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A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA COMO SOCIEDADE DA HISTERIA

A privacidade morreu? A intimidade não é mais um santuário? A essas perguntas as ciências humanas e a filosofia dão respostas que vão mais para o sim que para o não. A percepção do senso comum escolarizado também vai pelo mesmo caminho. As divergências aparecem quando as perguntam são sobre como e por que isso ocorreu ou vem ocorrendo. Forneço aqui uma narrativa que talvez possa ajudar aos que estão lidando com o assunto.

A ideia de privacidade é moderna. Trata-se de uma realização burguesa. A burguesia a introduziu como norma desejável no contexto de sua crítica ao Antigo Regime.

Os nobres, uma vez vivendo na corte, faziam questão de se mostrarem uns aos outros, e também ao povo. Mostrar-se era uma forma de deixar claro as hierarquias, tanto no interior do castelo quanto na relação do povo do castelo diante do povo da cidade e do campo. Da roupa à etiqueta, tudo espelhava o mundo rigidamente hierárquico dado antes pelo sangue que pelo dinheiro, ainda que este já pudesse, mesmo no Antigo Regime, a avisar que com o desenvolvimento do capitalismo ele é que iria dar as ordens.

Os burgueses, por sua vez, procuravam mostrar que essa vida dos nobres era ridícula. Que essa exposição era teatro ruim. Com isso, denunciavam como não natural o poder hierárquico emanado do castelo. Cada vez mais defendiam o natural diante do cultural. Divulgavam a noção de natureza como fonte de legitimidade de pensamentos, ações, comportamentos e cargos, em contraste com o cultural, tomado simplesmente como superficial. O natural, insistiam os burgueses, dizia respeito ao essencial e íntimo. O cultural pertenceria ao não essencial, o meramente superficial, o campo das convenções sociais propícias à dominação.

Em termos filosóficos, Jean-Jacques Rousseau se tornou um autor icônico da caminhada burguesa. Ele defendeu como critério de verdade o “coração sincero”, ou seja, a disposição humana de ficar alheia à máscara social e, assim, garantir uma atuação da razão não maculada pelo convencional. Rousseau jogou a verdade para a intimidade, e empurrou a mentira para o mundo exterior, para a atividade social. Assim, os nobres viveriam na falsidade, e a ordem burguesa que viria a ser instaurada privilegiaria a privacidade e a intimidade, gerando um reino da verdade.

O mundo burguês ou moderno criou então a duplicidade de esferas. A esfera pública e a esfera privada espelharam a própria vida burguesa, até mesmo a sua arquitetura. A casa do burguês comerciante tinha duas partes, o interior para o cultivo da intimidade, a parte da frente para abrigar o balcão de negócios. Esse modelo logo se transferiu para a política. O plano familiar abrigaria o privado, o plano dos negócios estatais abrigaria o público. O ambiente de trabalho, ou seja, a loja, a fábrica e os bancos serviram como um espaço intermediário, sem no entanto criar outra esfera para o discurso.

As leis da burguesia giraram em torno de proteção da propriedade privada. Junto disso, o cultivo da privacidade se tornou obrigatório e praticamente senso comum. Como corolário, elegeu-se aí a preservação da intimidade. Nasceu o chamado direito à privacidade, junto dele o direito à intimidade como campo quase que indevassável. Uma série de pensamentos e comportamentos ficaram sob as chaves desse campo.

Mas esse tipo de vida, desde os seus primórdios, apontou para o seus limites. Pois junto de tudo isso, a economia que se desdobrou nas várias fases do capitalismo, infestou o mundo de mercadorias. Tornou a mercadoria o centro das atividades vitais. Criou a sociedade como “sociedade de mercado”. Ora, todos sabemos que a mercadoria transformou as cidades em conjunto de vitrines. Fez da sociedade de mercado uma sociedade de imagens. Concomitantemente promoveu a separação do produtor em relação ao produto. O produto, então como mercadoria, pode se transformar em elemento de sedução e comando. Assim, a mercadoria inverteu sua relação com o homem. Passou a comandá-lo como algo vivo, ativo, pondo o homem na sua atividade de espectador e comprador/consumidor. O homem passou a ser o elemento senão propriamente morto, ao menos como o elemento efetivamente passivo. Uma nítida inversão da relação sujeito-objeto.

Quando o homem notou que o mundo realmente havia mudado, que a modernidade tinha se instaurado, ele já estava inteiramente sob o comando da mercadoria e da mercadoria universal, o dinheiro. A sensação de que essas entidades eram os vivos verdadeiros, logo fez o homem, para se sentir vivo, buscar imitá-las. As características da mercadoria e do dinheiro, em especial sua forma de comando, sua velocidade de circulação, e seu caráter abstrato, passaram a ser virtudes a serem copiadas pelos homens. O homem tentou andar velozmente. Tentou ter dinheiro e mercadorias para ter comando. Buscou deixar particularidades locais de lado e se tornar cidadão de uma nação, ou talvez cidadão cosmopolita. Essas três características puderam se realizar não pelo corpo ou pela alma, mas, com mais chances de se efetivarem, como imagens. Muitos viram na “espetacularização do eu” uma expressão capaz de captar o homem feito imagem e produtor de imagens. A mídia foi do livro e do jornal para a TV e Internet, passando pelo cinema.

Até aí, minha narrativa repete a de vários outros autores. Todavia, agora coloco minha própria colher nesse caldo.

Prefiro falar da contemporaneidade não como “sociedade do espetáculo do eu”. Vejo todos nós envolvidos na sociedade da teatralização. Estamos facilmente à beira da normalização do histerismo. O histérico pode ser definido como aquele que teatraliza a si mesmo. O que fazemos com as imagens, que em geral são imagens de nós mesmos povoando o mundo à medida que povoa a infosfera, nada é senão a atividade de reprodução de situações ficcionadas de nosso eu. A internet, pelos seus monopólios produtores de apps, já prepararam todos os seus algoritmos para que possamos agir como histéricos. Daí os filtros de todos os tipos para a produção de imagens de nós mesmos em todo tipo de situação. A intimidade é devassada. E a imagem ganha êxito de aplauso quanto mais ela se apresenta como bizarra. Tudo é entretenimento. Tudo ao mesmo tempo é trabalho, em geral trabalho não pago, capaz de gerar excedente para empresas vorazes. O capitalismo de plataforma se desenvolve na economia da atenção, na aquisição e venda de dados. Os dados só são produzidos em grande volume por conta do histerismo, ou seja, de nossa necessidade de tudo postar, de participar ao máximo da oportunidades de teatralização do eu.

Caso nossas fotos e vídeos na internet fossem realistas, toda a atividade de postagem e participação na internet teria um limite. O ilimitado se faz presente no momento em que todos os nossos posts são ficções de nós mesmos, são bizarrices provindas de nosso histerismo, de nossa necessidade de testar todos os filtros, todas as possibilidades do teatro do eu. Não fazemos isso por marketing. Não fazemos isso para nos divertir. Não fazemos isso por trabalho. Atuamos assim pela educação dada pelos algoritmos. Eles nos trouxeram à normalização de uma patologia, a vida histérica. Essa vida histérica é a garantia da sobrevida do capitalismo de plataforma, em especial da GAFAM: Google, Amazon, Facebook (hoje Meta) e Microsoft.

A sociedade do espetáculo do histérico é o que parece melhor descrever nossa contemporaneidade, só possível pela surgimento da internet e capitalismo financeirizado que foram gerados em simbiose nós últimos quase trinta anos.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista.