos todos sob o campo causal. Não há, neste mundo, uma porta para outro mundo que seria este que, ontologicamente falando, mostra-se como a situação aqui em que comemos, namoramos, casamos, sentimos saudades, sentimos sede, temos remorso, sorrimos, trabalhamos, contamos piada, guerreamos, apanhamos pedras no chão, dirigimos nossos carros, resolvemos equações, caçamos borboletas, jogamos bolinha de gude, enfrentamos resfriados e lemos Henry James. Até aí, monismo. E o termo “anômalo”?
Onde está a anomalia?
Quando conversamos a respeito de tudo que fazemos e tudo isso que passamos, não usamos um vocabulário somente. Entre tantos vocabulários que usamos, dois deles são especiais. Um deles é gerado para falar de coisas que chamamos de físicas, materiais, e que falam de tais coisas em termos de regularidades que denominamos de leis – e que não raro expressamos por meio de equações matemáticas. Outro é utilizado para falarmos de eventos e situações que não podem ser descritas com leis matematizáveis. Este segundo vocabulário é o que contém palavras que melhor descrevem o que denominamos de mental. Neste segundo vocabulário usamos uma série de palavras que descrevem fenômenos, eventos e situações que não são não-naturais, nada possuem de mágico, mas não podem ser descritas com o mesmo vocabulário do físico porque aquele vocabulário se dá bem com a continuidade e a regularidade.
Inclusive, com esses dois vocabulários, estabelecemos ligações entre o que denominamos de físico e o que denominamos de psíquico ou mental, e tais relações são de ordem causal. Ou seja, quando conversamos, admitimos prontamente que o que denominamos de mental pode causar certos eventos que denominamos de físico e vice-versa. Todavia, também no caso dessas relações, não conseguimos estabelecer leis estritas. Não somos capazes de estabelecer leis nem para a psicologia nem para a psicofisiologia, ao menos não como aquelas leis estritas, do tipo das que Newton estabeleceu para a física, ou seja, as da gravitação universal.
Eis o resultado disso: os eventos descritos por este segundo vocabulário se apresentam, nessas descrições, como se fossem uma anomalia do mundo natural. Construímos o nosso entendimento do mundo natural com um vocabulário que privilegia regularidades em formas de leis, e eis que para determinado campo de eventos, não podemos continuar a falar de leis nesse mesmo sentido.
O que estamos dizendo, portanto, com Davidson, é que o mundo é um só ontologicamente falando, mas que conceitualmente falando ele é dual. Quando falamos desse mundo, usamos vocabulários que não são possíveis de serem reduzidos um ao outro sem a perda de entendimento do que queremos dizer. Saímos ganhando em clareza quando optamos por não querer ter um vocabulário só. Caso tivéssemos, por exemplo, de usar só o vocabulário do âmbito do físico para tudo, iríamos acabar atropelando o caráter não regular, anômalo, das descrições do campo mental e das relações entre ambos.
Satisfeito, meu leitor? Não? Como? Ah, já sei! Você é daqueles que dizem que se existem dois campos conceituais, dois vocabulários tão diferentes, então isso é a prova de que ontologicamente há dois reinos no mundo, distintos – um reino das coisas físicas e um reino dos eventos mentais. É isso que está pensando, não é?
Bem, mas qual a razão de você pensar dessa maneira? Qual a razão de só porque eu aplico determinados nomes a um conjunto de relações e outros determinados nomes a outro conjunto de relações, e não quero tentar traduzir termo a termo um no outro, eu poderia afirmar que estou autorizado a ver dois reinos diferentes como os da res extensa e da res cogitans? Como vê, estamos no mínimo empatados. Não pude convencer você do monismo anômalo, mas você não está autorizado a, a partir da linguagem que temos – e não temos como falar do mundo (e pensar) sem isso –, simplesmente ceder ao dualismo.
Todavia, Davidson não fica nisso. Ele não dá chance apenas do empate, ele pode fornecer mais instrumentos para o ponto seu ponto de vista.
3. Psicologia Popular
Há pessoas que não ligam nem um pouco para o reducionismo. Elas são aquilo que chamo de fisicalistas com esperança no futuro. São pessoas que olham para a cena do Hannibal comendo o cérebro e acham mais que natural que a ciência tenha chegado a tal nível de capacidade de dopar parte determinadas da cabeça. Ou seja, são pessoas que acreditam que um dia teremos uma única só linguagem que irá explicar, com o vocabulário da fisiologia, como fica a configuração de nossos neurônios (se é que é isso que deverá ser descrito) para cada crença ou desejo ou intenção ou sentimento. Você é como elas? Só será um fisicalista se puder ser legitimamente um reducionista? Quer ter uma linguagem única, a da fisiologia, quase como a da física, para contornar o anomalismo e, então, poder falar tudo que ocorre na interação entre nossa mente e nosso cérebro ou corpo e, assim, ter a capacidade de prever suas ações e a de outros?
