O livro Shanzhai – Descontrução em chinês (Vozes, 2023) traz uma boa discussão sobre o tema da “cópia e original”. A tese básica é de que os chineses, e boa parte dos orientais, não validam como nós, cópia e original, segundo juízos de valor em que o segundo estaria no pódio e o primeiro no lixo. O filósofo germano-coreano, Byung-Chul Han, com esse novo livro, mostra como que a arte da cópia, da imitação, é primordial na cultura chinesa, e dá até exemplos de artistas do Ocidente que também a praticaram. O livro leva um subtítulo que evoca a palavra desconstrução, e ela é usada aqui corretamente. Desconstrução, como ela apareceu em Derrida, tem a ver com os espaços de liberdade. Desconstruir não é destruir, nem construir versões aleatórias, mas é ocupar o espaço de liberdade que existe até mesmo nos textos ou obras mais consagradas, e isso por uma faculdade inerente à nossa linguagem. A linguagem humana é um campo de semântica que permite e até clama pela “outra leitura”.
Han vai da arte, onde o grande mestre é grande mestre não pela originalidade (em sentido ocidental), mas muitas vezes pela originalidade em ser fidelíssimo a uma obra que ele copia, até chegar às fábricas chinesas de produtos que são cópias, e que se tornam marcas famosas exatamente por serem cópias. No mundo chinês, segundo Han, o que é cópia não é o que é a marca “Tabajara” ou a marca “Do Paraguai” entre nós. Trata-se da cópia que é cópia e, sendo cópia, pode prometer algo a mais. E isso no sentido do prazer ou da utilidade. Também no sentido do que vale ser chamado de humano. O chinês teria a desconstrução como inerente à sua cultura. Han termina apoteoticamente: o marxismo chinês, exatamente por estar dentro do espírito de fluxo, podia mesmo gerar simbioses como aquelas que os chineses hoje assumem: a doutrina do Partido Comunista é, segundo eles, marxismo. Nós não acreditamos nisso, mas eles parecem acreditar. Copiar é reproduzir igual, mas é também criar na reprodução igual, e disso pode-se gerar uma cópia que é mais perfeita que o original.
É interessante que esse tema tenha sido levantado por Byung Chul Han. Exatamente por ele ter tratado, em outros livros, insistentemente, do fenômeno da internet e da questão da profusão de imagens, que é a principal mediação entre nós atualmente. Em alguns de seus livros, apesar dele explicar bem, às vezes poderíamos ter a impressão de uma certa busca pelo que não é fluído, pelo mundo das coisas que não mudam. Agora, nesse livro, a fluidez é elogiada.
Mas, não deveríamos nos enganar quanto aos livros anteriores. A questão da internet, para Byung-Chul Han, não se resume ao problema da existência de proliferação de imagem, de cópias, de uso de Inteligência Artificial. O problema está no modo que as imagens se fazem, como dados que proliferam o regime de informação, em detrimento do regime de conhecimento e saber. Dados não são conhecimento. Computadores e velocidade de informação não geram conhecimento e ações moralmente melhores. Esse é o drama dos livros de Han.
Nesse sentido, a preocupação de Han, que vem, entre outras coisas, de certos insights que ele encontrou em Baudrillard, mutatis mutandis também se faz presente nos meus escritos. A realidade é realidade, entre nós, por responsabilidade dos dos apps das plataformas de internet – no nosso “capitalismo de plataforma” – e, portanto, somente se temos diante de nós a hiper realidade. Baudrillard havia falado sobre isso: o simulacro que se faz real exatamente por ser simulacro e deixar claro que é simulacro. Declaradamente simulacro é o que se exige para ser real. A proliferação de imagens enquanto dados cede a esse destino: o que é mais real é aquilo que desperta exageros no real. A hiper realidade é realidade aumentada, a ponto de ser desfigurada, inclusive. Vejamos como isso se dá: por um dado aleatório qualquer, surge por aí uma Angelina Jolie, e eis que uma bela moça é aquela que tem lábios carnudos. Vira moda. De moda passa a ser imagem de informação. Passa a ser o dado do que é humano e do que não é. Eis que os apps tornam mais e mais carnudos os lábios de todas as moças, e até que faz isso com os objetos que podem se parecer com lábios. Carnudo é pop! Mas o processo não termina nisso. Em dado momento, essas imagens, postas como dados do que é humano, dão parâmetros para todo cirurgião plástico, e eis que a imagem da internet aparece na sua cama – é sua namorada ou esposa, mas ela não está mais bonita do que antes, apenas está mais extravagante. Ela é real enquanto hiper real, ela é de carne e osso e silicone, e você, então, a esquece na cama e se levanta para buscar o celular. Pois, de fato, você procura o que está na tela do celular. Como que ela saiu da tela? O tesão era tê-la na bidimensionalidade e disponibilidade do touch da tela!
