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RORTY E AGAMBEN: ALÉM DO REALISMO METAFÍSICO

“A vida como ela é” – nada há de pior na literatura que essa frase. Ela é pretensiosa, pedante e, o mesmo tempo, de uma ingenuidade típica do adolescente seminarista. Em nosso meio intelectual, muitos a ligam essa frase com a obra de Nelson Rodrigues. Há várias pessoas que acreditam que um escrito é “realista” se expõe tudo que um adolescente que gostaria de ser pervertido busca forçosamente imaginar que é a maior das perversões. Terminado o trabalho, sem qualquer rubor, ele batiza seus heróis de representantes da natureza humana.

O realismo da filosofia política, às vezes, também segue em linha semelhante, ainda que menos sujeito a se tornar cliché. São escritores realistas Maquiavel e Hobbes. Pode-se falar de Sade? Ao colocarem a natureza humana como aliada de elementos que a moral vigente não aprovaria, eles estariam comprometidos em trazer ao mundo a “verdade de nós mesmos”.

Os amantes desses dois tipos de realismo, o literário e o da filosofia política nessa propositalmente redutiva imagem, costumam se achar superiores, embora finjam humildade. Eles qualificam os filósofos que se aliam às utopias como enganadores. Eles adjetivam os escritores edificantes como adeptos do texto “água com açúcar” que, enfim, serviria apenas para ludibriar. Dizem que tais textos não são capazes de trazer para o grande público o drama humano. Para essa concepção, só é real o que faz sofrer. Assim, por essa visão, o realismo deve vir junto com o pessimismo, e ambos, de braços dados, querem fazer crer que há na dose de desespero e, não raro, de sarcasmo e cinismo ruim, o grande e único tilintar da inteligência. Ameaça-se a juventude com isso: “ah, você vai ver quando sair da escola e tiver de enfrentar a realidade”. A tal realidade só é realidade porque irá nos surrar.

O filósofo alemão Peter Sloterdijk lembra que a “vida dura”, que os autores ditos realistas descrevem como sendo necessariamente a “vida como ela é”, encontra também no fascismo uma apologia. Só é real o que produz suor e sangue. A vida é reduzida a uma só dimensão, a do trabalho duro. A labuta árdua, as condições adversas de todo tipo, o sucumbir diante da própria gravidade terrestre, isso é o que se pode chamar de vida real. A aceitação dessa situação, pelos adeptos do realismo, é tomada como sinal de maturidade. Fugir da fantasia é fugir da infância, deixar a utopia ou mesmo o idealismo de lado é escapar do que resta de infantil no homem adulto. O pessimismo assina essa tese, aliás, da minha parte, uma tese pouco crível. Penso que a tese realista é mais propensa a agradar o senso comum do que à primeira vista pode parecer. Os que estão o andar de cima sempre estão dispostos a falar da beleza da disciplina, mas que ela seja aplicada pelo chicote aos de baixo. E sempre estão dispostos a dourar o chicote de modo que os de baixo amem o deus chicote.

Mas, afinal, o realismo é só isso? Trata-se de uma posição meramente ideológica que joga todos para a crença da resignação? Não! Em filosofia, as coisas são mais complexas. O realismo em filosofia é, antes de tudo, uma discussão metafísica. Quando adentramos esse campo, todo cuidado é pouco. O vocabulário da filosofia exige atenção. A conversa muda de feição.

A conceituada Stanford Encyclopedia of Philosophy expõe o realismo dizendo que há nele dois aspectos gerais, relativos às coisas do mundo macroscópio, as coisas com as quais nos defrontamos e lidamos no cotidiano. Primeiro, trata-se da afirmação sobre a existência de tais coisas. Mesas, pedras, a lua e assim por diante, todos existem, assim como os seguintes fatos: a mesa é quadrada, a rocha é feita de granito e a lua é esférica e amarela. Segundo, trata-se da afirmação de independência das coisas. O fato de a lua existir e ser esférica independe de qualquer coisa que alguém diga ou pense sobre o assunto. Assim tomado, à primeira vista o realismo filosófico é uma posição fácil de aceitar. Quem iria, em uma conversa cotidiana, desmentir a existência das coisas que nos cercam, ou a independência delas? Assim parece. Todavia, mesmo na conversa comum, sem que possamos notar, desafiamos o realismo a todo momento. Mesmo sobre questões aparentemente básicas, insistimos que há narrativas diferentes, versões, perspectivas etc. Chegamos a rir dos advogados inexperientes que jogam fora o único trunfo que o direito parece possuir. A tese da relatividade das narrativas deveria ser louvada, mas os advogados que não pensam aparecem para negar Nietzsche, mesmo que não saibam de quem se trata. Eles dizem: contra fatos não há argumentos. Ora bolas, a primeira lição válida do direito é oposta: contra fatos é que é necessário levantar argumentos.

