A psicanálise não diz que existe o inconsciente. Mais corretamente, ela infere um nome para pensamentos destoantes do discurso de cada um de nós, e que se deixariam notar por traição da linguagem. Falamos coisas que parecem não bem encaixadas no texto que produzimos. O psicanalista é, então, aquele que supõe que tais falas não são simplesmente erros, mas que expressam pensamentos que revelam desejos, medos, ódios que, enfim, jamais gostaríamos que fossem os nosso desejos, os nosso medos e ódios. Que tipos de falas são essas? Ora, podem se chistes ou atos falhos. Mas podem ser sonhos.
A psicanálise diz que sonhos, chistes e atos falhos são como o sintoma de uma rede de crenças e desejos (na leitura que Donald Davidson faz de Freud) que subjaz à rede de crenças e desejos que atribuímos a nosso eu. Não é necessário estabelecer um campo ontológico com o nome de inconsciente, no qual estaria toda a mobília psicanalítica, todo o conteúdo que produziria os sintomas, isto é, os chistes, atos falhos e conteúdos dos sonhos. Podemos desinflacionar a psicanálise de seu caminho ontologizado.
Quando assim agimos, temos mais facilidade de retirar a psicanálise da condição de invenção heroica do século XIX. Poderíamos vê-la como uma doutrina de interpretação da atuação humana que remonta à antiguidade, em especial a Platão. Peter Sloterdijk lança esse balão de ensaio em seu livro recente, cujo título poderia ser traduzido como Fazendo os céus falarem (Berlim, Suhrkamp Verlag, 2020). Ele põe nas costas de Platão as origens da psicanálise, ou, melhor dizendo, a ‘descoberta do inconsciente’. Para ele, o ensino de Platão se fez em círculos restritos, depois se ampliou, e essa doutrina dizia que a vida pós-natal era uma vida que mostrava o esquecimento havido quanto à vida pré-natal, não só em relação à experiência com a intuição da essência, mas uma vida que deliberadamente empurra os pensamentos prénatalinos de modo a fazê-los retroceder, voltar lá para a trama de onde vieram. Somos incentivados a ficar com os ‘pensamentos mortais’. Somos incentivados ao pensamento do cotidiano.
Se levamos a ideia de Sloterdijik a sério, podemos realmente dar um maior crédito à doutrina platônica, que diz que nossa queda, o processo de incorporação da razão (alma) pelo corpo, cria um trauma capaz de provocar o esquecimento. Em geral, o corpo recebe a alma, e esta passagem gera uma pessoa que precisa passar a vida toda aprendendo conceitos que ela, enfim, já sabia. Mas, se pensamos Platão em termos psicanalíticos, faz mais sentido termos de admitir que os pensamentos não desapareceram por conta da incorporação, em um sentido literal e simples. Eles ficaram, pode-se dizer, soterrados, ou melhor, postos de lado, mandados de volta para compor uma rede de crenças e desejos menos útil na vida cotidiana.
Ora, se fazemos o que Platão disse, que no caminho da filosofia devemos antes de tudo morrer para poder pensar, isso significa que temos que abrir mão do uso da rede de crenças e desejos vigente para também utilizar a rede de crenças e desejos secundária, menos útil, e que conteria um número maior de experiências, inclusive aquelas vindas do campo uterino. Isso coaduna em muito com o que está na Teoria das Esferas de Sloterdijk, na parte em que ele trata exatamente das sinestesias da vida intrauterina. Aliás, assim faz, para encontrar resposta à pergunta de Martin Buber: como que as crianças já nascem com a disposição para a linguagem, que é eminentemente uma estrutura que tem necessidade de um duplo? Ou, para usar a expressão do próprio Sloterdijk: uma estrutura que é conjunto de ressonâncias.
Lendo Freud segundo Donald Davidson e Platão segundo esse requisito de Sloterdijk, podemos abandonar em boa medida o que poderia parecer um relato místico-poético do criador oficial da filosofia. Com o primeiro passo, deixaríamos de lado um excesso de ontologia. Com o segundo passo, deixaríamos de lado a retórica do trauma da incorporação. A doutrina de Platão, então, se tornaria algo bastante atual, no sentido de competir de igual para igual com outros relatos menos carregados de pressupostos.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista. Cartunista nas horas vagas!