O estudante de Praga é um filme alemão de 1913. O enredo é basicamente simples, e Jean Baudrillard (1929-2007) o utilizou para expor seu entendimento da noção de alienação, no sentido marxista do termo. (1) Retomo aqui o filme, mas não para repor a análise de Baudrillard, que acredito que, neste específico caso, ainda está sob o eco do capitalismo que já não é mais o nosso. O capitalismo atual, chamado de capitalismo financeiro e de plataformas, requisita o velho filme de uma outra maneira.
Na história de 1913, há a figura do estudante que uma vez empobrecido encontra com um velho senhor, e que na trama acaba se revelando como sendo o Diabo. Como de costume, o Diabo se aproxima daqueles que estão amargurados. O estudante havia visto suas chances amorosas irem por água abaixo, por conta de sua pobreza. O velho senhor aparece no seu quarto e lhe propõe um negócio: sucesso através do dinheiro em troca de um pertence qualquer ali do quarto, que ele pudesse carregar. O estudante fez o acordo, e o velho recortou a imagem do estudante no espelho, como se fosse um papel, colocou-o debaixo do braço e foi-se embora. Daí para diante, a vida do estudante foi de sucesso em sucesso, em todos os sentidos. Claro que ele passava diante de espelhos e notava que sua imagem não estava ali. Mas ele conseguia contornar tais dificuldades no mundo social, e de modo algum isso o impediu de continuar nos dias de glória. Isso foi até o dia em que encontrou com a sua imagem, andando pela ruas da cidade. O Diabo, como era o esperado, havia dado vida para a imagem, e soltou-a para ver o que ocorreria e assim se divertir. Daí para diante a vida do estudante não foi mais a mesma. Quando ele menos esperava, a imagem tomava o seu lugar e lhe deixava em situação difícil. Certa feita ele marcou um duelo, mas sendo bom esgrimista iria acabar com o oponente de um modo que ele avaliou que seria injusto, e então foi até o lugar para desmarcar tudo, mas quando chegou até lá o oponente já estava morto. A imagem havia chegado antes! Ela deu cabo do rapaz. A história continua assim, até a luta final entre o estudante e a sua imagem no quarto. Quando ele leva a melhor sobre a imagem, pondo-a no espelho de volta e atirando nela, obviamente é ele quem morre.
Baudrillard tira daí uma metáfora: a imagem é a mercadoria, que afinal de contas é produzida por nós, mas que, no capitalismo, é alienada e acaba se voltando contra nós, nos assediando continuamente. Ela, a imagem como a mercadoria, é parte de nós, nossa própria alma, todavia, uma vez no âmbito do capitalismo – que cumpre a função do Diabo -, torna-se valor de troca, e então se opõe a nós, cumpre a função de sujeito e nos coloca na condição de objeto. Essa inversão é bem conhecida. Quando vamos comprar algo, sentimos que esse algo nos comanda, inclusive do ponto de vista corporal. Em vários outros lugares lancei mão do exemplo da calça que olha para nós e nos faz emagrecer, nos faz ir em academia ou até fazer operações em nosso corpo, para então poder comprá-la. Ela dança sobre nós, como Marx, em O capital, disse que as mesas começavam a dançar. (2)
O uso que Baudrillard faz do filme é excelente. Todavia, a situação atual nos faz ver o filme de um ponto de vista até menos metafórico. O capitalismo atual privilegia a renta e não o lucro. Em termos técnicos, no âmbito do marxismo, o lucro provém da exploração do trabalho. Por sua vez, a renta provém da extração, dos juros, do aluguel, da expropriação de dados, da economia da atenção. Funciona nesse regime o capitalismo financeiro fundido ao capitalismo de plataforma. O procedimento, todos nós, hoje, conhecemos bem, como trabalhadores que obrigatoriamente utilizam as plataformas da Internet, as empresas monopolistas como Google, Facebook, Microsoft etc. (3) As máquinas algorítmicas apanham o saber sobre o mundo e sobre nós que fornecemos a elas ao frequentarmos as redes. Elas escalonam e hierarquizam esse saber, essas informações. Cria-se o Big Data. Com isso, vendem para as empresas os nossos gostos, comportamentos e formas de cognição. A cada vez entramos nas redes, nossos dados são colhidos, e ao mesmo tempo somos direcionados para o consumo de produtos, serviços, entretenimento e ideologias segundo os nossos gostos, de acordo com um padrão reiterativo. Formam então as bolhas. Bolhas de consumo são também bolhas ideológicas. Ou seja, elas funcionam pegando nossa imagem e devolvendo-a para nós. Então, essa imagem de nós mesmos nos assedia e nos comanda.
