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SONSA E A VELHA “CANÇÃO DE AMOR”

A canção “Carta para Chico”, da Luísa Sonsa, está chamando a atenção. A música não é lá essas coisas, não me ganhou. A lírica tem novidade, em se tratando de uma artista que ia mais pela bunda que pela poesia, ainda que ela pudesse até dizer que sua bunda poetava. Afinal, bunda também faz versos, como já nos provou Drummond.

O clipe? Bem, o clipe tem o rosto da Sonsa, que é atraente. As curvas da Sonsa, afinal, são bem feitas. As vestimentas e o lugar ficaram bons. A calça de cintura baixa é sempre a correta. Mas ela exagerou em algumas poses. Não foi bem dirigida. Ela mostrando a língua. Ela andando de quatro. Não ficou harmônico com o que parecia ser a proposta do início do clipe. São poses imitadas de clipes anteriores, no estilo já gasto da Anitta e da própria Sonsa. E a foto final, com vacas e ela trepada em uma cerca, trouxe mais a vibe de Barretos e bem menos a da Bossa Nova. Se é que o clipe ou a música deveriam aludir a alguma bossa que pudesse ser a Bossa Nova!

Caetano foi chamado a se manifestar. Não pelo clipe, mas pela música, e ele não se fez de rogado. Afinal, o que ela fez é ou não Bossa Nova? Não é! Bossa Nova depende de intenção, postura do artista, lugar do artista etc. Bossa Nova não se define por batida de violão. Assim explicou corretamente Caetano. Arrisco completar: os versos podem ser diferentes de “me fode me fode” ou coisa assim, que seria o comum na Sonsa, mas, convenhamos, ficaram um pouco forçados! A ideia da menção à política, para que se possa pensar não no Chico Moeda, namorado dela, e sim no Chico Buarque, não colou. Pode até ter sido algo espontâneo? Ora, que seja, não colou.

Leo Aversa, colunista de o Globo, pegou por outro lado: se a música foi para o namorado e a lírica fala de monogamia, então, que o Chico Moeda aproveite bem. Vale a pena reproduzir um trecho do Aversa: “Esqueça a conversa cansada dos tantos que preferem encarar um espelho do que ver o outro, jogue fora os posts palestrinhas dos que não amam ninguém, apenas consomem pessoas.” Melhor conselho impossível. De fato, ninguém mais aguenta bobo alegre (bobo triste, na verdade) vociferando contra o amor romântico, pensando estar filosofando como estoico. Gente assim sabe de estoicismo o que formiga sabe de pimenta. Até a Thaís Oyama tem pseudointelectual de estimação para papagaiar essa joça! Leo Aversa está correto ao captar uma parte do contra-espírito da época, que já viu que a ideia de “a fila anda” é uma péssima ideia quando vira regra. Talvez o único erro do Aversa, no texto todo, tenha sido o de achar que desejo é uma coisa e amor é outra coisa. Não é! Eros é um deus, ele é desejo e amor indistintamente.

De resto, Aversa acerta. Posso concordar com ele, colocando a colher do meu ofício: estamos sempre voltando aos gregos, nosso berço, quando eles lutavam pela invenção da filosofia. Se tudo muda, se tudo se movimenta e se corrompe, se Cronos é implacável, como então podemos conhecer as coisas? Afinal, eleger ao status conhecimento aquilo a que se pode ora afirmar uma coisa e depois afirmar o seu contrário, não é estranho? O que se pode dizer e desdizer, não seria mera opinião, e não efetivamente um conhecimento? A filosofia nasceu com a tarefa de nos dizer que podemos conhecer algo porque há algo que não muda, que pode se apresentar como capaz de receber a mesma descrição sempre. A filosofia nasceu em torno da utopia da busca do que é perene. Platão, o inventor do gênero literário chamado filosofia, se dedicou incansavelmente a tal tarefa.

Do que é passageiro, podemos falar, mas não exibir saber. O saber verdadeiro exige o perene ainda que isto seja pela forma de utopia. Afinal, a filosofia não tem como se desvincular da utopia.

Aceitamos o amor passageiro. Fazemos dele aquilo que pode até ser a melhor definição de amor. Adaptamo-nos ao dizeres que afirmam que tudo acaba e tudo passa. Mas, ao mesmo tempo, não deixamos de convocar nossas forças para investigar se há o amor que nunca acaba. Descobrimos então que o amor que nunca acaba é aquele do qual não fugimos, aquele que não destruímos, aquele que fomos capazes de tratar como tarefa dignamente humana: o cultivar. Trata-se do amor do sexo bem feito, da dedicação lapidada e da reciprocidade satisfeita. É tudo aquilo que que faz o relógio parar. Quando estamos nesse amor, temos a certeza de que vivemos algo muito próximo da utopia do que é perene. Não é à toa que o deus cristão sempre teve um ciúmes danado do deus grego, Eros.

Freud disse certa vez que o amor romântico, vindo em forma de paixão, só é agradável nos primeiros minutos, pois logo em seguida ele nos desespera. Pois basta tê-lo para nos apavorarmos com a imaginação de que aquele que nos ama pode nos deixar. Pode nos abandonar por não mais amar, ou pode ser levado embora pela morte. Mas Freud errou. Ele falou do amor entre pessoas, não do amor provocado pela figura que é o próprio amor, o próprio desejo, Eros. Freud transformou Eros em energia libidinal muito rapidamente, e com isso acabou pondo a filosofia de lado para criar a psicanálise. Freud medicalizou muito rapidamente aquilo que é da ordem da utopia. Ora, a psicanálise é como a economia, uma ciência triste. A filosofia foge disso, por isso nem ciência ela é. A filosofia funciona por meio de Eros, como testemunhou Sócrates, ele próprio um agente erótico. A filosofia tem no horizonte a coragem de tematizar as experiências atemporais que são as do amor romântico. Uma gota de amor romântico é suficiente para as pessoas voltarem a pensar.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, escritor, professor e jornalista.

1 comentário em “SONSA E A VELHA “CANÇÃO DE AMOR””

  1. “Freud disse certa vez que o amor romântico, vindo em forma de paixão, só é agradável nos primeiros minutos, pois logo em seguida ele nos desespera.”
    Freud, o idiota?

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