Há uma mentira rondando o túmulo de Contardo Calligaris. É a de que ele tomava a vida como algo a ser antes interessante do que feliz. Mais do que ninguém, Calligaris amava a felicidade. Ele apenas não ousava defini-la!
Nas diversas vezes que trocamos mensagens, em especial quando do uso de uma expressão minha para um filme (Sofia Copolla, The Bling Ring, 2013), que ele citou em artigo, ele se mostrou indignado com a vida vazia. Essa vida vazia era, para ele, uma coisa horrível. No artigo que escreveu, também sobre o filme em questão (Folha de S. Paulo), ele deu mostras de estar descontente, realmente infeliz de ter visto aquela juventude do filme. Calligaris entendia a felicidade como a vida preenchida, mas em um sentido mais amplo que algum sentimento subjetivo pudesse abarcar.
Na resenha que Tati Bernardi fez para a Folha de seu livro póstumo, O sentido da vida (São Paulo, Paidós, 2023), há um descuido fundamental. Ela se deixa levar de modo fácil pelas palavras do psicanalista, sem investigá-las. É como se ela tivesse feito a resenha folheando o livro, e não degustando-o. Ela fixa no leitor da resenha a ideia de que Calligaris está militando contra a ideia de felicidade, ou melhor, contra a noção – bem comercial – de que se é obrigado a ser feliz. Mas, para quem conheceu bem Calligaris, leu sua obra, o entrevistou e manteve com ele correspondência, Calligaris não tinha esse propósito. O livro resenhado até diz que a “vida interessante” era o que ele procurava, antes da vida feliz. Mas essa frase é uma armadilha. O leitor atento perceberá.
Como Calligaris jamais foi um autor matreiro, sua armadilha só funciona para o leitor completamente desatento. Ele caminha pouco com a ideia de vida interessante como melhor que vida feliz, pois chega rapidamente ao lugar do qual os psicanalistas fogem, e os palestrantes atuais, que até ousam escrever sobre a felicidade, não compreendem: eudaimonia. Trata-se da felicidade grega. Calligaris tem na eudaimonia sua vida interessante. Ou, em outras palavras, sua vida feliz.
Eudaimonia, como ele lembra bem, quer dizer “bom espírito”. Não se trata de boa alma, em um sentido subjetivo moderno. Mas de bom espírito em um sentido amplo, de harmonia entre o indivíduo e o cosmos, ou, como eu diria – mas Calligaris não aprovaria como não aprovou (mas isso é matéria para outro texo) – entre indivíduo e cidade. Calligaris vai a Aristóteles para lembrar isso. Para mostrar que a eudaimonia, a felicidade, é alguma coisa que só se pode apontar ao final da vida. O morto feliz existe! É aquele que está com sua vida completada, como prova de uma vida em harmonia com os cosmos. A felicidade grega não é um sentimento subjetivo de indivíduos, como o ocorre com os modernos, mas um estado de revelação do bom espírito.
Assim, a vida dos garotos do filme The Bling Ring, incomodou Calligaris porque nenhum deles, ao morrer, iria poder contribuir para o bom espírito. Eles estavam em desarmonia com o cosmos, uma vez que eram pontos vazios do conjunto espiritual. A expressão minha que Calligaris gostou, para qualificar o vivido pelo personagens do filme, foi “a era da futilidade máxima”. Exatamente isso o horrorizava. Cada garoto apareceu como um ponto não feliz, que abria buracos no espírito geral. Como ser feliz, como ter uma vida harmônica com o cosmos, com o espírito – essa união de natureza e cultura no mundo grego – se cada jovem era o depositário do não-sentido, do vazio, do desinteressante e, enfim, do infeliz? Calligaris não aceitava o desengajamento.
Vida preenchida, engajamento, era para ele a harmonia entre o indivíduo e o cosmos, a noção de bom espírito, de vida feliz.
Uma vez ele me contou que não conversava há muitos anos com o irmão. O irmão havia passado agruras demais na fuga dos pais diante do nazismo. Calligaris não viveu esse drama do mesmo modo que o irmão viveu. Ele avaliava que isso os distanciou. Logo que ele me escreveu isso, seu irmão escreveu para ele. Pouco depois, Calligaris me revelou que havia perdido o irmão. Ele havia falecido. Novamente nessas trocas de mensagem, ele mostrou seu apreço pelo engajamento, pela vida preenchida. Pois fez de novo a apologia de defesa do modo que seu pai viveu a vida, como militante antifascista. Ora, não seria propriamente uma vida interessante, nem feliz no sentido moderno, mas certamente uma vida harmônica com o cosmos, uma vida feliz no sentido da eudaimonia.
Quando tiramos do livro de Calligaris a sua digressão sobre a eudaimonia, o livro perde completamente o sentido. Creio que a resenha de Tati Bernardes peca exatamente nisso. Vale a pena ler o livro de Calligaris, não é nenhuma militância de araque contra a felicidade.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, jornalista, escritor