Bem, caso você seja assim, vou tranqüilizá-lo: você já possui uma linguagem que permite previsibilidade. Sim, trata-se de uma sabedoria milenar, chamada de “psicologia popular” (folk psycology). É a maneira como conversamos a respeito de nossos comportamentos. Nessa nossa conversação, quando utilizamos bom senso, vamos contra certa tradição filosófica e identificamos em certas razões as causas de nossas ações, assim, podemos compreender nossas ações, nossos comportamentos e os de outros, e até mesmo traçar probabilidades para futuros comportamentos.
Algumas pessoas estão tão acostumadas a isso que, mesmo não sendo monistas-materialistas ou fisicalistas, não titubeiam em usar as razões como causas. Por isso que algumas delas, quando começam a estudar filosofia, e então lêem que causa é causa, e razão é razão, ficam confusas. Elas nunca pensaram em separar seriamente causas e razões, sempre utilizaram a “psicologia popular” para descrever o comportamento humano, e nunca prestaram atenção para o fato de que tal maneira de conversar articula o vocabulário do mental com o vocabulário do físico por meio de relações causais. Nunca estiveram preocupadas com o fato de que, no campo da filosofia – em especial na linha do empirismo –, essas conexões não poderiam ser levadas a sério. Não ter lido David Hume ou mesmo Immanuel Kant as ajudou a fazer a coisa certa!
A “psicologia popular” prevê ações investigando as crenças, desejos, medos, intenções etc. das pessoas. Portanto, trabalha com a idéia de que razões (em resumo: crenças e desejos) podem causar ações. Ora, é isso que Davidson afirma. Portanto, é contra toda uma tradição filosófica que ele se insurge.
4. Ações, razões e causas
Em 1963, em um “paper” que hoje é célebre, chamado “Actions, reasons and causes”, Davidson defendeu a tese de que razões são causas. Ou melhor: razões podem ser causas. Ora, como já disse, não é assim que muitos dos teóricos da conduta humana pensam.
Diferentemente de Davidson, parte substancial da tradição filosófica e dos estudos humanísticos modernos foi construída sobre a idéia de que razões são razões, e causas são causas. Em na nossa vida cotidiana, quando nos tornamos mais escolarizados, utilizamos esse modo de explicar eventos – certamente. Inclusive, Émile Durkheim quis nos ensinar que essa forma de narrativa, que ele via como a forma pela qual as ciências físicas e naturais explicavam o mundo, deveria valer também para o campo da atuação humana, como o caso da sociologia. Ora, Max Weber quis mostrar outra face disso tudo. Weber nos contou que determinados eventos só eram inteligíveis se, em vez de explicá-los, nós os compreendêssemos. Nessa acepção, até os termos se separaram: uma coisa seria explicar, outra seria o compreender. Ou seja, diferente da explicação, a compreensão deveria expor razões. Essas formas de descrição se colocaram distintas, e mantiveram a idéia de que o reino das “coisas físicas” é diferente do “reino do psíquico”.
Assim, na tradição dos estudos humanísticos ligados ao positivismo francês, caberia investigar os fatos sociais “como coisas”, isto é, como coisas físicas. Na tradição dos estudos humanísticos do historicismo alemão (o que levou a certo tipo de hermenêutica), caberia avançar sobre os acontecimentos sociais a partir das razões, ou seja, das intenções que teriam gerado o objeto em questão. Por conta disso os métodos variaram: Durkheim achou muito mais correto entender o suicídio por meio de métodos descritivos e estatísticos; Weber achou mais interessante compreender as religiões buscando as intenções para atingir fins, interiores a cada uma delas.
No campo da sociologia, metodologicamente isso pode ser ainda válido, é claro. Todavia, no campo filosófico e, portanto, no âmbito de uma concepção mais ampla, a explicação de uma ação, como Davidson a vê, dispensa essa distinção criada por positivistas e historicistas.
Essa divisão entre positivistas e historicistas se deve ao fato de que ambos os lados beberam em estudos neokantianos, e estes haviam seguido a idéia do empirismo britânico, em especial o afirmado pelo filósofo escocês David Hume. Foi ele quem estabeleceu que causalidade e relações lógicas não deveriam ser postas juntas. A idéia de Hume, e seu impasse, é relativamente simples de explicar.
