Pular para o conteúdo

ANGÉLICA: MAMÃE NÃO VAI DE TÁXI, VAI DE VIBRADOR

Angélica disse que deu de presente para sua mãe um vibrador. O problema não está no presente, mas na condição de sua fala: um enunciado público, na TV. Expor as próprias intimidades tornou-se corriqueiro, mas escancarar intimidades da própria mãe ainda não faz parte da etiqueta contemporânea. Angélica foi criticada. Em reação, algumas artistas saíram em sua defesa. Argumentaram que “a mulher adquiriu o direito de ter prazer”. Disseram que a sociedade atual deve “colocar seu machismo de lado” e aceitar essa nova situação.

Machismo e direito de prazer da mulher não explicam o comportamento de Angélica. Muito menos moralismo barato a respeito de usos de aparelhos entre virilhas. Vamos por outro caminho.

É notório que Angélica está um tanto perdida entre o que é de bom tom falar em público e o que não é correto de ser dito na TV. Não creio que ela incentivaria os seus filhos a dizer “mamãe, já que papai Huck não funciona, podemos dar um brinquedo sexual para você no dia das mães?”. E em seguida um dos filhos poderia acrescentar: “mamãe, o tamanho que você gosta é igual ao da vovó ou bem maior?” E Angélica deveria então responder: “filhos, o da mamãe é metade do da vovó, claro!”.

Não creio que as pessoas em geral estejam adotando esse comportamento da Angélica, de falar pelos cotovelos até chegar nesse estágio de “por a mãe no meio” (embora eu já tenha visto o lixo do movimento #AgoraVCSabe”). Mas, o fato dela estar perdida sobre etiquetas disponíveis, e ter apoio de colegas, mostra que estamos em uma época em que aquilo que até bem pouco tempo era privado, e era da ordem íntima, agora é obrigatoriamente devassado. A distinção entre público e privado está se esvaindo. A noção de intimidade, em grande parte ligada ao sexo, escorrega pelos vãos dos dedos das mãos.

A distinção entre o público e o privado não existia no mundo pré-moderno. Os reis faziam questão de expor suas vidas. Isso demonstrava poder. E também sinalizada que a vida do estado não era alguma coisa senão a vida deles próprios. Casamentos arranjados para unir terras e reinos eram a regra. O príncipe, então, não raro, desposava a jovem princesa de um outro reino e mostrava o ato sexual para as pessoas da corte, bem como o sangue no lençol para o público, que aplaudia não a façanha intrépida do pênis real, mas um tempo de prosperidade e paz que poderia vir da união dos reinos.

A burguesia emergente, que financiou os reis para eles unificarem feudos e criarem o estado moderno, dava de ombros diante desse comportamento. Paulatinamente, passou a criticá-lo de modo constante. A burguesia instituiu o casamento por amor. Colocou a vida privada em alta conta. Fez o elogio à intimidade como intimidade sexual par excellence. Essa homenagem ao privatismo não poderia vir de outro setor social. A burguesia, afinal, se fez enquanto classe social a partir da eleição da propriedade privada dos meios de produção como uma distinção e um direito. Todos nós sabemos que o liberalismo, a ideologia da burguesia ou classe média, vinculou a noção de liberdade à noção de posse da propriedade privada.

Mas o capitalismo que vivemos não tem mais a propriedade privada dos meios de produção como sendo a mesma propriedade privada dos burgueses que instauraram o mundo moderno. Os meios de produção estão no âmbito do intangível. O fluxo de conhecimento, linguagem e dinheiro se instaurou por meio do capitalismo financeiro, que é o capitalismo de nossos tempos. Esse fluxo se potencializou à medida que passou a ser feito pela infosfera. As empresas hoje são sociedades anônimas. Ganha-se dinheiro não pela posse delas, mas pela compra e venda de ações dessas companhias. Tudo isso é feito em segundos, pela via da maquinaria algortmica e probabilística dos computadores em rede. O próprio dinheiro é simples sinal magnético que corre o mundo sem ver alfândegas. O mundo da política moderna, com partidos ligados às classes fundamentais (burguesia, proletariado e aristocracia decadente) se foi, e deu lugar para um mundo mais complexo e integrado. Há autores que, para entender esse mundo atual, quando se referem à democracia, falam do estado endividado que se desenvolve diante de dois setores, o “povo do mercado” e o “povo do estado”. Junto dessa nova divisão, a propriedade dos meios de produção tomam um rumo bem distinto, e apologia da posse de fábricas e terras não mais fornece o estilo de vida dos setores mais nítidos em relação à economia.

