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A INTERNET VIROU O DEMÔNIO DA VEZ

Vera Iaconelli diz que “a internet não cria nosso pior, mas ela o arregimenta de forma descomunal e inédita”. Não há espaço mais em jornal para que se escreva isso que ela escreveu. Saturou. Governo e sociedade estão empenhados nesse discurso. Ambos fizeram o mesmo no passado, diante de romances, depois contra histórias em quadrinhos, e também contra o rádio. Passaram mais tempo malhando da TV. Agora, é o tempo da Internet e, claro, das Big Techs. O diabo da vez está aí, na sua perversidade da sociedade patriarcal, machista, misógina, pedófila, capitalista, branca e muito maldosa. Felizmente, Vera ficou mesmo só no que está aspado acima! Ela nunca tangencia a burrice.

Todo esse discurso histérico diante da internet, e alimentado pelo identitarismo de cabeça de pudim, possui dois terríveis defeitos: 1) nunca tem medidas positivas para a adolescência; 2) desconhece o funcionamento do “capitalismo de plataforma”, não estudou a mídia atual e sua maquinaria.

Sobre o primeiro item, pode-se dizer o óbvio. É a praça esportiva e a escola acolhedora, capaz de tornar as pessoas vencedoras, e não derrotadas, que resolve o problema da educação do adolescente. A escola que vier a reintegrar corpo e eros na sua pedagogia, trará os alunos para o êxito de cada um. Os estudantes vivem no teatro que é a escola. O palco escolar precisa fazer de seus personagens, diretores, roteiristas e funcionários de diversos tipos, jovens que, desempenhando suas funções, se saiam bem. Caso não, eles atacarão a sociedade e a si mesmos. Alguns voltarão ao palco, então com roteiro próprio, e desempenharão uma peça na qual terão êxito: matarão colegas e professores. São poucos os que fazem isso. São a ponta do iceberg que esconde o fato de nossa juventude não ter qualquer horizonte válido no neoliberalismo, um regime que atomiza a sociedade, produz narcisistas sem Narciso, por conta de que alisa todas as relações, dispensando o Outro.

Sobre o segundo item, arrisco a dizer o menos óbvio. A máquina chamada automóvel possibilita uma relação com o humano que é de coordenação, não criando nenhuma nova subjetividade. O motorista não é uma nova subjetividade. É apenas uma pessoa que opera nova máquina. A internet apresenta uma maquinaria que depende do humano para funcionar, mas que gera na interação com pessoas uma nova subjetividade. É aqui que tudo começa.

Filósofos do campo do operaísmo italiano, influenciados por Deleuze e Guattarri, deram versões variadas dessa nova subjetividade, e alguns a nomearam subjetividade maquínica. Eu mesmo coloquei minha colher nessa sopa, escrevendo um pequeno livro com o título Subjetividade maquínica (CEFA editorial, 2023) (ainda só em e-book, no Google Play). Essa subjetividade é calçada na inflação da semiótica e na deflação da semântica. A internet funciona por Inteligência Artificial e conjunto de algoritmos. As máquinas produzem símbolos de todo tipo, em profusão. Todavia, não exige do humano que este amplie os significados para se relacionar com a maquinaria, mas, ao contrário, empurra o humano para a execução de ordens sem precisar compreende-las. A redução da riqueza da linguagem é a base dessa interação. Portanto, a subjetividade maquínica é mais propensa ao fluxo de linguagem, trabalho e dinheiro da internet, em forma contínua. Ela é parte do fluxo, e não deve interrompe-lo com pensamento ou reflexão. Ela está em simbiose com seu irmão e pai, o capitalismo financeiro, que depende de velocidade. O poder crítico nesse âmbito sai um tanto esfolado. Embora menos crítica, essa subjetividade maquínica não se faz só pelo seu polo maquinal, ela é, antes de tudo, uma entidade que só entra em funcionamento com a ação humana. Aqui, temos de ter atenção!

Os algoritmos se fazem e se refazem a partir da busca inicialmente humana. Um garoto procura armas na internet e recebe de volta não só links para sites de armas, mas links para sites, canais e comunidades de apologia das armas e da violência. Os algoritmos são rápidos, e vão jogar o garoto para um mundo de afinidade com armas. Mas um descuido do humano, e o algoritmo pode jogá-lo, em uma segunda vez, para uma outra comunidade de consumo. Se eles voltam ao caminho inicialmente pedido, é porque o garoto, em um segundo momento, realimentou os algoritmos e criou uma porta de passagem mais constante para o mundo das armas e da violência. A ação humana, ainda não completamente integrada à subjetividade maquínica, decide, fora da internet, o que vai de fato alimentar na internet.

O cultivo das armas e da violência se faz em campos extra-internet, e a subjetividade maquínica não é rainha nesses campos. A vida cotidiana de bullying, de pais com armas, de escola que ridiculariza, de inaptidão diante das meninas, e tantos outros insucessos que se verificam no plano do palco escolar, produzem um adolescente que é potencializado por grupos, por gangs, sendo a internet não tão importante assim na existência desses grupos. As “comunidades de discurso de ódio” espantam a classe média porque esta vive em redomas de shoppings e cultura abestalhada. A internet não dá facilidade ao atirador, ela dá facilidade ao psicólogo e a outros para se espantarem com ela, quando vão buscar nela as causas da violência e, então, descobrem tais comunidades. Dão gritinhos, ficam espantados, saem na rua vociferando contra a internet como um dia já fizeram com a TV. Levam a sério demais os sites, e se esquecem que eles próprios estiveram perto dessas comunidades, vendo o pornozão (às vezes menos violento) do dia a dia, em geral noturno.

A internet precisa do uso de não pouco tempo por meninos que a frequentam. A subjetividade maquínica não se forma da noite para o dia. Eis o que não se entende: não se forma da noite para o dia. A prova disso é que os que adentram as escolas para atirar e ferir, compram suas armas mais de um ano antes dos atentados. Eles ficam mais de três a quatro anos nas comunidades que fazem apologia das armas. São anos em que nada na escola chamou a atenção, ao contrário, tudo no palco da escola os fez serem fracassados. Ao contrário dos Estados Unidos, os atiradores daqui não compram armas pela internet, eles já as possuem em casa, com pais armados, não raro militares ou policiais ou gente que lida com o assunto. Tudo se faz fora da internet, e ela não chega a potencializar nada que não seria potencializado de outra maneira. Ainda que internet, capitalismo financeiro e sociedade neoliberal componham o mesmo pacote, e na não presença do Outro que tudo se faz no sentido da má conduta. A não presença do Outro é a essência do regime forjado pelo neoliberalismo.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista

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