É difícil acreditar que o evangélico possa pensar por si mesmo. Fica ainda mais difícil quando o evangélico adere ao identitarismo. Deborah Bizarria escreve na Folha e se apresenta como “economista, neoliberal e evangélica”. Várias identidades ela tem! Mas, é claro, a de “evangélica” é típica da onda identitária. Todavia, como estou disposto a não ter preconceitos, fui ler o que moça escreveu.
Ela viu o discurso do Lula na ONU e mais que depressa pinçou a frase “Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário”. (Folha, 22/09/2023) Apareceu “neoliberalismo” no texto do Lula! Ora, pertencendo ao grupo Livres, Bizarria não pensou duas vezes. Saiu da cartola pulando e com cenoura na boca, para então expor os dogmas decorados. O que fez? Simples: reproduziu uma cartilha gasta, aquela que todo e qualquer Sardemberg decora, e que durante anos foi repetida nos jornais noturnos da Globo.
A narrativa dessa cartilha todo mundo conhece: o desenvolvimentismo do Lula comeu a Dilma pela perna e, enfim, sob os governos do PT o estado gastou demais e gastou errado, e por isso a direita populista emergiu. Lula estaria errado em dizer que foi o neoliberalismo que provocou a ida dos brasileiros para os braços de Bolsonaro-Guedes. Foi o desenvolvimentismo de Lula que, se infiltrando pelo governo Dilma, corroeu todo o Brasil e nos colocou em uma crise imensa. Bolsonaro veio em nossa salvação por meio de Guedes, mas traiu o projeto neoliberal, este sim, salvador. É isso! Quando não era Sardemberg era o próprio Aécio, quando não eram ambos sobrava para o William Waack recitar essa lenga lenga. Isso foi repetido por todo tipo de anta em meios pseudo-intelectuais, alimentados pelo Pondé, pelo Partido Novo e pelo MBL.
Não creio que essa narrativa tenha respaldo em qualquer reflexão mais profunda. Mas não quero discutir seu mérito. Quero apenas perguntar por qual razão Bizarria opôs essa sua cartilha ao que o Lula falou. Pois, essa sua cartilha fala de um período bem restrito de nossa história, e a narrativa do Lula não se referia exclusivamente a esse período. Ele estava falando na ONU, não no Brasil, e estava se referindo, obviamente, à situação geral e histórica do neoliberalismo.
É claro que Lula, não raro, desconsidera uma série de problemas dos governos do PT. Bizarria fala da corrupção. Ora bolas, o desgaste dos governos do PT em relação a isso são bem conhecidos. Mas é também necessário lembrar, e ela não faz isso, que a mídia comprou o discurso da classe média, que diz que política é exclusivamente roubar e não roubar, e assim deu guarida a Sérgio Moro e seu bando. Todavia, volto a insistir: a fala do Lula não tem como referência exclusivamente o Brasil, nem somente os últimos anos.
Bizarria poderia, como economista, pensar os dramas históricos do neoliberalismo. Poderia ver como ele está há já cinquenta anos comandando o mundo, como produziu crises, como gerou uma distância maior entre ricos e pobres. Poderia também entender que a política neoliberal veio entrelaçada ao domínio da lógica do capitalismo financeiro sobre a lógica anterior, a do capitalismo de cunho social democrata ou do capitalismo mais próximo dos ideais do Welfare State. É incrível que ela tenha feito o curso de graduação em economia e não tenha aprendido nada disso! A UFPE é uma universidade ruim? Ou era boa, ensinava tudo isso, mas Bizarria não ia às aulas? Ou ela já era evangélica, não conseguia entender as aulas e, então, decorava as coisas “para passar”? Não dá para não ficar com essas dúvidas!
Lula pode ter feito uma relação causal pouco interessante: o neoliberalismo leva ao populismo de direita. Bem, não necessariamente. Mas, caso Lula falasse que o capitalismo financeiro se entrelaçou ao neoliberalismo e ambos desfizeram o mundo do trabalho de antes de 1970, e nos jogaram todos para uma atomização pouco alvissareira e piores condição de vida e trabalho, então, ele teria melhorado bem a sua narrativa. Mas, fazendo isso, Lula já não estaria discursando, estaria fazendo um artigo jornalístico. Não era o caso.
O certo é que, em linhas bem gerais, a narrativa de Lula pode ser algo plausível. A historiografia comum – mesmo aquela que tem simpatias para como o liberalismo ou mesmo neoliberalismo – é bem conhecida quanto ao modo como ela expõe esses últimos cinquenta anos.
