“Ciência baseada em evidências”. É uma expressão mágica. Com ela na boca o homem do senso comum engasga de tanta realidade que engole. A mulher, então, nem se fale! Ela se empanturra de realidade. Chega a estufar a pança, até parece estar grávida!
Essas pessoas possuem uma espantosa facilidade em apontar a “realidade”. São como aqueles advogados sabichões que fugiram da escola, que chegaram empurrados até a faculdade, e que não se poupam de passar vergonha. Dizem sem titubear: “contra fatos não há argumentos.” Não ocorre a eles pensar um pouco e perceber que todo “fato” é uma construção em que sempre cabe no mínimo uma pitada de argumentação – até mesmo aquele fato que nós vimos! Pois quando vemos, o que nos fica é nossa narrativa para nós mesmos sobre o que vemos. Nossa linguagem não poderia estar filtrando nossa visão?
“Evidência” e “fatos” são duas palavrinhas da cozinheira que jamais passou da página dois do seu livro de receitas. Sabe o elenco de coisas que devem ser colocadas na panela, mas carece de técnicas de cozimento. A semiformação é exatamente isso: a garota ou o garoto entra na escola, mas no decorrer dela, estremece por um percurso mediocrizado pela visão curta, e disso se segue o autodidatismo. O resultado desse processo chama-se arrogância da ignorância.
O que chamamos de realidade não é algo simples. “O que é a realidade?” e “como conhecer a realidade?” são perguntas com mais de vinte e cinco séculos. Criaram um ramo de estudos, a filosofia. Os afoitos a desconhecem por completo, sequer ouviram falar. São dopados por supositórios alucinógenos cujo rótulo vem com a seguinte frase: “esse medicamento tem o selo do Reino da Ciência Baseada em Evidências”.
Tornou-se um clássico da filosofia, com consequências sérias para os intelectuais de todas as áreas, a manutenção de uma certa desconfiança sobre o que está ao nosso arredor. Será que não estamos na Matrix? Será que a própria condição humana não é a de estar na já velha máquina, aquela que nos coloca em um mundo que não passa senão na imaginação?
Platão e Marx, distantes um do outro em mais de dois mil anos, construíram bons modelos no sentido de se afastarem da prática da cozinheira medíocre. Platão viu a condição humana como aquela de prisioneiros da caverna, os que tomam as sombras projetadas na parede como o que chamam de realidade. Marx, por sua vez, delimitou a caverna. As sombras na parede, ele as chamou genericamente de ideologia. Mais especificamente, batizou isso como fetichismo.
Platão queria liberar alguns homens da prisão da caverna. Ele não acreditava ser possível liberar todos. Só os vocacionados em alma poderiam ver certas propriedades das coisas de maneira pura, desvinculadas de quaisquer coisas. Então, estes, acabariam saindo da caverna. Em uma cidade idealizada, eles seriam os seus guardiões. Deles se tiraria o rei-filósofo.
Marx não via como sair da caverna senão destruindo senão toda a caverna, aos menos os seus muros, aqueles destinados a receber as projeções. Mudando as relações sociais, ou seja, eliminando a “sociedade de mercado” ou “sociedade capitalista”, todos os homens passariam a viver em uma realidade efetiva, e todos enxergariam essa realidade. Aquilo que os vinha cegando e enganando, o fetichismo da mercadoria e do dinheiro, desapareceriam. Com o fim da ideologia, ou seja, com a própria parede derrubada, as imagens nem teriam onde ser projetadas.
Platão acreditava que aqueles que pudessem ser treinados para se tornarem os guardiões da cidade, teriam de ser acostumados a pensar com a matemática (a geometria, melhor dizendo), se preparando para o pensar dialético. Estariam treinados para enxergar pelo intelecto, veriam a justiça sem precisar se prender a um ato justo ou injusto. Com isso, ficariam quase aptos a pensar sobre a justiça na cidade, e então serem governantes capazes de manter a cidade na virtude de ser justa. O passo final seria receber a visão intelectual do bem. O bem seria a virtude máxima responsável por todas as outras virtudes. O rei-filósofo não teria dificuldade de banhar-se na luz do bem.
Marx nunca pensou em treinar governantes. As sombras na paredes não precisariam ser reconhecidas como falsas. Ter consciência da falsidade delas não faria alguém capaz de escapar delas e tomá-las como o real. Reconhece-las não as faria desaparecer. Iriam continuar como sendo a realidade para aqueles que ficassem no interior da caverna, mesmo se informados pelos guardiões que estavam vendo sombras, e não peças da realidade. O fetichismo da mercadoria e do dinheiro, para Marx, não seria um causador de dominação por meio de ideias. O fetichismo seria ele próprio real, imiscuído nas próprias relações capitalistas, e jamais poderia ser vencido por um vislumbre dado pela educação – seja em matemática ou dialética ou ambas.
Assim, as narrativas de Platão e Marx foram as maneiras paradigmáticas da filosofia falar das suas possibilidades de esboçar a ideia de desconfiança sobre se vivemos ou não no real, e sobre, afinal, o que é o real e sobre se podemos acessá-lo ou não. Estar fora da Matrix seria estar na condição do rei-filósofo em Calípolis, na conta de Platão, ou estar na condição de cidadão na cidade comunista, na conta de Marx.
Platão iniciou um tipo de literatura – a filosofia – que foi continuada por muitos outros. De maneira tão dramática quanto Platão, Marx fez parte dessa literatura. Nesses vinte e cinco séculos de filosofia, os que puderam ler A república, e nela a “Alegoria da caverna”, e também O capital, e nele o capítulo sobre o “Fetichismo da mercadoria”, tiveram a chance de se transformar em pessoas estranhas. São essas pessoas que sabem que “a ciência baseada em evidências” é algo em relação ao qual teríamos de ter muitas reservas. “Evidência” é alguma coisa que pode muito bem não passar de correntes que se colocam em prisioneiros, forçados a olhar para o muro em que se projetam sombras. Um garoto que viu Matrix, o filme, e que fique curioso sobre Platão e Marx, poderá evitar de passar vergonha, como a que passa aquela cozinheira que não foi capaz de sair da página dois nem mesmo do seu livro de receitas.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista.
Bela narração filosófica!
Aplausos!…
A guerra semântica nos últimos anos, principalmente, tem nos levados a redobrar os cuidados com nossa escuta para não sermos pegos enganados por aqueles que possuem o único recurso para alcançar seus objetivos que é o de lançar mão de discursos falsos com a finalidade de manter sua posição sócio-econômica e esconder seus erros. Sabemos que “evidências” é um elemento do campo da lógica e não da ciência ou política,
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