O realista, em geral, faz orações à verdade. Ele diz de boca cheia que “a verdade é o que corresponde à realidade”. A verdade é o que diz “o fato”. E lá vamos nós na Arca de Noé dos fatos. Tudo que o adversário do realista diz é “versão”, enquanto que ele, sabe-se lá como, saca de sua narrativa “os fatos”.

O realista fica de cabelo em pé quando mostramos para ele que o seu grande trunfo, que é a sua noção de verdade, nada explica. Ela é intuitiva, todos nós a usamos e creio que continuaremos a usar, porém ela é circular.

Eis a sua circularidade. No momento em que olho a mesa, posso dizer “Há um lápis sobre a mesa”, e então pergunto: esse enunciado é verdadeiro ou falso? Em termos lógicos, pode-se expressar tal formulação da seguinte maneira: “Há um lápis sobre a mesa” é um enunciado verdadeiro se e somente se há um lápis sobre a mesa. O que está entre aspas é o enunciado. O que está em itálico é o fato, o que ocorre fora do campo linguístico, o que existe e é independente de nós, segundo a tese realista, e também segundo o correto sendo comum. Ou seja: o que se diz corresponde a um fato, e então, o que se diz é qualificado como verdade. Em termos lógicos, nada se pode objetar. Mas, o crítico do realismo sai momentaneamente do campo da lógica, e pergunta o que significa dizer algo como o que é chamado de “correspondência”? O que se quer dizer com “corresponde a fato”? O que o crítico pergunta é sobre o que é comparado, o que se está colocando em correspondência quando se está pondo ao lado de um enunciado, para lhe dar poder de verdade, um fato? Pois, no limite, não podemos negar que o que está em itálico é, antes de tudo, também um enunciado, não é? O que está em itálico é alguma coisa que fico sabendo por meio de um enunciado. No que ele se diferencia da expressão que está aspada? A resposta do realista é fantasticamente capiciosa: ora, o que está entre aspas é um enunciado linguístico e o que está em itálico é o fato ao qual o enunciado corresponde. Ora, mas dar o nome de fato ao que está em itálico lhe tira a condição de se apresentar como um enunciado linguístico? Afinal, o que é um fato? Quando pergunto o que é um fato, descubro que explico essa noção utilizando dela própria! Uso para definir fato o seguinte: fato é aquilo que corresponde verdadeiramente ao enunciado sobre ele. Uma descrição é verdadeira quando é factual, e o que é factual é factual quando é verdadeiro. Como se pode notar, o realista não se vê em boa situação quando seu adversário, o filósofo antirrealista ou o filósofo cético, inventam de sair do campo da lógica para fustigá-la no campo dos conteúdos das suas frases.

Todavia, o realista não fica sem resposta. Ele devolve a questão de maneira inevitavelmente birrenta: quer dizer que só podemos comparar a linguagem com a linguagem? Quer dizer que, como Nietzsche, tenho de aceitar que não há fatos, só interpretações? Quer dizer que, como um relativista, tenho de checar narrativas com narrativas. Enfim, devo admitir, seguindo (ao menos à primeira vista) Wittgenstein, que os limites do mundo são os limites da linguagem? O realista pode não ter saída diante dos seus objetores, mas, como se pode ver, ele pode retrucar de modo a deixar seus críticos também em situação desconfortável.

A parte da filosofia que estuda esse assunto, a disputa entre o realismo e o antirrealismo, é chamada de metafísica. Meta quer dizer além. A metafísica é um além da física. Trata-se do estudo que visa determinar, se é que existe, um elemento fora da linguagem que possa ser a garantia de que a linguagem não está girando em falso, que ela diz efetivamente algo de alguma coisa, que ela não é uma grande tautologia. Algo há de real no mundo, algo real no sentido de não-linguístico. Algo que faça jus à noção de real que usamos no senso comum. A filosofia antiga, medieval e moderna se fizeram, em toda a sua história, nos embates internos entre realistas e não-realistas ou antirrealistas (com dezenas de subdivisões), ou em termos de céticos versus filósofos ou relativistas versus fundacionistas. Essas disputas se autodenominaram segundo as especificidades históricas dos debates. Mas a filosofia contemporânea, ao menos uma boa parte dela, tem se posto de uma maneira diferente. Ao invés de entrar no debate assumindo o dualismo realismo versus antirrealismo (ou algo assim), um grupo não pequeno de filósofos contemporâneos tem tentado enfrentar o problema por meio de algo que chamaríamos de mudança de paradigma (no sentido de Thomas Kuhn). Busca-se enveredar não pela resposta dentro do dualismo, mas escapar dele, propor questões que possam pular para fora de suas garras.