Esse drama é, na minha leitura, casável com o tema do semiocapitalismo. Trata-se do capitalismo que utiliza inerentemente a internet e, então, coloca toda a linguagem humana, toda a ação humana, como recebendo uma inflação semiótica e uma deflação semântica. Nada há para interpretar. Pois na linguagem de máquina, exigida de nós para nos relacionarmos com a máquina e entre nós, o importante é identificar, não compreender. O semiocapitalismo é um regime que produz a subjetividade maquínica. E esta, por ser uma subjetividade semiotizada, está muito propensa a ampliar seu gosto pela profusão de imagens. As imagens do hiper real. Eis que a própria pessoa humana precisa se fazer como o hiper real da imagem da infosfera para se achar viva.
Em um mundo como o mundo chinês, na exposição de Byung Chul Han, a ideia de uma valorização diferente entre cópia e original, poderia caber certos aspectos melhores a respeito das imagens. Mas, também sabemos, que é no mundo oriental, chinês e japonês, e não no mundo árabe, que a noção de cópia ganhou seus aspectos mais bizarros. As bonecas humanoides e a pouca atenção ética à clonagem humana foram notadas nesse mundo em que o capitalismo se fez de modo mais veloz que o nosso modo.
Talvez tenhamos, para entender o que vem ocorrendo conosco, entender melhor a desconstrução Made In China. Talvez tenhamos que entender isso, sem tomar, como temos tomado até pouco tempo, como sendo a China e o Japão lugares que são (ou foram) geradores dos produtos “Tabajara” ou “do Paraguai”. Talvez valha a pena retomarmos o Oriente por meio de olhar mais profundo. A sugestão de Byung Chul Han é boa.
Paulo Ghiraldelli, filósofo.
Muito bom professor!
Professor, obrigado pelo seu texto. Suas resenhas são uma oportunidade para o conhecimento de leituras das quais não teria despertado interesse espontaneamente.
Na História da Música, no período barroco, grandes compositores faziam do seu processo de criação essa ideia de desconstrução. Na realidade, eles pegavam a obra de alguém que era prestigiado e faziam uma nova obra musical com várias características da obra “original”, se não, todas. Só pra citar um exemplo, Bach escreveu concertos para cravo a partir de obras completas de Vivaldi. Naquele período, essa atitude era uma honra prestada de um grande artista a outro. A ideia de plágio é bem mais moderna. A própria ideia de originalidade na arte musical é típica do Romantismo do séc. XIX. A partir daí ficou muito mais difícil conceber uma composição musical sem o medo de plagiar (sem intenção) ou o medo de ser medíocre já que muito se foi criado.
Quanto à música de mercado, do entretenimento, todos os rótulos musicais do mercado são o mesmo do mesmo da mesma coisa. Podem mudar as pessoas, os figurinos, a cor e a combinação dos instrumentos, mas tudo continua igual, o mesmo.
Achei interessante essa postura oriental com relação à cópia. É muito difícil pensar nessa visão deles.
Abraço.
Jonathan
Professor, obrigado pelo seu texto. Suas resenhas são uma oportunidade para o conhecimento de leituras das quais não teria despertado interesse espontaneamente.
Na História da Música, no período barroco, grandes compositores faziam do seu processo de criação essa ideia de desconstrução. Na realidade, eles pegavam a obra de alguém que era prestigiado e faziam uma nova obra musical com várias características da obra “original”, se não, todas. Só pra citar um exemplo, Bach escreveu concertos para cravo a partir de obras completas de Vivaldi. Naquele período, essa atitude era uma honra prestada de um grande artista a outro. A ideia de plágio é bem mais moderna. A própria ideia de originalidade na arte musical é típica do Romantismo do séc. XIX. A partir daí ficou muito mais difícil conceber uma composição musical sem o medo de plagiar (sem intenção) ou o medo de ser medíocre já que muito se foi criado.
Jonathan.
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