Olhando panoramicamente para os últimos cinquenta anos, podemos apontar para seis grandes noções que dão conta de situações, acontecimentos e caracterizações sociais que geraram a sociedade do capitalismo contemporâneo. Essas noções abarcam as alterações da vida social em vários níveis, pensadas em comparação ao período deixado para trás, aquele entre as duas primeiras décadas após a Segunda Guerra e os anos de 1970. Coloco essas noções em seguida, de modo resumido. A disposição dessas noções não corresponde a alguma hierarquia própria, mas seguem uma certa tentativa didática, de facilitação da exposição.
1) Capitalismo financeiro. Trata-se da situação do capitalismo atual, em que a lógica das finanças e do crédito busca preponderância sobre a lógica da produção.[1] Essa preponderância se faz segundo as necessidades de acumulação do capital, sendo que isso é da essência do capitalismo. O capital portador de juros ou capital financeiro quer ser o centro de nossas relações sociais e econômicas. Desse modo, a sociedade de mercado em que vivemos é, antes de tudo, uma sociedade do mercado bursátil e da compra e venda de “papéis”.
2) Pós-fordismo. É o nome dado às mudanças no mundo do trabalho, hoje bem estabelecidas, e que correspondem ao modo de vida flexível, em oposição ao que seria a rigidez do mundo do trabalho antes dos anos de 1980. A passagem do fordismo para o pós-fordismo se deu em concomitância com o impulso econômico na direção da preponderância do capitalismo financeiro. Pode-se dizer, em um sentido genérico e simplificado, que o pós-fordismo se explicita na entrada da máquina-autômato na fábrica, o que veio junto, então, da dispensa homem e da transformação do tecido social como um todo em uma grande fábrica social.
3) Nova biopolítica. A sociedade em que vivemos pode ser vista como uma grande fábrica social digitalizada. Nesse contexto, estabeleceram-se novas relações entre o tempo de trabalho e a vida social e privada, que conformam uma biopolítica especial.[2] A predominância do trabalho imaterial/cognitivo e a subsunção de toda a vida ao capital são, hoje, os elementos robustos de uma situação biopolítica que nublou de uma vez a distinção tipicamente moderna entre lazer e trabalho. Junto disso, vemos um crescente apagamento das distinções entre vida privada e vida pública, com consequências novidadeiras no âmbito ético-moral e correlativamente estético.
4) Capitalismo cognitivo. A acumulação do capital se fez pela dinâmica industrial, especialmente entre a metade do século XIX e durante quase todo o século XX. O século XXI vê nascer uma outra lógica do capitalismo, em que a importância passa a ser o do controle do conhecimento. Na “era da informação” a pujança das grandes companhias não são mais observáveis pelo tamanho de suas estruturas físicas. Importa menos o gigantismo arquitetônico, ou mesmo a eficiência de suas máquinas segundo o modelo industrial, e o que se torna notável é a “capacidade sistêmica de extrair dividendos”. A imaterialidade que se verifica nesse casamento entre capitalismo cognitivo e capitalismo financeiro está no valor das corporações, que “é calculado pelo valor de suas ações no mercado, que, por sua vez, depende dos dividendos pagos aos acionistas”.[3]
5) Subjetividades contemporâneas. Vivemos sob novas formas de subjetividade, em especial a condição de “prosumidor”, aquele que é consumidor e produtor ao mesmo tempo, e que em geral trabalha em rede. O trabalho cognitivo e a emergência do produto não material dominam a paisagem atual. Junto disso, a importância do general intellect[4] é uma realidade para a vida do homem contemporâneo. Aqui nasce um grande campo de controvérsia entre os teóricos. O que se vê dessa análise é que o trabalho é necessariamente levado adiante de modo socializado, e que isso é uma exigência para que ele possa render frutos. Também se depreende dessa mesma análise que não cessas as tentativas do capital de controlar os resultados desse trabalho, o que implica, não raro, em certos cerceamentos que diminuem a riqueza dos frutos.
6) Neoliberalismo. É uma expressão que utilizamos para denominar a governança política e as mudanças de legislação correspondentes às transformações acima apontadas. Trata-se do regime político-econômico que substituiu a política social-democrata, cuja característica marcante foi a construção do Estado de Bem-Estar Social, especialmente entre o pós-Segunda Guerra e a década de 1970, e que estava umbilicalmente ligada ao modo de produção fordista em sua articulação com as formulações econômicas keynesianas.
Quando tomamos essas transformações em conjunto, notamos que o esforço do neoliberalismo para substituir os padrões de acumulação do capital anteriores criou um mundo muito mais injusto.