Destaco dois filósofos de nossos tempos que se empenharam em desvendar os impasses da disputa entre realismo e anti-realismo: o estadunidense Richard Rorty (1931-2007) e o italiano Giorgio Agamben. Rorty certamente aceitaria para ele mesmo como tendo entrado nesse debate. Não creio que é isso que interessa Agamben. Todavia, da maneira que eu os leio, parece que eles podem nos dar caminhos conjuntos para escapar dos impasses do realismo versus antirrealismo. Parece que eles podem nos deixar menos alvoraçados diante de alguém que diz que pode conviver bem com narrativas e que não tem que procurar um fundamento do “mais real” para fazer valer as narrativas.

Rorty e Agamben se ocupam da necessidade da metafísica de encontrar uma relação com o irrelativo, ou seja, o que é existente e independente de nós, do nosso pensamento, de nossa linguagem – que grosso modo é a tese realista – e fornecem caminhos para irmos além da disputa filosófica aludida.

Retomo a discussão, mesmo correndo o risco de ser repetitivo.

O que é o realismo? O que é tocar o que está além de relações, ou seja, o irrelativo? Em termos bastante genéricos, creio que o realismo pode se expressar do seguinte modo: há algo para além da linguagem que, por uma relação especial que não se configura propriamente como relação, toca e engancha no não-linguístico. Assim fazendo, a noção geral de verdade deixa de ser uma banal tautologia. Como é que expressamos a noção geral de verdade? Recordo: o enunciado “A neve é branca” é verdadeiro se e somente se a neve é branca. Essa é a noção de verdade que os manuais de lógica e epistemologia trazem. Ela é uma noção que cai para o interior da escola realista segundo a seguinte acepção: se a expressão em itálico corresponde ao enunciado entre aspas, sendo que a expressão em itálico deverá supor capaz de não ser uma mera expressão linguística e sim uma expressão linguística que emana de algo não-linguístico, então eis que há aí a efetiva realidade (o fato): a neve é branca.

O realismo diz que a ponte entre o que está em itálico, que é, ao menos formalmente, a emanação do real não-linguístico, e a expressão na linguagem que lhe é correspondente, que é o que está entre aspas, existe e é independente de nós. Existe “lá fora” aquilo que é o mundo. O chamado mundo exterior está de modo a garantir que, de alguma maneira, a linguagem pode espelhá-lo. A cruz do realismo metafísico, claro, é a de explicar como é que há algo não linguístico que “está lá”. Quando nos opomos a essa postulação metafísica, o que estamos dizendo. Estamos dizendo o seguinte: que a linguagem só se relaciona com a linguagem, e que “o que está lá” não tem como ser mostrado que é tocado, e que o irrelativo acaba por se mostrar efetivamente irrelativo. Ouvindo tudo isso, o realista nos diz que estamos em um “idealismo linguístico”, e que tal posição não é mais confortável que a dele, realista. Ou ele nós diz que a nossa linguagem está rodando em falso, e que se é assim, não temos nenhuma garantia quanto ao que afirmamos, e que isso é simplesmente uma tese sem qualquer plausibilidade diante da civilização que construímos.

Rorty e Agamben respondem a esse tipo de impasse não pela via idealista, mas por uma estrada que, na conta deles, é uma mudança de paradigma, um salto para além do dualismo realismo versus antirrealismo ou idealismo. Como isso é feito?

Rorty assume a posição que, em metafísica, chamávamos de materialismo, e que mais recentemente, por conta da epistemologia e da filosofia da ciência, chamamos de fisicalismo. Na acepção de Rorty, o que chamamos de mundo é assumido como sendo todo ele físico. Não há outra coisa que não coisas físicas. Em geral, quando se assume uma tese assim, materialista ou fisicalista, espera-se que tudo seja descrito por relações de causa e efeito, relações físicas de causa e efeito. Desse modo, o mundo não estaria sujeito a várias descrições, não estaria sujeito a várias narrativas equivalente. Ao menos uma descrição nos mostraria a relação de causa e efeito central, principal, a que faz o que acontecer aquilo que acontece. Assim, o pluralismo de descrições, as narrativas equivalentes, ficaria invalidado. O fisicalismo de Rorty, no entanto, em acordo como o de Donald Davidson (1917-2003), endossa a possibilidade de mais que uma narrativa. Segundo ele, mesmo o mundo sendo físico, isso não implica que não exista a possibilidade de fazermos descrições diferentes do mundo, todas elas relativas, algumas menos mutáveis que outras, sem que alguma descrição possa querer reivindicar para si o direito de ser a mais real.