Concomitantemente a essa nova configuração da propriedade, também é alterado o direito à propriedade. Vejamos.

Algumas linhas algorítmicas do Google e do Facebook são meios de produção. Possuir o uso monopólico disso é bem diferente de possuir fábricas. O acesso às energias e a computadores potentes também importam. Mas tudo isso ocupa bem menos espaço do que as grandes fábricas dos capitães de indústria do passado. A descorporalização das pessoas, que passaram a viver na infosfera, é análoga à desterritorialização das máquinas, que passaram a ficar muito mais no campo do intangível. A ideia de propriedade privada, centrada na posse de direitos de reprodução de fórmulas resultantes do intelecto, gerou uma nova imagem do que é o privado. Sendo que o privado e o íntimo nasceram juntos na modernidade, agora, com a modificação de um, o outro também se altera. Todavia, como estamos em um período de transição, o que é íntimo não foi redefinido, apenas foi desorganizado. As pessoas começaram a perder o parâmetro do que é íntimo, e, junto disso, claro, também se viram sem saber como falar a respeito do íntimo, em especial o que é íntimo no sentido sexual. Abre-se aí a sociedade da transparência. A ética pede transparência. A moral pede o fim do segredo. E eis que, no meio disso, os que estão na mídia vomitam para a sociedade essa confusão.

Angélica é o fruto dessa deseducação proporcionada por esses últimos quarenta anos. Ela cresceu em meio a essas modificações. Sua baixa escolaridade e sua exposição demasiada a levou a cair no redemoinho em que a capacidade crítica não se faz presente. Nesse sentido, ela vai catando palavras aqui e ali, e as vai lançando no vento do mundo da “sociedade do novo espetáculo”. Não vivemos mais o espetáculo da mercadoria e sua imagem, mas o espetáculo da imagem dos fluxos internéticos, mensurados pelo “like” e “dislike”, que é aferido momentaneamente. E como nada fica mais que algumas horas valendo atenção, pode-se ir testando falas aqui e acolá. Caso agrade “uma galera” e cause “algum reboliço” para outra, tanto melhor. É importante tentar escandalizar. A falta de memória ajuda os que estão imersos na infosfera a se escandalizar com fórmulas que, para os que possuem cultura histórica, parecia estar desgastada.

O capitalismo financeiro privilegia a compra e venda de papeis. Trata-se de uma atividade essencialmente especulativa. Em mundo assim, da posse momentânea, de compra e venda rápidas e fugazes, vale a economia de tempo. Toda a nossa vida passa a ser uma vida de valorização do fugaz. A velocidade reina. Chamar a atenção por segundos é o que importa. Pois segundos podem ampliar valores de papeis do mercado financeiro. Segundos são o suficiente. Assim, o escândalo momentâneo passa a importar. Se a indistinção entre o público e o privado, e entre o visível e o íntimo, estão em baixa, posso tentar falar o maior número de bobagens por segundo que eu consiga falar, cruzando essa zona cinzenta da intimidade perdida. Caso a minha bobagem fique alguns minutos na rede, e a sua bobagem fique só alguns segundos, as empresas a que meu nome se liga vão subir sua cotação.

Paulo Ghiraldelli. Filósofo, professor, escritor e jornalista

1 comentário em “ANGÉLICA: MAMÃE NÃO VAI DE TÁXI, VAI DE VIBRADOR”

  1. Curioso imaginar o que certas pessoas desejam, ao declararem que suas companheiras estejam peladas e de que são deliciosas enquanto fazem suas ‘ lives’de cunho político-econômica à procura de ‘ likes ‘. Como será que estas pessoas situam estes impulsos em relação ao íntimo e privado do casal que, como alguns próprios observam, seguem desorganizados nessa nova reorganização econômica mundial?

Não é possível comentar.