Os economistas críticos gostam de citar certos dados específicos para lidar com a diferença entre o que ficou conhecido como os anos de ouro do capitalismo em contraposição aos resultados alcançados na fase neoliberal. Essa citação já se tornou lugar comum na bibliografia do assunto. Antes da crise de 1929, os 10% mais ricos da sociedade estadunidense se apropriavam, em termos médios, de aproximadamente 43,0% da renda nacional enquanto o 1% mais rico de cerca de 18,0%. Depois, com as políticas intervencionistas de regulação do mercado e de construção do Estado de Bem-Estar Social, veio o tempo de uma forte queda da desigualdade sucedida por um longo período de relativa estabilidade, que se estendeu até o final dos anos de 1970. No início da década de 1970, por exemplo, 32,6% e 9,0% da renda nacional eram apropriadas pelos 10% e pelo 1% mais ricos. Todavia, nos decênios posteriores, os americanos passaram por um aumento consistente das desigualdades de renda: em 2012, 50,4% e 22,5% da renda nacional dos Estados Unidos eram apropriadas pelos 10% e pelo 1% mais ricos, respectivamente, algo próximo do que havia no período pré-crise de 1929.[5] O neoliberalismo trouxe os Estados Unidos para uma volta ao começo do século XX em termos de desigualdade social.
Mutatis mutandis o mundo todo passou por transformações não alvissareiras para os trabalhadores. Profundas mudanças remodelaram nossas vidas de uma forma muito mais rápida que as verificadas em períodos anteriores, mesmo quando se toma somente alterações radicais. Aliás, a velocidade, novamente, se colocou como símbolo. No início do século XX ela se mostrava através dos carros. Na sociedade do capitalismo contemporâneo ela mudou de meio e de padrão. Os cálculos a respeito de quase tudo se tornaram assustadoramente rápidos com os supercomputadores. A democratização dessas máquinas, pela disseminação de laptops, associada a um desregramento das atividades capazes de fazer crescer companhias de seguros, fundos de pensão, investidores de um modo geral e criação de um mercado bursátil vigoroso, deu à população um novo modo de vida diante de uma remodelação do gerenciamento de negócios. Além disso, os computadores foram articulados em rede – a internet. Em poucos anos, em vários países, a comunicação virtual vingou em tempo real, e isso se tornou de fato o padrão de velocidade. Só então o mundo deu o passo decisivo para a globalização: já não mais a integração espacial somente, mas também e principalmente a temporal.
O desgosto com esse mundo trouxe reclamações. Geraram revoltas esporádicas durante todos esses anos (Occupy, Primavera Árabe etc.). Em termos políticos institucionais, ligados a processo eleitorais, esse desgosto foi capitaneado por movimentos tipicamente de direita. A lembrança colocada por Lula é correta. Pois essa reação à direita se expressou mais radicalmente com Trump, Le Pen, Benjamin Netanyahu, Giorgia Meloni, Viktor Orbán Putin e outros. No Brasil tivemos Bolsonaro. A Argentina chega atrasada, com Milei.
Caso Bizarria pudesse pensar por si mesma, ela ficaria atenta a todos esses dados, e construiria outra narrativa, menos apequenada. Mas, insisto na minha pergunta, e agora já acreditando que estou sem preconceito: ela consegue pensar sendo evangélica? Uma liberal evangélica, conseguiria ter alguma reflexão pessoal que saísse da cartilha que lhe deram na igreja dos Livres?
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista
[1] Sobre a noção de capitalismo financeiro ver: Lapyda, I. Introdução ao capitalismo financeiro. São Paulo-Ibitinga: CEFA Editorial, 2022. Ver também: Dowbor, L. Capitalismo improdutivo. São Paulo: SESC, 2018.
[2] Sobre a noção de biopolítica ver: Lemke, T. Biopolítica: críticas, debates e perspectivas. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 2018.
[3] Dowbor, L. O capitalismo se desloca. São Paulo: Edições SESC, 2020, p. 48.
[4] General Intelect. Essa expressão aparece nos Grundrisse de Marx, no que ficou conhecido de maneira célebre como “fragmento das máquinas”. Há diversas interpretações sobre o entendimento dessa expressão. Pode-se ver isso nos trabalhados de Carlos Vercellone, Christian Marazzi, Antonio Negri, Yann Moulier Boutang e Paolo Virno. Vamos tomá-lo aqui como saber geral difuso na sociedade.
[5] Nota Técnica. São Paulo: DIEESE, 2014, n. 38.
Ótimo artigo. Parabéns!
Texto impecável
Muito interessante.
Não é possível comentar.