Quando tenho uma bola de bilhar com velocidade e esta bate em outra bola de bilhar parada, esta segunda entra em movimento, e então posso dizer que foi o choque da primeira com a segunda que causou o movimento da segunda. O que impera aí é a causalidade, e não uma lógica. Do pondo de vista da lógica, teríamos a implicação das idéias de necessidade e universalidade, que na batida de uma bola com outra não temos – e não podemos invocar. Pois, enfim, ainda que o movimento da bola e a batida sigam leis naturais, matematizáveis, seria um erro acreditar de modo inequívoco que para um futuro choque sempre ocorreria o movimento da segunda bola. No âmbito dos acontecimentos do mundo a necessidade de caráter lógico não pode ser tomada como imperadora. Na natureza física, por mais que um evento ocorra nada me garante que eu possa usar algo como a dedução para dizer que ele sempre ocorrerá.
Vejamos agora uma relação psicológica. Meu amigo diz que cientistas estão garantindo um aumento da vida média em mais de dez anos caso eu tome uma determinada vitamina todas as manhãs. Eu acredito nisso. Além de acreditar, eu realmente desejo ter mais anos de vida e de modo saudável. Eis aí uma crença e um desejo juntos – uma razão, portanto. Pela lógica, o que se espera que eu faça? Só uma coisa: eu tomo todas as manhãs, religiosamente, essa vitamina. Ora, mas a ortodoxia humeana diria que causa é causa e razão é razão, e que não caberia ver nessa minha ação de tomar a vitamina uma conseqüência da minha crença de que a vitamina é boa para viver mais e do desejo de viver mais, pois o que tenho aí é uma razão. Uma razão não poderia ser causa de uma ação. Razões implicam em lógica, e não seria correto cruzar o que é do âmbito causal com o que é do âmbito lógico.
Todavia, para a psicologia popular e, é claro, para Davidson, nesse caso a razão está atuando como causa. Não é verdade? Não conseguimos ir contra a psicologia popular nesse caso, não é?
Davidson diz, então, que quando uma razão racionaliza uma ação, isto é, explica uma ação, ela é a “razão primária” daquela ação e, enfim, a causa da ação. Razões podem ser causas. Só admitindo isso podemos entender que é pela razão de acreditar nos poderes da vitamina e no desejo de viver mais que eu a tomo, e que ao dizer isso estou chamando essa razão do nome que ela realmente é, ou seja, a causa – a causa da ação de tomar a vitamina.
Você pode dizer: mas eu já achava isso, eu sempre imaginei que era assim, que eu podia explicar as coisas assim. Bem, se assim você fazia, era porque seguia a “psicologia popular” e, então, desprezava a filosofia. Bom para você, pois já estava acertando, segundo Davidson. Foi o que disse: não tendo lido Hume e Kant, seguiu no caminho correto (ao menos para Davidson, e para mim, é claro).
5. Objetividade e pensamento
Quebrada a barreira humeana entre razão e causa, o monismo anômalo fica mais fácil de ser aceito, não fica? Penso que sim. Todavia, há ainda um ponto que incomoda nessa doutrina. É que falta uma melhor explicação para essa impossibilidade não só de leis psicológicas, mas psicofisiológicas. Entendemos que não podemos encontrar leis nesse âmbito, mas o que é que faz isso não ser possível? Não acabaríamos voltando à idéia, presente na raiz do debate e da divisão entre historicistas e positivistas, de que quando lidamos com conceitos do campo físico temos um êxito quanto à objetividade e, enfim, quando lidamos com o pensamento, com o “psicológico”, então temos necessariamente um fracasso na objetividade?
A questão toda aqui, para Davidson, se resume no fato de que quando utilizamos conceitos para descrever eventos mentais eles são, de fato, diferentes dos conceitos que usamos para descrever eventos físicos. O mundo físico e os números que usamos para mensurá-lo são propriedades comuns, isto é, são elementos materiais e elementos abstratos que compartilhamos com nossos pares e podemos, então, estabelecer concordância sobre a relação que traçamos entre eles. Agora, isso não é idêntico à situação de quando temos de falar do que é mental, pois não faz sentido querermos buscar “concordância última”[2] para o que seriam os padrões de racionalidade, uma vez que, nesse caso, não podemos escapar de voltar aos nossos próprios padrões para interpretar outros. O que é isso? É um fracasso da objetividade no campo da análise do mundo psíquico?
Não! Apenas chegamos ao que seria o fim da conversa (ou o fim da investigação) em estágios diferentes, dependendo de se estamos conversando sobre relações entre números e coisas ou se estamos conversando sobre racionalidade e nós mesmos. Quando usamos conceitos físicos, por exemplo, colocamos um número para um evento, e se chegamos a um fim da conversa, paramos. O mesmo ocorre quando estabelecemos para uma pessoa ou grupos ou um evento mental conceitos que encerram a conversa. O problema de se achar que há um fracasso de objetividade no segundo caso se deve ao fato de que, não raro, imaginamos que poderíamos, nessa situação, ultrapassar nossas normas de racionalidade e, por detrás delas, despidas delas, interpretarmos a racionalidade alheia. A racionalidade alheia é medida pela nossa, e não há como abandonarmos a nossa. Assim, o que ocorre nada é senão ter de entender que as questões importantes em um campo conceitual (o dos conceitos físicos) terminam de modo diferente e em estágios diferentes das questões importantes de outro campo (o dos conceitos mentais). Essa é uma questão que se deve ao fato de a trama dos conceitos, as linguagens, serem diferentes em um caso e outro porque elas se montam como tramas lingüísticas diferentes a partir de suas próprias organizações internas.