Por essa tese, sendo o mundo exclusivamente físico, admite-se que não há outra coisa além de relações causais. Todas as relações são exclusivamente causais. Ou seja, todas as relações são físicas, inclusive a relação entre o que é o mundo e o que é a sua expressão na linguagem. Só que há tipos de relações causais. Há relações causais apresentadas por uma descrição, em que a relação se põe como imutável, e há relações causais apresentadas por outra descrição, em que a relação se põe como mutável. Feito isso, Rorty diz que não pode admitir que, vendo as relações descritas como imutáveis, estas então seriam as que espelham o real, as que iriam trazer à tona a realidade intrínseca. Temos apenas que admitir que são descrições diferentes, mas unicamente descrições causais, uma vez que o mundo é unicamente físico, sujeito unicamente a relações do mundo físico, as relações causais. Se empurro uma mesa, causei uma força sobre ela e o efeito foi o seu deslocamento. Se uma mesa está diante de mim, ela interage comigo por meio dos sentidos e da minha linguagem, causando em mim um enunciado, por exemplo, “há uma mesa diante de mim, eu a empurro etc.” Nos dois casos, não estou fora do mundo físico, nem ocorreu algo de misterioso na minha interação com a mesa que não possa ser exposta em termos de relação de causa e efeito, como ocorre com todos os objetos que estão no mundo físico, sendo que só há este mundo, o mundo físico.

O exemplo de Rorty, sobre os dinossauros, é bem claro. Tomemos os dinossauros. Como falamos deles? Como os descrevemos? Nós os descrevemos segundo relações. Os dinossauros podem ser descritos segundo uma relação conosco, que é mutável, e podem ser descritos por uma relação com os seus ovos, que é imutável. Assim, quanto a dinossauros, há dois tipos de relações e por isso dois tipos de descrições, mas nenhuma descrição é uma descrição que não seja a descrição de alguma relação causal. Vejamos: há relações causais-com-algumas-coisas-(ovos)-sob-uma-descrição, e estas relações não se alteram, e há relações-causais-com-outras-coisas-(nós)-sob-uma-descrição, e estas são alteráveis. A descrição inicial: dinossauros são ovíparos. Eles não vão mudar isso. Eles se relacionam com seus ovos, produzem seus ovos, causam seus ovos, e nada pode mudar isso. A segunda descrição: dinossauros são muitas outras coisas, mas que podem mudar à medida que nosso conhecimento sobre eles puder ser alterado. Há relações conosco que irão mudar. Por exemplo, podemos descobrir a qualquer momento que nunca os dinossauros, seja lá quais, foram vegetarianos. Ou seja, dinossauros causarão em nós outra visão sobre eles. Rorty vê as duas descrições como equivalentes. Não há uma que possa ser mais verdadeira que a outra. Não há uma que atinja o real – a dos dinossauros como ovíparos – e uma outra que não atinja o real – a dos dinossauros como mutáveis segundo o nosso saber de época. Não há uma descrição que estaria acima de toda e qualquer descrição, sendo então a que pode tocar mais a realidade.

Assim, para Rorty, o realismo metafísico, que afirmaria alguma descrição mais real que outra (a que parece não mudar seria a mais real), não leva em conta que, se afirmamos que há algo mais real, algo no mundo extra-linguístico que engancha na linguagem de uma maneira melhor, é simplesmente porque estamos errando no uso do jogo de linguagem. No jogo de linguagem que jogamos, erramos quando filosofamos e postulamos algo além da linguagem no sentido de que este além poderia nos tocar de modo especial, e um toque perene. Quando não filosofamos, apenas usamos a linguagem e, nesse uso, caso ele esteja correto, consideramos que a palavra “dinossauro” tem que ser usada segundo dinossauros ovíparos (o que não muda), e também usamos “dinossauro”, que pode ser descrito de variadas formas além de ovíparos (o que muda segundo a relação nossa com dinossauro, ou seja, as nossas descobertas novas sobre eles). Assim, acreditar na “coisa em si” (o dinossauro como coisa ovípara, a essência dinossauresca etc.) é um uso de jogo de linguagem de filosofia (filosofia como metafísica) que, enfim, deveria ser desautorizado. Pois o jogo de linguagem que jogamos não coloca chance para falarmos de dinossauro sob descrições que não essas duas aqui evocadas. Ninguém deveria pensar que há algo “lá fora” (o dinossauro real, a essência dinossáurica etc), mais real, fomentando a nossa linguagem a fazer descrições. Invocar o irrelativo “lá fora” é uma maneira de jogar um jogo de linguagem sem saber jogá-lo!

