Trecho de Mário Sérgio Cortella, mandado por um leitor meu:
“Tergiversação. Essa palavra estranha, pouco comum, tem o sentido daquilo que é utilizado como subterfúgio. Na origem, indica ‘ficar de costas’, isto é, não enfrentar, não seguir no caminho desejado. Essa noção se aplica muito ao campo da ética. As pessoas que tergiversam são aquelas que saem da trilha, que buscam um atalho que não é correto. O inestimável filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), em sua obra central Ética a Nicômaco, escreveu: ‘O erro acontece de vários modos, enquanto ser correto é possível apenas de um modo’. Os desvios podem ser múltiplos, mas o caminho principal, o percurso daquilo que é correto, é um só. Ou é ou não é. Não dá para enxergar tantas nuances na conduta ética.”
O leitor me perguntou se isso acima é válido. E eis aqui minha resposta.
Será mesmo que “ser correto é possível só de um modo”? Vejamos.
É justo devolver aquilo que se emprestou de alguém, não é? Sim! É incorreto emprestar algo de alguém e não devolver, não é? Sim! Alguém que empresta uma faca de um amigo e não a devolve, não está agindo corretamente, está? Ora, de modo algum! Está agindo incorretamente! No entanto, devolvo a faca ao meu amigo, e ele está completamente surtado, e usa a faca contra seu próprio peito. Agi certo colocando a faca na mão dele? Por um lado, sim, a faca era dele. Mas por outro lado, agi de modo incorreto, pois eu deveria ter notado, uma vez sendo amigo dele, que ele não estava nada bem.
O diálogo acima é adaptação minha de um trecho de Platão, sendo Sócrates quem fala junto de um interlocutor. Como se vê, pode-se facilmente invalidar a certeza de Cortella quanto a se ter só um caminho para ser correto. Entrego a faca, mas posso ver que isso é correto e incorreto! Não é difícil conjecturar, que tendo ficado vinte anos junto de Platão, Aristóteles conhecia esse diálogo. Portanto, quando Aristóteles falou o que falou, ele certamente não fechou questão. Cortella fecha questão. Tira uma lição. Não investiga a argumentação de Aristóteles. Eis aí o perigo da filosofia quando ela é tomada a partir de frases, e não da argumentação que exige raciocínio.
Essa forma de colocar a filosofia, a partir de pequenas trechos nem sempre muito refletidos, feitos quase que como encomenda para agradar o leitor que quer entretenimento, e não pensamento, nos levam a equívocos desagradáveis. Muita gente acha isso válido, pois confunde tal coisa com aforismos. Ora, isso não é aforismo! Usar frases filosóficas fora do seu habitat, em um sentido que nos faz acreditar que estamos filosofando, é um caminho que pode levar o jovem a imaginar que a filosofia é uma coisinha fácil, basta alguma imaginação. Pode levar o adulto à preguiça mental.
É muito provável que Cortella construiu o texto dele da seguinte maneira: quero falar algo sobre ética, e começo então com “tergiversação”. Uso a definição da palavra tergiversação, com um pouco de etimologia. É uma praxe de filosofia de seminário do passado. Feito isso, colho algum pensamento de um filósofo para rechear meu pequeno texto e, então, acrescento uma frase conclusiva minha – eis que tenho uma página de livro pronta! Não é difícil que Cortella tenha feito esse caminho, essa construção. Muitos textos de palestrantes profissionais são feitos assim.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista
É possível facilmente discordar de sua tese, Ghiraldelli e, posto isso, reafirmar a assertiva de Cortella. A saber: devolver uma faca subtraída de um amigo, conforme contexto abstrato que Cortella nos propõem, resta, do ponto de vista ético, somente a devolução. Já no contexto específico em que nos propõem, resta-nos a postergação da devolução, reafirmando o caminho único dessa devolução para a questão ética. No entanto, dada a contextualização psicológica do amigo receptor, a resolução ética observa o momento mais apropriado e tardio para única resolução à subtração. E fica o entendimento de que a postergação da devolução não signifique reter a faca ad eterno, sem reparação ética. Assim, reafirmo Cortella, o caminho do acerto é único e o dos erros, muitos!
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