Não podemos parar a comunicação e escapar dela para ver o que ocorre. A comunicação implica em interpretarmos o outro o tempo todo e, é claro, ininterruptamente a partir de nossos padrões imputados ao outro – assim o entendemos.
Mas o que Davidson chama de racionalidade? Ora, nada além da coerência – a adequação de um pensamento a outro. Para entender alguém é necessário encontrar a adequação de seus pensamentos primeiros com seus pensamentos segundos e assim por diante. É este o padrão que temos para nós, para nos dizermos racionais, e é isso que atribuímos ao outro, para vê-lo racional.
É interessante notar que, ao fazer todo esse trajeto, Davidson acaba por nos dar, também, o seu entendimento do que é o pensamento. E sua principal característica: crenças, intenções, dúvidas, ou seja, atitudes proposicionais que não aparecem isoladas, mas que só aparecem em redes que se ampliam. Assim, ao final, saímos com um presente de Davidson: temos também uma exposição sobre o que é o pensamento: atitudes proposicionais que se estabelecem de modo holístico, isto é, em rede. Tão holístico quanto a linguagem, pois quem usa uma palavra usa obrigatoriamente outra e mais outra e mais outra, e em enunciados e conexões. Eis aí a rede holística para a linguagem. Linguagem e pensamento, se não são iguais, são parentes muito próximos. E não cabe perguntar o que surgiu primeiro. Linguagem e pensamento emergem em mútuo apoio, concomitantemente.
6. Linguagem e pensamento
Chegando ao fim, aponto para as noções de linguagem e pensamento. Creio que você já percebeu que, se Davidson dá à linguagem e ao pensamento características bem semelhantes, isso é porque ambas comungam o que ele denomina de atitudes proposicionais. Isto é, uma crença associada a um desejo, sendo que esta última é diretamente atinente à crença em questão. Se eu tenho a crença de que “o café me mantém acordado” e o desejo “quero permanecer desperto”, tenho uma atitude proposicional. Ora, se isso é o conteúdo básico do que é o pensamento e a linguagem, então, ter pensamentos e linguagem depende de ser capaz de ter atitudes proposicionais. Bebês, termostatos e pets não tem qualquer linguagem.
Ter uma linguagem, isto é, saber estabelecer comunicação como adultos humanos, é algo que envolve não o conhecimento de palavras ou frases, por uma razão simples: não há o conhecimento de palavras ou frases isoladamente. A linguagem vem em pacotes. Quando alguém fala “branco” com conhecimento do que fala, fala também “parede” e “A parede é branca”, conhecendo o que é parede e o verbo ser etc. A linguagem se dá em forma holística.
Assim, não faz sentido perguntar quem veio primeiro, se a linguagem ou o pensamento. Se é que podemos falar em diferença entre um e outro, elas são mínimas, e surgem juntos, em apoio mútuo. Portanto, está implícito nessa posição de Davidson a sua proximidade com Wittgenstein, Dewey, Quine, Rorty e outros – e contra Chomsky – a respeito da discordância sobre a existência de uma “linguagem de pensamento” do tipo da “linguagem privada” ou “mentalês”. A linguagem é comunicação, nada mais ou menos que isso, e não poderíamos ter uma semântica e uma sintaxe inatas, antes do fenômeno comunicacional.
Teríamos de atribuir atitudes proposicionais a muito mais elementos e coisas na Terra, caso endossássemos a idéia de atribuir isso aos humanos quando nascem. Caso fizéssemos isso, estaríamos a menos de um passo de dizer que um cachorro não seria só capaz de obedecer “pegue o gato na árvore”, mas seria capaz de obedecer “pegue o gato na árvore” quando dizemos “pegue o animal na macieira”, mesmo que nunca tivéssemos pronunciado essa segunda frase para ele, e somente a primeira. É claro que não vamos fazer algo assim; não podemos acreditar nisso, e também não podemos nos fiar em Steven Pinker – a partir de Chomsky – e sair por aí crentes no “mentalês”.
PGJr. SP
©2008
[1] Há quem goste de manter o termo materialismo para falar no âmbito da metafísica, deixando o termo fisicalismo para o campo da filosofia da mente e da filosofia da ciência, ou da epistemologia. No caso aqui, os termos poderão ser intercambiáveis.
[2] Podemos conseguir “última concordância”, mas não “concordância última” – a segunda tem a conotação metafísica que implica no fundacionismo.
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