A solução de Agamben para o mesmo problema é diferente. O que em Rorty aparece como um erro de uso da linguagem, a criação de um jogo de linguagem que se chama metafísica, e que nos faz procurar falsos problemas (a dicotomia entre relacional e irrelacional), em Agamben não aparece como um erro em função do uso, mas um problema de construção da própria linguagem humana. A linguagem humana teria, por ela mesma, intrinsecamente, uma estrutura pressuponente. Essa estrutura a forçaria na direção metafísica.

Em Agamben, o que está além da linguagem, o ponto metafísico que o realista tem em mira, não é outra coisa senão algo da própria linguagem humana. É que a linguagem humana tem uma estrutura pressuponente. Isto é, é inerente à linguagem humana que ela estabeleça uma relação particular com o ser de que fala, e isso de modo independente de como ela o tenha nomeado e adjetivado. A palavra do homem está de antemão em relação de intencionalidade com alguma coisa pressuposta como o irrelativo. Agamben nota isso como um resultado da fraqueza ontológica da linguagem. Ela, a linguagem humana, não se mostra, e com isso ela pode apontar para o que não seria ela mesma, sem nos confundir.

O exemplo de Agamben é claro. A linguagem diz o ser, e o ser dito não é assumido como algo homogêneo à linguagem. Assim, o nome “árvore” não fala de si mesmo. A linguagem se omite para que o nome “árvore” possa trazer a árvore como o que é dito. Não é que a árvore é uma “coisa em si” fora da linguagem – essa tese está fora de questão. É que a linguagem é, por ela mesma, o que mostra e, para tal, esconde a si mesma. Ela, a linguagem humana, poderia falar árvore e, dirigindo-se a si mesma, nos lançar a atenção para a a-r-v-o-r-e, algo grafado como “palavra de seis letras”, ou algo como a voz que, ao dizer árvore, nos lembrasse que estamos emitindo uma voz, um som “árvore”. Mas não é isso que ela faz. Ela não faz sombra. Ela não nubla o que é dito. Ela não atrapalha o que entendemos como cognição. Aquilo que é, o ser, no caso o ente árvore, pode ser nomeado. E junto disso, como um pressuposto, como sujeito (orinalmente: que subjaz), pode então ganhar qualificativos, predicados, ou seja, do nome se pode ir adiante e se ter “árvore bela”, um sintagma que, enfim, Agamben denomina discurso.

Agamben lembra, inclusive, que o termo “pressuposto” é bem pertinente para explicar a característica da linguagem humana. Pois o significado original da palavra sujeito é sub-iectum, ou seja, o ser que jaz antes de tudo e no fundo de tudo, aquilo sobre o que se fala, sendo que não se pode falar sobre o nada. Aquilo que é su-posto aguarda, como base ou fundamento, uma predicação. Desse modo, a linguagem humana sempre conduz a algo, e não é uma inutilidade. Não gira em falso.

A estrutura pressuponente da linguagem humana revela, então, a cisão entre nome e discurso, e dessas cisões emergem outras: langue e parole, semiótico e semântico, sentido e denotação. Não se trata de diferenças, Agamben diz, descobertas pela linguística moderna, mas é algo da própria experiência grega na sua reflexão sobre o ser. Agamben lembra que foi Platão quem distinguiu nome e discurso.

Nos dois casos, tanto em Rorty quanto em Agamben, há uma série de implicações éticas advindas dessas conclusões sobre metafísica.

Para Rorty, a linguagem humana pode sempre escapar de levantar questões sobre a coisa-em-si, sobre o irrelativo, sobre “o mais real” etc. Usos da linguagem que evitem a metafisica são de menos gasto energético: se não perdemos tempo discutindo a verdade, sobra tempo e esforço para tomarmos conta da liberdade – esse foi o lema de Rorty. A própria opção por usar a linguagem sem que ela adentre o campo metafísico já é um passo em favor da liberdade. Portanto, trata-se aí de um passo ético.

