Prefácio do livro de Olgária Matos, Momentos Filosóficos, variações benjaminianas. São Paulo/Ibitinga: CEFA Editorial, 2021. Para comprar: https://amzn.to/3qlOpRy
O escrito de Heidgger que mais me impressionou é o do curso de 1937 na Universidade de Freiburg. Nele, o filósofo dá um salto da filosofia para as profundezas da filosofia. Interessa-lhe não as teorias sobre a verdade, mas a própria maneira pela qual a verdade se configurou segundo a ideia de adequação entre nome e coisa nomeada.
No final do século XX, o filósofo estadunidense Donald Davidson chegou a dizer que a verdade é uma noção primitiva, como é o ponto na geometria euclidiana. Sem essa noção, não temos nenhuma linguagem. Isso bastou para Davidson. Heidegger quis mais que isso. Queria mesmo entender como que a linguagem se imbricou com a adequação e nos fez naturalizar a noção básica de verdade.
O Walter Benjamin que Olgária Matos nos apresenta salta para uma terceira posição, diferente da de Heidegger e Davidson. O Benjamin de Olgária Matos está interessado em algo ainda mais primordial que a conversa de Platão, seguida por Heidegger e Davidson, que tematiza a relação entre linguagem e mundo, e que está prenhe da necessidade de adequação para exprimir a verdade. Ele está voltado para a experiência de Adão, aquele que não propriamente nomeou o mundo, mas viu o mundo se apresentar em cada coisa, sendo que estas é que lhe ofereceram seus nomes – seus verdadeiros nomes! A prática de Adão seria anterior a qualquer relação entre linguagem e mundo e, portanto, liberta da própria noção de adequação.
O livro que Olgária Matos põe em nossas mãos decorre, todo ele, dessa busca da filósofa que acredita que poderia encontrar em Walter Benjamin o melhor entendimento do que poderia ser a quebra da relação entre sujeito e objeto, com o desaparecimento do primeiro sem que o segundo viesse a sumir. Uma objetividade sem sujeito, um apresentar-se sem representação. Eis o Benjamin que insiste nessa possibilidade que escapa à lógica da linguagem. Trata-se da busca pelo Nome. É o encontro com atos de Deus. Cito Olgária Matos:
“Aquém da esfera do significante e do significado, o Nome, sendo imediato e puro (unmittelbar und rein), não conduz a um outro de si, exalando-se das próprias coisas como seu atributo ontológico (Der Grund der intentionalen Unmittelbarkeit), e misturando sua essência a dos anjos.”
O problema que Deus deixa ao homem, portanto, é o de traduzir seu ato de fala que é ao mesmo tempo ato realizador do mundo, mas isso de uma maneira a não criar a linguagem, o aparato comunicacional, a tagarelice.
O filósofo italiano Georgio Agambem tenta vislumbrar no canto aquilo que seria a “voz” original do homem, aquilo que exprime a atividade do homem como aquele que não tem propriamente voz. O homem não late, não uiva, o homem não tem voz, ele tem linguagem. Ora, essa busca pela estranha objetividade sem subjetividade, por aquilo que fala sem linguagem, é o que Olgária Matos busca nas investigações filosóficas de Benjamin. A passagem do seu livro que, a meu ver, mais significativamente se aproxima disso, diz respeito ao amor. É Benjamin chegando em lugar desconhecido para se encontrar com uma “amiga”, sua paixão:
“Eu chegara a Riga para visitar uma amiga. Sua casa, sua cidade e sua língua me eram desconhecidas. Nenhum ser humano me esperava, ninguém me conhecia. Durante duas horas, andei sozinho pelas ruas. Nunca mais voltei a vê-las daquela maneira. Do pórtico de cada casa, de cada pedra angular de uma esquina (ela podia surgir). Era preciso, contudo, a todo custo, que eu a visse antes que ela me visse. Porque se ela pousasse sobre mim a chama de seu olhar, eu teria voado pelos ares como um depósito de munições.”[1]
O poder do que seria a fala adamítica, a que talvez pudesse melhor nos dar o Nome, seria como a chama do olhar da amada, capaz de fazer o objeto, ela própria, se manter e transmitir sua presença, mas explodindo a subjetividade que, em princípio, deveria lhe captar.
Que se note aqui as particularidades citadas por Benjamin. Ele havia chegado a Riga, um lugar em que ninguém o esperava e um lugar com pessoas cuja língua não lhe transmitia nada. O lugar do autêntico desconhecido: sem referência, sem comunicação. Lugar inóspito à tagarelice e às familiaridades. Então, era necessário andar atento, pois se o olhar da mulher o atingisse primeiro, ele explodiria. Mas essa atenção era, na verdade, a necessidade da não-atenção. Pois o Nome deveria lhe pegar desatento, em primeira mão, e fazer explodir qualquer experiência, qualquer vínculo com crivos da subjetividade.
A história que Olgária Matos conta neste livro é essa história dificílima de contar. A história sem contagem. A narrativa impossível. É preciso coragem para escrever um livro que, no limite, não poderia ser escrito.
Paulo Ghiraldelli, 22/12/2021
[1] BENJAMIN, 1987b, p. 34.
Ghiraldelli,
Estava lendo seu livro sobre o pragmatismo e fui mais fundo na pesquisa sobre o pragmatismo de Rorty e a redescrição.
Gostaria de estudar mais afundo este tema da redescrição! Comprei alguns livros de Rorty e fiquei muito interessado sobre o tema e gostaria de saber por onde começo a pesquisar sobre o tema? Começar pelas teorias da verdade seria um bom começo? Ou começar pela leitura de Wittegenstein?
Att,
Lucas.
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