Para entender como esse capitalismo funciona, podemos recorrer a Gilles Deleuze (1925-1995). (4) Ele falou do término da sociedade disciplinar e da abertura de nossa época para a sociedade do controle. Seria o fim das instituições disciplinares que criavam aquelas pessoas que começavam e terminavam tarefas ou formações. Dizíamos que éramos moldados por tais instituições. Deleuze previu os desdobramentos do fim da sociedade analógica e o início da sociedade digital ou numérica. Deixamos de ser construídos por formas em que a escola é análoga à fábrica que é análoga à prisão que é análoga ao exército que á análoga ao hospital. Passamos a funcionar como números em um fluxo contínuo que nos constrói segundo um panorama aberto, que nunca tem fim. Nesses fluxos, não somos moldados, mas sim modulados. Desse modo, a imagem que é tirada de nós pelos algoritmos, reaparece andando por aí e nos assediando. Ela nos conduz ao que ela quer. Faz isso ao reaparecer para nós como se fosse um tipo de duplo, que aparentemente quer ser o que queremos ser. Então, nos dá comportamentos, gostos e formas de cognição que eram os nossos mesmos – ou melhor, uma versão mais esquematizada, mais estilizada de nós mesmos. Essa imagem que retorna, fruto de um espelho pontual nosso. Uma caricatura. À medida que aderimos a ela, deixamos de nos transformar. Ficamos reiterativos. Planejada pelo diabo-algoritmo, a imagem de nós é um eu empobrecido, pois crivado pela linguagem de máquina, que favorece a semiótica e não a semântica. (5) Isso impede nossa relação com o Outro. A imagem é o nós empobrecido, que nos domina. Ela foi formada sem o Outro. E nós, aderindo a ela, deixamos de ser contrariados pelo Outro, e ficamos na zona de conforto de receber sugestões de um pseudomesmo. Ficamos iguais ao que éramos em determinado ponto do espaço-tempo, mas segundo um captação bem parcial do que éramos. Somos jogados para um lugar fixo. Somos obrigados a nos mover na bolha criada pelo algoritmo-demônio. Assim funciona o capitalismo de plataforma, na simbiose com o capitalismo financeiro. Essa subjetividade do capitalismo atual é a subjetividade maquínica. (6)
Ao frequentarmos a rede, ao nos integrarmos ao capitalismo de plataforma e nos tornarmos partícipes da subjetividade maquínica, somos como o estudante de Praga. Somos assediados pela nossa imagem. Enfrentamos um duplo nosso, mas que é um duplo caricaturesco, pois formado por algoritmos com alta capacidade de nos reduzir a alguém que é dominado por narcisismo crescente. Esse narcisismo se torna real e nos modula. O eu que nos assedia, nossa imagem, não tem nenhuma sociabilidade, nenhum afeto, nenhuma contrariedade vinda da dialética com o Outro. É um eu achatado, consumista, realista, incapaz de sonhos e projetos. Eis que ao encontrarmos esse eu, não o modificamos mais, mas o reiteramos. Adotamos esse como sendo o nosso eu. Pois a montagem de um novo eu pelos algoritmos é na verdade a montagem de um eu muito próximo da primeira versão que a maquinaria monta. A máquina não incorpora vivências, ela as elimina. Todo dia frequentamos esse encontro com a imagem posta viva pelo Diabo.
“Torna-te o que tu és”, diz o Diabo, parafraseando Nietzsche de um modo completamente oposto ao do filósofo alemão.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista
(1) Baudrillard, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Elfos, 1995, pp. 201-210.
(2) Marx, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2018 p. 146
(3) Srnicek, N. Plataform capitalism. Malden. Polity Press, 2017.
(4) Deleuze, G. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, pp. 219-226.
(5) Ghiraldelli, P. Semiocapitalismo. Ibitinga/São Paulo: CEFA Editorial, 2022.
(6) Ghiraldelli, P. Subjetividade maquínica. Ibitinga/São Paulo: CEFA Editorial, 2023.
Você é uma inspiração. Só os intelectuais entendem!
a vida baseada na nossa imagem nos leva à morte da semântica, à morte do significado da vida
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