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PALMIRINHA DESREPEITADA PELO IDENTITARISMO DA FOLHA DE S. PAULO

OS IDENTITÁRIOS ESTÃO COMETENDO UM CRIME

Os identitários estão cometendo algo que penso que pode ser qualificado quase como um crime. Há pessoas com o cérebro carente de sinapses que não entendeu o que tenho denunciado sobre os identitários. Volto a dizer: eles querem forçar as pessoas a falarem de suas mazelas pessoais. Eles estão empurrando as pessoas a tomarem como valor a auto-exposição.

A regra dos identitários está inserida em um clima de época. Estamos sendo forçados a falar de dores específicas, enquanto nos calamos de outras dores tradicionais. Sai a dor da doença, da pobreza, da morte. Entra a dor de algo que se relacione o sexo, e que possa ser caricaturizado. Isso é próprio da sociedade da leveza. Para que a sociedade da leveza, a sociedade desonerada, venha a sentir alguma coisa como tendo algum peso, escolhemos uma dor que nos coloque como quem ainda vive alguma realidade. Pois sem algum peso, podemos levitar e nos perdermos no ar, no cosmos. Perde-se o rumo quando se perde contato com a Terra, com a Nave Mãe.

A dor essencial da atualidade é uma só, e está se tornando uma caricatura. A dor da doença e a dor da morte devem desaparecer, elas são reais demais, e nos colocam diante de problemas complexos, velhos, que remetem a coisas que já nos cansamos de discutir. Resta como dor o abuso sexual. A prática é velha, mas falar dela é a novidade! Abuso sexual – tem que ser sempre sexual! Quem não se declara abusado perdeu a condição de ser uma pessoa humana! É que outras dores não são íntimas. E estamos na época do advento do fim da ordem burguesa que instituiu a intimidade. Então, devassar a intimidade é a nova ordem.

Antes, a pessoa teria que falar do abuso sofrido na infância ou juventude em privado, para a polícia. Poderia falar para o terapeuta, também em privado. Incentivar as pessoas a cair no erro de falar de seus problemas pessoais em público é algo que não deve ser feito. Mas é o que hoje é feito. Não se pode confundir as instâncias criadas para escutar os problemas e resolvê-los, com a sociedade como um todo, ou com a opinião pública. Isso, de explicitar mazelas pessoais, não diminui a violência e, pior, expõe as pessoas a olhares que elas não merecem. Todavia, nos dias atuais, a regra é ter de gritar na rua: sou o abusado, então existo e sou importante para todos.

Muitas das pessoas que forçam direta ou indiretamente essa exposição nada são além de aproveitadores. Algumas deles estão no movimento que inventou o “#agoravcsabe”. Essa gente não entende o que é privacidade. Não é nada bonito ficar dizendo: fui estuprada, fui violentada, fui vítima de marido, vivi um relacionamento tóxico etc. Isso não atrai nada de bom para quem diz. E para os mais humildes, isso serve, depois, como um modo deles serem julgados. A mulher rica que se diz abusada leva adjetivos diferentes dos da mulher pobre. Mas muitas portas se fecham para a mulher pobre que abriu sua guarda e falou de suas intimidades.

O direito à privacidade é próprio da vida moderna, da vida burguesa. Foi uma conquista histórica. Antes da ordem burguesa ter se instaurado, a privacidade e a intimidade não eram valores. A vida privada e o respeito à intimidade eram coisas que não existiam para nobres e plebeus no mundo pré-moderno. Os reis se exibiam, inclusive em atos nada belos. A exibição de seu sexo, de sua crueldade ou crueza, era parte do ritual de dominação. Eles se exibiam e exigiam que os pobres também ficassem à mostra. Não à toa os príncipes faziam questão de desvirginar as noivinhas dos homens que viviam em seus feudos. A modernidade, a ordem burguesa que colocou no centro da propriedade privada, separou a vida privada da vida pública, e ensinou o direito à vida privada. Impôs uma moralidade bem conhecida, que muitas vezes achamos que é algo carola, que é algo mesquinho. Mas, devemos também entender que é algo que veio para nos proteger. Contra a justiça do senhor feudal, veio a justiça da cidade. Contra a exibição como regra geral, veio o direito a poder construir uma casa com divisões internas e portas, uma arquitetura burguesa capaz de dar condições materiais para a vida íntima.

Muita gente idolatra a vida privada, dizendo que só nela podemos ter felicidade. Despreza a vida pública. Diz que a felicidade na âmbito de realizações políticas é uma mentira. Com isso, há o intento de desmobilizar a política transformadora. Ora, a busca de preservação da vida privada não deve ser confundida com a falas destes que a idolatram com intenções escusas, de colocar má fama na vida política. A separação burguesa entre vida privada e vida pública pode ser criticada, mas a sua observação, após a instauração da ordem burguesa, se revelou, em muitas situações, um ganho civilizacional.

Todavia, no mundo contemporâneo, na atualidade, por várias vezes se anunciou o fim da vida privada, o fim da intimidade. Isso foi feito, sabemos bem, mas sem que tenhamos pensado em colocar no lugar vazio alguma coisa melhor.

A internet colaborou com a quebra da ideia de vida privada. Ajudou alguns a não perceberem o quanto perdemos como a regra da ética da transparência, que tornou a sociedade menos erótica e essencialmente pornográfica, ou seja, uma sociedade da exposição. Sem saber agora como repor os valores modernos, sem entender como que nos tornamos todos adeptos da sociedade pornográfica, ou seja, a sociedade onde tudo tem que ser mostrado, surgem os que querem censurar a internet. São os mesmos que ajudaram a instaurar a transparência total, agora, cegos pela luz em demasia, querem voltar a ter sombras, e escolhem o meio errado: a censura.

A violência pode acabar não com transparência solicitada de modo panfletário, mas com melhores condições sociais, boa educação pública e gratuita, polícia eficiente e rede de proteção. A exposição das pessoas, a transparência total, a sociedade pornográfica, tudo isso não funciona em favor de uma situação melhor. Que alguns artistas caiam nessa dos identitários, e fiquem dizendo sobre suas mazelas pessoais na TV e na internet, é compreensível. São artistas, então, seguem as modas criadas na mídia. Mas o incentivo desse comportamento está se tornando, isto sim, um crime. Quem tem consciência, tem que parar com isso.

Um exemplo recente de tudo isso que tenho dito, ficou estampado na Folha de S. Paulo hoje, dia da morte da Palmirinha.

A Folha de S. Paulo, já há algum tempo, vem incentivando a sociedade pornográfica, a regra da exposição total, e por isso deu apoio ao movimento “#Agoravcsabe”. Com isso, chegou ao desrespeito máximo. Na morte de Palmirinha, escolheu como manchete sobre o assunto frases que diziam que ela apanhava da mãe e que viveu um relacionamento abusivo com o marido. Ora, o identitarismo da Folha adentra agora a seara da completa falta de respeito. Palmirinha não havia ainda sido sepultada, e filhos e netos tiveram de ler isso. Os fans, então, que esperavam informações edificantes, tiveram de engolir esse jornalismo inculto. Mas tudo que a Folha sabe fazer é manter a regra do #agoravcsabe”. É o ideal da filha do Temer e de Djamila Ribeiro. É a política dos identitários, que passa pelo seu apoio do jornal ao amigo de Ribeiro, o Sílvio Almeida. Cada dia pioram mais!

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista

PS: se você comentar que “foi verdade que Palmirinha sofreu abuso”, e que eu escrevi aqui querendo calar quem sofreu abuso, eu já antecipadamente lhe dou a réplica: leia vinte vezes o artigo até entender. Esta é a réplica.