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A PERIGOSA DELÍCIA DA JUVENTUDE

Quem leu Lolita sem amarras morais sabe perfeitamente que a menina jamais foi uma vítima. Ao menos não em relação a HH. É mais fácil tomar o comportamento do professor HH como sintomaticamente angustiado. Percorrer Lolita com algum conhecimento da obra de Nabokov, leva a não se furtar de ver nesse seu livro um tema relativamente constante: a infância está longe de ser descrita pela visão de Rousseau. A infância que configura o bom selvagem é o grande engodo. Nada há de mais perverso que uma criança – a infância russa de Nabokov nunca se adaptou à infância do romantismo ocidental. A garota Lô é protegida pela ideologia da infância pura, tipicamente moderna, exageradamente americana, e com isso está liberta para os prazeres do sexo bem cedo, e para a concomitante prática de manipulação dos adultos. Essa é a tese de Nabokov.

Um exemplar de Lolita foi dada ao criminoso nazista Adolf Eichmann na prisão, ele o leu em dois dias, e comentou com o carcereiro que o emprestou que a leitura havia sido bastante desagradável. Não sabemos se se referia ao que Lolita passou ou ao que Lolita infringiu. O certo é que o livro causou seu rebuliço na América. Uma boa parte dos leitores, especialmente nos dias atuais, o leem cada vez pior. Tomam o livro como contendo um enredo centrado em estupros. O óculos moralista acaba como vítima de Lo, tanto quanto HH foi empurrado por ela ladeira abaixo.

Esse mesmo comportamento dos leitores surge na avaliação contemporânea do conto O chapeuzinho vermelho, na sua versão original de Charles Perrault, de 1649. O máximo que a consciência crítica consegue ir é o de resumir o conto considerando o canibalismo, o fim perverso e bem distinto daquele gerado pela romanticização da história pelos Irmaos Grimm, no século XIX. No entanto, se pudermos nos despir da ideologia moralizante, ou seja, nos livrar de qualquer rousseauísmo avant la letre presente no conto, o personagem que leva torta para a vovó emerge como mais carrasco que Lou.

Sobre o Chapeuzinho Vermelho de Perrault, os críticos contemporâneos se acham ousados ao mostrarem que há canabalismo e sedução ao pecado, tudo induzido pelo Lobo. Mas quando lemos com cuidado, em especial as duas cenas finais, o Lobo mostra sua cara de HH: um bobo. As americanas chamavam homens assim, nos anos cinquenta, de tolinhos (“my dearest little fool”). Quando chapeuzinho come a carne de sua avó morta pelo Lobo, ela é avisada do feito por um gato ali presente. Que se note bem: ela não dá a mínima atenção para a informação. Parece saber do que se tratava perfeitamente. Logo em seguida, promove a fantástica cena de se despir a pedido do Lobo, fantasiado de Vovó na cama, o que só enganaria uma menina (já mocinha, pois todos concordam que seu roupa vermelha é símbolo da primeira menarca já tendo ocorrido) caso ela fosse extremamente estúpida. Chapeuzinho vermelho, tida como bela no início do conto, não era estúpida, era uma sedutora nata, como a maior parte das meninas bonitas, acostumadas a ver os adultos lhes prestando favores.

A cena de Chapeuzinho tirando a roupa é simplesmente um streep tease. A pedido do Lobo, sem qualquer coação, a mocinha vai tirando peça por peça, e perguntando o que fazer com tal parte do vestuário. Só Milo Manara teria o direito de ilustrar essa cena. O Lobo, completamente seduzido, diz para ela jogar no fogo cada peça! Ela joga! E ele assim age lembrando a ela que deve fazer tal gesto, porque a roupa não lhe terá mais utilidade. Dali para frente, na casa, ela iria somente andar nua, ou melhor dizendo: disponível.

Terminads a cena da garota streeper. Ela se lança para debaixo das cobertas do Lobo. O modo como faz perguntas sobre o corpo do Lobo não é o de uma menina inocente. Caso não tomemos uma tal cena como jogo sexual da garota com o homem mais velho (um amante da Vovó?), teremos então de considerá-la uma completa débil mental. Vale a pena ver as duas cenas finais:

“Então, o lobo disse: – Tire a roupa e deite-se na cama comigo.

