Pular para o conteúdo

INFORMANIA. TEMOS ALGUM RECURSO CONTRA ELA?

“Tudo que era sólido desmancha no ar”. Essa frase se tornou célebre. Ela está no Manifesto comunista de Marx e Engels. Nesse opúsculo, eles descreveram de modo esquemático as revoluções que a burguesia impôs ao mundo, levando às transformações da sociedade que fizeram ruir a base feudal para fazer nascer a sociedade capitalista. A metáfora do desmanche era boa, e muitos acreditam que hoje ela nem é mais metáfora. O virtual ocupando o lugar do real, ou seja, sendo ele próprio o real enquanto hiper real, diz tudo sobre coisas materiais que se desmaterializam. Em um livrinho sobre o Manifesto, Zizek diz exatamente isso. (1) Inauguramos a era em que a metáfora de Marx se tornou uma expressão literal. Todavia, creio que é preciso tomar cuidado com essa leitura tão fácil e, digamos, sedutora.

Um dos melhores livros de Byung-Chul Han diz respeito às transformações atuais que nos faz viver segundo as regras da rede virtual internética, em que ele centra atenção sobre o desaparecimento das coisas. (2) Ele diz: “é nosso inebriamento de comunicação e informação que leva as coisas a desaparecerem”. E continua: “informações, isto é, não coisas, se interpõem às coisas e as fazem desaparecer”. “A digitalização descoisifica e desemcorpora o mundo”. “A ordem digital descoisifica o mundo ao informatizá-lo“. “Não as coisas, mas as informações determinam o mundo da vida. Nós não habitamos mais a Terra, mas o Google Earth e Cloud”. Então, “o mundo está se tornando cada vez mais incompreensível, mais nublado e fantasmagórico. Nada é palpável e tangível“.

A tese de Han pode ser assim sintetizada: perdemos aquilo que nos dá a “tonalidade afetiva”, base para o pensamento conceitual, e ficamos com o Big Data, que nós dá elementos fora de narrativas e, portanto, sem sentido. Isso impossibilita a formação de conceitos e, assim, barra o pensamento. Pioramos cognitivamente e eticamente ao mesmo tempo. Tudo isso é resultado da “intoxicação da comunicação”. Viramos “infômatos”. Tornamo-nos “infomaníacos”.

Claro que Gilles Deleuze já havia nos alertado do perigo da sociedade atual como uma sociedade que não impõe o silêncio, mas nos requisita a falar e fazer barulho demais. Aliás, uma tese que vai na linha já estabelecida por Foucault: nossa sociedade moderna e contemporânea não é repressiva, mas força nossa produtividade. E isso é coadunável com a ideia de neoliberalismo: temos de nos tornar produtivos a ponto de sermos empresários de nós mesmos, portadores do tal do “capital humano”.

Por tudo que sabemos hoje, capitalismo financeiro, neoliberalismo e internet são processos simbióticos. Eles fazem parte do que, em outro lugar, descrevi como semiocapitalismo e crescente desreferencialização. (3) Aqui, tomando a questão da descoisificação, podemos fustigar os ideólogos que fazem a apologia dos benefícios da “sociedade da informação” e, mais ainda, propagandeiam a teoria do capital humano. Trabalhadores informados + meios que facilitam a produtividade = felicidade no capitalismo. Essa equação é facilmente desmontável. Mas, há mais o que fazer com a tese da descoisificação.

No âmbito das teorias críticas ao capitalismo, falávamos da coisificação e do fetichismo. As pessoas se coisificam enquanto que as coisas se fetichizam. Nossa preocupação era com o “fetichismo da mercadoria”. Toda a minha geração foi formada conhecendo muito bem essa crítica. Mas, e agora? Podemos continuar a pensar em fetichismo da mercadoria ainda?

