O recado de Barbie, o filme, é claro: o mundo que está para desaparecer é machista, a comunidade que vem é da mulher. Melhor ainda se ela tiver três seios, pipi e for quase preta, loira e asiática tudo ao mesmo tempo, mas com DNA Americano. Caso ela goste de ser mãe e concomitantemente reclame muito, ótimo! O mundo machista é bobão, tem de cair. Esse recado ultrapassa o recado do filme? Não importa. Serve para o quero dizer.
O interessante mesmo do filme é que ele se destina a adultos. Aqueles que têm idade dos meus filhos (mas não eles!). Entre 35 e 45 anos. Os que viveram uma infância em que Barbie e Ken ou estiveram dentro de casa ou espreitaram pela janela. O “universo Barbie” quer mostrar um mundo em que o tema da igualdade de gênero tenha vez, e de modo democrático, ou seja, para todos. Todos mesmo! Não foi poupado esforço e, claro, dinheiro, para que o filme fosse visto por Deus e todo mundo. O retorno em dólares foi excelente.
Todavia, o que achei significativo nisso tudo, é que o filme é sobre … boneca! E para você entrar no espírito do filme, você precisa ter uma subjetividade de boneca. Caso você não seja também um brinquedo, caso não seja uma coisa, o filme não o atinge.
Toy Story é um filme sobre bonecos, mas para humanos. Ele carrega uma pergunta filosófica fundamental: o que as coisas fazem nas nossas costas, uma vez que as animamos? Barbie não faz nenhuma pergunta filosófica. Ele responde sem que se tenha perguntado o seguinte: seja uma coisa ou perecerá. Ora, mas ser uma coisa já não é ter perecido?
Não! No nosso mundo, ser uma coisa genérica, abstrata, é a condição para se parecer vivo. Pois no nosso mundo, já faz um certo tempo, as coisas adquiriram vida, ainda que vida de fantasmas. E nós viramos os mortos. Mas, desejando viver, imitamos aquilo que se mostra o modelo de vida: as coisas animadas. A mercadoria tem seu fetiche. Depois, o dinheiro se fez fetiche máximo. Eles se parecem vivos uma vez que tomam a condição de agentes, de verdadeiros sujeitos. E nós, ao ficarmos passivos e nos tornarmos objetos, aspiramos voltar à condição de vivos. Imitamos as coisas fetichizadas para nos sentir vivos. Geramos um mundo esteriotipado. Uns dizem que geramos um mundo de zumbis. Outros, tentando preservar alguma alegria, dizem que nos tornamos bonecos. Não os de Toy Story, com sacanagens por detrás, mas sim os do “Universo Barbie”, sem qualquer grande drama interior, sem escaramuças, sem máscaras, tudo na base da superfície, ou seja, a maximização da superficialidade.
Toy Story é para os que desconfiaram do capitalismo. Colocamos tudo em movimento. Então, não estarão as coisas, na hora que nos ausentamos, ainda em movimento, por elas mesmas? O capitalismo não vem da ganância, ele vem do sujeito maquinal que é o capital, que tudo move sem nós. Move-se única e exclusivamente para por ele próprio e para ele próprio. O objetivo é se ampliar. Chamamos isso de acumulação. Se não se acumula pela mais-valia, que se acumule pelas finanças. Ou vai ou racha: a grande “fuga para a frente”.
Barbie é para os que já não podem desconfiar de nada, muito menos do capitalismo. Todos estão em movimento. E como não se sabe para que, então, que os identitários inventem uma razão. Talvez a luta do feminismo contra o machismo! Nada mais chato que isso. Ora, mas quem disse que era para ser interessante? Imitar o poder das coisas e do dinheiro é imitar, hoje em dia, apenas a sua velocidade. Barbie é isso: bonecos na tela e bonecos na poltrona, todos movimentadíssimos em um mundo de uma cor só: rosa! O que importa é vestir rosa e estar em velocidade. Não se trata de “fuga para a frente”, mas de uma frente para a fuga.
Tudo rosa, viva a diversidade, gritam os identitários!
A “fuga para a frente” se fez valer quando o capital, não conseguindo ampliar crescentemente a acumulação, quebrou barreiras legais e saiu do capitalismo industrial para fazer valer uma nova lógica como hegemônica, a dos ganhos vindos de juros, de papéis e de plataformização virtual. A frente para a fuga é a colocação de um horizonte em que parte da classe média se deleita com o fato de ter se encontrado com a sua infância e ter percebido que ser Ken e ser Barbie se realizou. Outra parte da classe média vê a frente para a fuga na sala ao lado, com Oppenheimer. O imobilismo veloz é o mesmo: vestir rosa ou esperar a catástrofe. Ser animado-inanimado ou curtir a distopia.
Talvez valha ver de novo Toy Story, na pergunta soterrada ali, cabe ainda um olhar para a utopia?
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista
Obrigado Professor.
O que me impressiona é a glamorização da vida conjugal de madame e presa a padrões sociais. A minha prima brincava com barbie e eu a admirava.
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