Platão definiu o homem como o “bípede sem penas”. Tratava-se de uma definição, mas sem pretensões filosóficas. Munido da filosofia, Platão preferiu falar de “natureza humana”. Esta, então, seria caracterizada pela “alma racional”. Filho de médico e ele próprio amante da biologia, Aristóteles preferiu colocar o homem como parte do reino animal, e o distinguiu por meio da expressão “animal racional”. Mais tarde, mas seguindo o contexto dessa tradição dos clássicos, de buscar essências, as diferenciações sexuais se viram descritas por critérios físicos e fisiológicos. O homem seria, em última instância, alguém portador de órgãos sexuais masculinos, ou seja, pênis e escrotos. A mulher seria a portadora de vagina e, internamente, útero.
Quando as pesquisas médicas passaram a conhecer melhor as prerrogativas dos hormônios, houve uma relativa mudança de conceitos. A “masculinidade” e a “feminilidade” passaram a ser atribuídas ao funcionamento hormonal dos organismos. Todavia, isso não eliminou o essencialismo. Continuou-se uma busca pela “natureza humana” do homem e da mulher, e o campo de busca manteve-se como sendo o do “organismo biológico”. O essencialismo foi abandonando o campo tradicionalmente metafísico e se a metafísica se imiscuiu no seu oposto, o materialismo. Gênero e sexo se tornaram um berço de um tipo de materialismo metafísico.
Nesse contexto, houve até uma variação: alguns passaram a dizer que embora o gênero não fosse determinado pelo campo biológico, ainda assim o sexo o seria – impreterivelmente.
Do outro lado do espectro filosófico, ou seja, longe da herança do platonismo, vigora a tradição pragmatista. Nesse caso, homem e mulher são papeis sociais. Gênero e sexo (considerando aí especialmente Judith Butler) são da mesma ordem, e se fazem a partir de práticas sociais. Nesse caso, a via metafísica, de busca da natureza ou essência, é substituída pela prática social que, em cada sociedade, ganha afazeres distintos. Nasce aí uma postura realmente antimetafísica, pois a prática social é necessariamente plural, dos a diversidade social.
Segundo essa linha de pensamento, cresce a importância das fases de transição entre a vida infanto-juvenil e a vida adulta.
Quando criança, caímos em redes sociais e linguísticas já prontas, e obedecemos suas disposições, regras e normas. Passamos por aquilo que as ciências sociais e pedagógicas chamam de socialização. Na adolescência, nossa socialização se amplia a ponto de até negarmos que se trata de socialização. Pois entramos para campos de informação maiores, passamos então a questionar todo aquele mundo que nos foi dado pela socialização das nossa vida infantil. No contexto dessa crítica, também fazemos uma revisão da nossa identidade de gênero e sexo. Relemos as narrativas que contam sobre nossos papeis na sociedade, e adotamos uma maior adaptação do que é o “feminino” e o “masculino” para os colegas, amigo e, enfim, para nós mesmos. Da roupa às práticas religiosas, da compreensão política até os critérios de lealdade à família, das práticas amorosas até as práticas sexuais, tudo é revirado, tudo é posto de ponta cabeça, e o adolescente busca criar projetos para si mesmo, inclusive o de identidade de gênero e sexo.
“Não se nasce mulher, torna-se”. Essa frase se tornou lugar comum da literatura. Simone De Beauvoir a pronunciou para comentar que a mulher é uma construção social. Poderia ter dito a mesma coisa do homem. Hoje em dia, muitos admitem que a sociedade possui uma infinidade de gêneros e interesses sexuais, além do que agora é chamado de binarismo, a ideia de que a sociedade é dividida em “homem” e “mulher”. Podemos falar de “trans”, “gays”, “travestis” e por aí vai. São identidades que se põem não como derivadas das práticas que geram “homem” e “mulher”, mas maneiras do indivíduo humano de se colocar no mundo segundo práticas que são diferentes das práticas sociais do binarismo. Em outras palavras: seja lá qual for o gênero e sexo pelo qual alguém se apresenta para outros e para si mesmo, nenhuma maneira de ser do indivíduo humano ultrapassa em muito as práticas sociais de suas sociedades. Ser homem e mulher em uma sociedade é algo datado e localizado, que se realiza por conta do indivíduo humano seguir um conjunto de práticas sociais, ora, ser gay, travesti, trans etc., também!
Quando optamos pela narrativa nutrida pelo pragmatismo, abandonando a narrativa essencialista, há uma vantagem em relação à vida democrática. A democracia sempre se viu como um lugar capaz de gerar pessoas com comportamentos muito diversos. A narrativa pragmatista é exatamente a narrativa que cria melhores justificativas para as possibilidades de uma vida menos incômoda do ponto de vista de gênero e sexo. Também é a narrativa que evita o identitarismo, ou seja, não serve para se fazer a apologia de uma identidade em detrimento de outras. Afinal, as práticas sociais na democracia são em geral incentivadas a serem diversas, sem hierarquias criadas a partir de privilégios inexplicáveis.
Paulo Ghiraldelli, professor, filósofo, escritor e jornalista
Belíssimo artigo e reflexão amigo Paulo. Contrapondo o comentário acima Vida Longa e próspera a Paulo Ghiraldelli. Vou até escrever um texto a partir deste. Não deixe de registrar este pensamento em seu canal.
Quando teremos um circuito de palestra sua neste imenso Brasil?
Abraços
Joka Faria
http://entrementes.com.br/o-que-e-ser-homem-mulher-e-coisas-do-tipo/
Reflexão a partir da leitura deste texto de Paulo Ghiraldelli
“O que é ser homem, mulher e coisas do tipo” (Paulo Ghiraldelli)
Reflexão de Joka Faria
Em tempos que o debate da questão sexual e os comportamentos estão em pauta, este artigo do professor Paulo Ghiraldelli é bem esclarecedor. Temos convivido com as questões identitárias, as linguagens neutras e outras coisinhas. O ser humano é mais complexo do que conseguimos entender. Então ler um artigo deste é bem esclarecedor. Como o professor coloca um pênis e uma vagina não define comportamentos e gostos. E não deve se prender a rótulos como masculino e feminino. E a criatividade humana fica onde, na maneira de se vestir e se comportar?
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