– Onde ponho meu avental?

– Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.

Para cada peça de roupa – corpete, saia, anágua e meias a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia: – Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela.

Quando a menina se deitou na cama, disse: – Ah, vovó! Como você é peluda! [fan-tás-ti-co!]

– É para me manter mais aquecida, querida.

– Ah, vovó! Que ombros largos você tem! [putz!]

– É para carregar melhor a lenha, querida.

– Ah, vovó! Como são compridas as suas unhas!

– É para me coçar melhor, querida.

– Ah, vovó! Que dentes grandes você tem!

– É para comer melhor você, querida. E ele a devorou.” [de-lí-ci-a!]

Não entendo essa prática de uma menina moça deitar peladinha com a avó! Entendo menos ainda essa conversa de Lobo de ombros largos! Avó peluda? Ah, tem dó! Por fim, uma garota que olha os pelos do Lobo, xereteia tudo embaixo da coberta, e então se volta para os dentes! Não faz, propositalmente, qualquer menção ao membro provavelmente ereto e já gosmento do Lobo. Ora, simplesmente porque o membro já não estava à vista, e sim escondido no meio das coxas da jovem. As palavras finais, ora bolas, são vigentes até hoje. A metáfora do devorar ou comer é exatamente aquela que usamos para sexo, no Ocidente, desde há muito. E perdura. Ela dá, o homem come. Canibalismo? Canibalismo como simbologia da mudança pela qual a moça estaria passando? Ora bolas, simbolismo da cena é muito mais rasteiro que isso.

O Lobo não é nenhum pedófilo. Visivelmente está interessado, sim, na mulher mais jovem. Pedófilos querem crianças, e Chapeuzinho vermelho está de toca vermelha exatamente para lembrar que sua menarca já ocorrera – nisso todos os intérpretes concordam. Ela sabia disso, e logo no início do conto deu a dica, para o Lobo. Inclusive combinou com ele: para que ele chegasse antes na casa da floresta e desse cabo da avó. Quando ela chegasse, selariam o pacto de sangue. O Lobo se tornou assassino a um mando sutil da menina, e certamente ambos ficaram com a casa da velha de herança – e quem disse que não viveram felizes para sempre?

Tanto quanto HH, o Lobo passou à condição de assassino por indução direta de uma garota perversa. Nabokov não se furtou de provocar mortes em outros personagens, levados ao perigo por conta de brincadeiras perversas de crianças que talvez já não fossem crianças. A juventude impõe seu preço. A beleza e o frescor juvenil, desde que o mundo é mundo, tem um encanto. Platão chegou até mesmo a definir a época na qual os garotos perdiam o que lhes era atrativo: quando o cheiro deles já era o cheiro de homens feitos. Nunca houve entre os gregos o desejo de uma pederastia saudável senão quando a pele do garoto produz o “cheiro das manhãs”.

A humanidade é feita por conta do cheiro da fragilidade. Afinal, a neotenia, que é a incorporação de traços infantis individuais à espécie, é o que nos fez humanos, diferentes de todos os outros animais. Somos os únicos que nascemos ainda com características fetais. E somos os únicos que nunca ficamos prontos, acabados, efetivamente adultos. A neotenia foi fruto da aleatoriedade da evolução, mas certamente provocada, um dia, pela escolha da mãe em cuidar daquele que lhe pareceu mais frágil. Ela mimou o frágil. O frágil, o prematuro, acabou vingando e daí para diante a evolução fez o resto. A situação de prematuro acabou se transformando em uma característica da espécie, e eis que todos nós, os humanos, precisamos de mimos para além do que os outros animais precisam. O mimo é o elemento chave para sermos o que somos, os humanos.

Exatamente no ponto um tanto indefinido da curva, quando Lo, Chapeuzinho e o imberbe de Platão se colocam, é que uma dada sociedade pode ser vista por outra dada sociedade como tendo leis chocantes, ou como tendo falta de leis. É na transição entre o que definimos como criança e o que achamos que não é criança que, socialmente, não sabemos qual política é a melhor e qual pedagogia vai nos salvar. Todas as sociedades se encalacram nesse quesito.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista

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