Para Agamben, a experiência da linguagem humana é também um campo de possibilidades. Essas possibilidades estão dadas ao falante. Há na linguagem humana, segundo Émile Benveniste (1902-1976) citado por Agamben, uma dupla significação: uma significação de ordem semiótica e uma significação de ordem semântica. Na primeira, temos a série dos nomes: árvore, casa, viagem, bem, homem etc. Na segunda temos a série dos discursos: árvore grande, homem bom, viagem cansativa etc. Há um um modo de significação que é devido ao signo linguístico. O signo é uma unidade, e existe como unidade. Trata-se de amigo-casa-boi-cansado, e não algo, por exemplo, como damigo-basa-toi-jançado. O signo é uma identidade consigo mesmo e uma alteridade diante de todos e quaisquer outros signos. Ele existe no seu reconhecimento pelos membros de uma comunidade linguística. Há um segundo modo de significação que é produzido no discurso. Aqui a língua produz mensagens. Elas não são uma sequência de nomes, não são signos adicionados um ao outro. O campo do discurso ou o campo da enunciação é onde se produz um sentido concebido de modo global, e que então pode ser dividido em signos particulares, as palavras.

A diferença entre essas significações fica nítida quando notamos que evocam funções diferentes do espírito humano: os signos precisam ser reconhecidos enquanto que o discurso tem de ser compreendido. Reconhecer e compreender dão distinção para o que está em jogo num campo e noutro. Assim, o campo semiótico é da ordem inerente à língua, mas o campo semiótico depende da atividade do locutor, que é a atividade de colocar a língua em funcionamento. O signo semiótico dá a realidade da língua, mas não ensina, por ele próprio, aplicações particulares. Essas aplicações, as frases, o campo semântico, é da particularidade do agente locutor. E eis o caso notável, diz Agamben, creditando-o a tradição Saussure-Benveniste: não há regras, em termos teóricos, de fazer a passagem de um campo para outro. Do signo à frase não há um caminho seguro. A linguagem humana possui um hiato. O homem tem uma infância (o tempo em que ele não fala, o tempo do in-fante), e ele se livra dela, ou melhor dizendo, é livrado por seus pares adultos, para se tornar sujeito da linguagem. Rompe o mundo fechado dos signos para fazer da pura língua um discurso humano. Faz a passagem do semiótico ao semântico. O homem só adentra a língua como sistema de signos se faz aí uma transformação, faz a constituição do discurso. Cada criança faz isso, na sua participação na comunidade linguística, antes dos onze ou doze anos, ou então fica tolhida para toda a sua vida. Pode ser um adulto que se comunica, sem no entanto ganhar voz, a voz humana, a voz que se faz pela aquisição da língua. No homem, para que sua potencialidade de ser homem se faça ato, o seu destino posto em parte pela natureza depende do fazer da história. A história é justamente, para Agamben, essa situação da filogênese repetida na ontogênese. Cada um de nós repete, num campo aberto, a experiência da espécie, que também se fez em aberto.

Se assim é, então a experiência de se ter uma língua é, afinal, uma experiência humana de, não tendo uma voz (o zurrar do burro, o rosnar do leão etc.), adquirir o que vem a ser a voz humana. Eis aí o espaço de liberdade. Agamben chama isso de situação de se sair da Babel da infância. Que se pense nisso, com Agamben: uma comunidade inteiramente construída por uma outra experiência de se ter uma voz é sempre um campo de liberdade. Tem chances de emergir, pois estamos diante da admissão de que somos nós que estabelecemos o que seria a ressonância entre uma série semiótica e uma série semântica, a série dos nomes e a série do discurso. Toda a civilização (o campo ético) nada é senão um trabalho intenso e contínuo de algo que poderíamos chamar de interpretação do ato da palavra, segundo o desenvolvimento do que está implicado na língua.

Paulo Ghiraldelli 15/12/2023

2 comentários em “RORTY E AGAMBEN: ALÉM DO REALISMO METAFÍSICO”

  1. Professor o realismo ciêntifico advoga que o mundo real existe independente do ser e ainda mantém a tese de que as várias possibilidades de narrativa são verdadeiras na medida que nenhuma narrativa tem o poder de abarcar a totalidade da realidade. Mas essas narrativas devem buscar o rigor da objetividade e não podem ser inventadas pela imaginação(subjetividade) do narrador.

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