O ministro Gilmar Mendes está errado. Ele disse, no Twittter: “O conceito de democracia não é relativo. Após a superação dos regimes totalitários do século XX, a democracia não pode, seriamente, ser concebida como uma fórmula vazia, apta a aceitar qualquer conteúdo”. Ora, a democracia é um conceito relativo, pois diz respeito a algo inventado por nós, humanos, e recriado de modo diferente dependendo do tempo e lugar. Isso não implica em fórmula vazia, é justamente o contrário. Exatamente por ser de nossa responsabilidade, preenchemos o conceito segundo a ordem da filosofia política de elaboração de conceitos, e não com qualquer conteúdo.
O fio condutor do conceito de democracia é o de autogoverno de um povo. Em todos os lugares que buscamos encontrar uma democracia, respeitando a matriz linguística grega (demo = povo e cracia = governo), procuramos saber se o povo está exercendo o poder de governo sobre si mesmo ou se há uma delegação de governo para algo exterior ao povo. Esse é o elemento básico do conceito. Mas um conceito não se encerra em seu elemento básico. Ele se complexifica segundo a relação que possui com cada povo e com cada época. Aliás, um conceito só e de fato um conceito útil na complexificação, na sua saída da pobreza linguística da fórmula simplória.
Vejamos alguns exemplos da relatividade do conceito de democracia. Tomemos os gregos antigos, os americanos e nós mesmos.
Os gregos exerceram o autogoverno por meio de voto que deliberava sobre propostas, mas, em termos de pessoas para governar, eles preferiam a escolha aleatória, retirando nomes de dentro de um vaso, por meio da sorte. No Brasil de hoje, uma escolha de governantes na base da sorte seria uma forma de alienar-se do autogoverno. Não concordaríamos com o conceito de democracia dos gregos, pois nele a representatividade seria demais estranha para o nosso gosto.
Os gregos ligavam a democracia à cultura, e portanto ao respeito aos deuses da cidade. A introdução de novos deuses era proibida, e o culto aos deuses da cidade era uma maneira de respeito ao povo, e elemento essencial do povo se autogovernar. Sem os deuses a cidade não só não teria protetor como, pior ainda, não teria ideal de perfeição a ser seguido. Ora, na nossa democracia, o que mais achamos de antidemocrático é que a cidade (o estado) encampe algum deus. Nossa democracia se alia a uma república laica. Sendo assim, nosso conceito de democracia está em franca oposição ao conceito dos gregos antigos.
Nos Estados Unidos de hoje, o voto é popular, mas referendado pelo voto do colégio eleitoral. Ora, no Brasil o voto é apenas o voto popular. O conceito de democracia americana, para nós, no que se refere à representação, certamente não agradaria. Além do mais, nas eleições americanas para presidente, há na cédula eleitoral uma série de questões plebiscitárias. Nós aqui no Brasil, se submetidos a isso, acharíamos um tal sistema excessivo e capaz de desvirtuar a atenção do eleitor.
Assim, não é correto dizer que o conceito de democracia é um só, e as diferenças se dão na aplicação do conceito. Não! Isso seria fazer exatamente o que o ministro Gilmar Mendes condena. Ficaríamos com a fórmula resumida que diz que “democracia é o governo do povo”, e isso é algo tão pobre que seria como ter uma fórmula vazia. Justamente para não termos a fórmula vazia é que a cada povo e a cada momento histórico temos que reconstruir o conceito e aprimorá-lo. Assim, vamos gerando conceitos de democracia.
Podemos então ter elementos que cabem na discussão da elaboração do conceito de democracia. Aqui vão seis deles: 1) a forma de representação de governados pelos governantes; 2) a legitimidade e a legalidade do sistema eleitoral para a escolha de pessoas para o governo e propostas a serem executadas; 3) a legitimidade e a legalidade da oposição ao governo vigente; 4) a dialética entre liberdade e igualdade que permeia as necessidades do autogoverno; 5) os direitos de expressão e existência das minorias; 6) a avaliação do poder financeiro sobre o sistema eleitoral e sobre o sistema de leis. Se olhamos com cuidado para cada um desses itens, então, o “governo do povo” ou “autogoverno de um povo” pode se encaminhar para a formação de um conceito de democracia. Cada vez que fizermos isso e criarmos um conceito que deverá estar vigente na prática de um povo, teremos feito algo relativo a esse povo. Nesse sentido, a relatividade do conceito de democracia é inerente à necessidade de não deixar que nos enganemos sobre a efetiva democratização da democracia escolhida.
Precisamos sempre ter em mente que relativo tem seu contrário em absoluto. E que universal tem seu contrário em particular. Assim, a democracia pode ser considerada um valor universal, pois válida dentro de um universo, por exemplo, o Ocidente hoje. Mas ela, como conceito e não como valor, é relativa à cognição de cada povo sobre o que cada povo entende pelo autogoverno. Ela não pode ser absoluta. Isso simplesmente seria dar um caráter extraterreno à democracia. E a democracia é exatamente a experiência histórica que tira o poder dos reis calçados por mandatos divinos, e deixa o povo no autocomando.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista.
Obrigado pela explicação, professor Paulo.
Este João Emiliano é um filho da puta-além de ser um homem feio
em todos os sentidos.Como eu disse,é um feio e filho da puta.
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