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A LITERATURA CHATA NÃO PRECISA TER COR!

Lula falou que leu Torto Arado e gostou. Devemos ler o que nossos presidentes leem?

FHC entrou e disse que estava lendo A brevidade da vida, do Sêneca. Um estoico. Nunca um presidente havia dado um recado tão certeiro sobre leitura. Ele privatizou tudo e colocou o país nos trilhos do neoliberalismo. Só estoicos poderiam realmente aguentar o que aguentamos.

Fiquei pensando em ler o Torto Arado. Adiei. Esses dias me caiu nas mãos um artigo do autor, o Itamar Vieira Júnior. Estava na Folha. Ele comentava um livro de um tal de Nego Bispo. Itamar e Bispo falando frases que Paulo Freire usou nos anos cinquenta! Sem citar Freire, claro. São inventores da roda. Descobriram que as pessoas perdem suas identidades culturais diante de processos de colonização! Meu Deus! Fiquei pasmo com tanta novidade e sabedoria.

Logo em seguida, vi em uma revista da direita, a Crusoé, a frase “Por que nunca lerei os livros de Itamar Vieira Junior”. Uma manchete. E na sequência: “Não, isto não é uma provocação: ao contrário, é uma manifestação de respeito ao escritor negro que não considera que o leitor branco esteja equipado para compreender sua obra”. Fui ver se o periódico da direita havia mentido. Não tanto. De fato, Itamar disse coisa parecida. Aí percebi que de fato Itamar e Nego Bispo não eram plagiadores de Paulo Freire. Eles nunca ouviram falar em Paulo Freire.

Nos anos sessenta, nossos escritores que vinham do meio popular ou que estavam envolvidos com o meio popular, faziam questão de estabelecer pontes de ida e vinda entre a cultura erudita e a cultura popular. Agora, a literatura identitária e os estudos decoloniais fazem questão de dizer: não há pontes, não tentem atravessar. Fiquem cada um nos seus lados, promovam o apartheid social. O ressentimento subiu à cabeça. Temo que a empáfia desça pelo rabo.

Foi por isso que resolvi ler Itamar Vieira. Peguei o Torto Arado. A leitura foi rápida até demais. Um capítulo em um instante. O texto é fluído. Está bem escritinho. Mas terminado o primeiro capítulo, não tive nenhum desejo de ir para o segundo capítulo. Itamar talvez tenha razão mesmo: não sou suficientemente colonizado. Ou o problema é de branquitude. Sou branco demais. Mas, não posso tomar sol, na minha idade isso pode dar câncer. Ou seja, pode ser que não compreendi a obra. Em todo caso, como a frase de Itamar é tipicamente lacradora, ela expulsa o crítico antes do crítico fazer a crítica, resolvi repensar melhor.

Por que não quis passar para o segundo capítulo? Ora, porque o primeiro capítulo é chato e banal. Uma avó que faz rezar no terreiro eu já vi ao vivo em todo quanto é lugar. Criança cortando língua com faca nunca me faltou na infância. Baú com apetrechos de gente velha ou nova e misteriosa, então, nem se fale. Minha irmã negra, Berenice, tinha um desses baús em baixo da cama dela. Tudo que eu mais desejava era abrir aquilo. Nunca consegui. Tudo isso é muito banal, chato, entediante e sem qualquer capacidade de transmitir experiências humanas que possam ganhar páginas da literatura, como as que a gente aprendia na escola ao ganhar um livro de Rubem Fonseca.

Bem, posso estar com problemas de vacina. Afinal, há uns dias, havia relido Quincas Borba, do Machado. Isso pode ter complicado minha vida, no sentido de fazer meu paladar ficar um pouco mais, digamos, restrito. Sou daqueles que acha que a literatura que vale a pena pertence ao inacabado de “Cenas da vida de um duplo monstro”, de Nabokov. Ali há a experiência humana, terrivelmente humana. A história de gêmeos que se sentiam um ao outro, e que eram postos para servirem, em suas casas, de personagens de circo para a redondeza e visitantes. Eis a verdadeira experiência da perda da língua.

Perda da língua ocorreu comigo. Eu perdi a fala, a língua, e tudo o mais, quando li pela primeira vez “Pai contra mãe”, de Machado. Quando li “A cartomante”, aí sim, nem sombra mais da minha língua. Não a perdi para fora, mas para dentro, eu engoli a língua. Na escola ouvi dizer que Machado era um escritor negro. O melhor de todos os nossos escritores. Fui ler coisas que tinha a marca dele. Nunca aceitei algo que não fosse competitivo com o produto de quinta categoria de Machado, ao menos!

Perder a língua. Aí está uma expressão que vale a pena um pensamento. Ou até dois. Os eunucos ousados perdiam a língua. Nossos indígenas e negros perderam a língua – não há dicionário de muito do que se falava no Brasil colonial. Agora, quando as crianças todas aprendem mais palavras com a máquina da infosfera do que com a mãe, estamos perdendo a língua. Pois a palavra é impossível de vir pela máquina. “Menina que fala palavrão, vou cortar sua língua”, diziam nossos avós. Ou melhor, os avós de gente já mais velha, como eu. Criança presa por empresária, recentemente, estava com a língua decepada. As histórias proliferam.

Cada uma dessas história, pela regra que se está disseminando, no Brasil de hoje, terá o público de um só indivíduo. Pois cada uma dessas histórias terá que ter um leitor especial, um só, portador da cor específica para entender a história. Não vai dar certo.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista, de cor “não declarável”.

2 comentários em “A LITERATURA CHATA NÃO PRECISA TER COR!”

  1. Histórias bem contadas, realmente tem um poder de disseminação muito grande, e não precisa de fato “ter cor”. Daí o tolhimento.
    O identitarismo restringe muito o compartilhamento de ideias e pontos de vista. Deveríamos ter mais noção destes aspectos, ao nos depararmos com sugestão de leitura dos presidentes da República.

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