Na época de crescimento do capitalismo industrial, tanto os desenhos animados do Mickey quanto os primeiros filmes de Chaplin – Byung-Chul Han nota bem – mostravam a rebeldia e a malícia das coisas. Depois, em nossa era, as coisas já estão todas submissas. Então, em nossa era, essa falta do elemento material, corporal, que se põe como contraste, ajuda a sermos gerados fora do campo que cria a alteridade. A tese de que perdemos o Outro é comum a todos os livros de Byung Chul Han. Mas, ele não deixa de falar, ainda que brevemente, da noção de fetichismo: “desapareceu o fetichismo das coisas, estamos nos tornando fetichistas de informações e dados”. Ora, se invocarmos aqui os estudos de tantos outros, em especial os de Pasquinelli (4), veremos os modos pelos quais a lógica da mercadorização se apropria das informações, em especial no contextos da redes do “capitalismo de plataforma”. Assim, a teoria do fetichismo não precisa desaparecer, mas se recompor diante da virtualização e do hiper real que se torna real em nossos tempos. O fantasmagórico, que Marx apontou como sendo o resto do trabalho humano roubado e colocado na mercadoria, agora retorna no próprio Big Data. Os algoritmos são fantasmagóricos. Ora, a Inteligência Artificial é suprassumo do fantasmagórico. Ela é criada por nós, mas se retroalimenta e tenta imitar nossa inteligência. Chega a nos convencer que pensa, uma vez que imita nosso pensamento quando deixamos de pensar para apenas processar e calcular. Quando deixamos de lado o pensamento com o coração, nos tornamos máquinas que imitam a máquina que criamos. Povoamos todo o ambiente com fantasmas.

A rebeldia das coisas surge então como fábula. Toy Story é uma fábula: brinquedos possuem vida quando damos às costas a eles. Mas, para que não façam isso, criamos a internet das coisas. Voltamos ao controle, ao menos aparentemente! Coisas não falarão pelas nossas costas! E depois da Segunda Guerra Mundial, nos especializamos na tarefa de desmaterializar o mundo para valer: quebramos o átomo! Dominamos as coisas, e então as fizemos participar do perigo da hecatombe ou então simplesmente em fantasmas que imitam o nosso pior, nosso Logos agindo sem Eros e Cronos. Nessa atividade, fazemos reinar o pensamento instrumental.

Diante disso tudo, talvez pudéssemos ceder ao pessimismo de Byung-Chul Han. Todavia, algo nos diz que não devemos ir por esse caminho, ele é fácil demais. Lanço mão aqui de um detalhe ainda não resolvido pela marcha da história de Han: o homem é um animal que tem mãe. Foi assim que defini o homem em um livro dedicado a Peter Sloterdijk. Até mesmo o filho de Deus precisou nascer não da mágica costumeira dos mitos, mas de um útero. (5) Ou ele fazia isso, ou não seria humano, e então toda cristandade não teria sentido algum. Na teoria de Sloterdijk, somos produtos de úteros não de simples progenitoras, mas de mães. Toda a sinestesia uterina, gerada entre feto e placenta, diz respeito a uma “ontologia do dois”, não do um. E somos criados, então, em ressonância – um conceito chave do filósofo alemão. Nessa ressonância entre feto e placenta, ocorre uma espiritualização crescente, em que a voz da mãe cumpre uma função importante. Depois, outros elementos também participarão do duplo, quando a placenta for embora: o daimom, o anjo da guarda, o amiguinho secreto, etc. Tudo isso explica nossa linguagem, que é reflexiva, que é feita por um duplo. Sendo assim, por termos um pé na Terra na medida que viemos de úteros, estaremos sempre com algum fio de imunidade contra a desmaterialização. Nossa espiritualização é forçadamente fruto de sinestesia. E nossa descoisificação do mundo e concomitante descorporalização não se faz de modo fácil, ela é imposta a duras penas sobre nós pela tríade entre financeirização, neoliberalismo e internet.

Claro que Franco Berardi pode nos dizer, como já citei várias vezes: ah, mas hoje a juventude aprende mais palavras com a máquina que com a mãe. Isso quebra a possibilidade do pensamento pleno. Sim! Mas o nosso aprendizado uterino ainda nos garante nove meses de imunidade diante da infosfera, nos protege da chance de nos tornarmos infômatos. A infomania é posterior ao passo fora da vagina. Nascemos preparados, com algum recurso contra ela!

1. Zizek

2. Han, B. C. Não coisas. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 8.

3. Ghiraldelli

4. Pasquinelli

5. Ghiraldelli

6. Ghiraldelli

1 comentário em “INFORMANIA. TEMOS ALGUM RECURSO CONTRA ELA?”

Não é possível comentar.