A sociedade antiga e a sociedade moderna diferem, entre outras cosias, fundamentalmente pela noção de liberdade. Os antigos eram livres para se virem capazes de cair sob a obrigação de seu ethos. Ser livre, portanto, era pertencer a um povo livre que, por não ser dominado por nada exterior, se dava ao prazer de poder cultivar seus deuses, falar sua língua, ter especial prática de usos e costumes. A Grécia se via livre à medida que tinha longe dela o poderio persa ou de outros impérios. E cada cidade-estado grega se via livre se não tinha nenhuma outra tentando mudar seu modo de vida.
Por isso, quando Platão foi preso fora de Atenas e vendido como escravo, foi comprado por um filósofo epicurista para poder lhe restituir a sua liberdade e voltar para Atenas. Ou seja, voltar a ser grego. Fazia parte do ethos grego manter a honra de um cidadão grego e, portanto, encontrando-o degradado no exterior, restituir-lhe a dignidade, ou seja, sua condição grega – sua liberdade grega.
A sociedade moderna entende a liberdade de modo outro. Trata-se de uma liberdade da vontade enquanto faculdade humana individual. Fazer o que se quer fazer, como indivíduo, é uma liberdade mais próxima do livre-arbítrio agostiniano e das fileiras cristãs. Isso veio a calhar para o liberalismo moderno. Trata-se do império do cidadão livre por ser, antes de tudo, um indivíduo livre, assim, não raro, o ethos pode ser alguma coisa em oposição à moral, e esta sim um campo da liberdade.
A sociedade americana parece ser o exemplo mais acabado da modernidade, especialmente quanto à liberdade. O americano não está longe do grego (ou do romano) ao querer viver em um “país livre”, um país sem dominação exterior, mas ao mesmo tempo toma seu ethos, sua obrigatoriedade, como sendo o elemento interno que garante que ele possa exercer uma liberdade que o grego não conheceu, ou seja, a vontade individual livre. Esse culto ao individualismo, especialmente desenvolvido na “sociedade da abundância” (Galbraith) e da leveza, pode levar à própria desagregação da sociedade moderna? A sociologia clássica elegeu um tal problema como um de seus principais objetos de atenção.
Durkheim tentou solucionar tal problema ao falar nas vantagens da “solidariedade orgânica” sobre a “solidariedade mecânica”. Weber notou a burocracia profissional e o chefe carismático como o que poderia dar unidade ao que chamou de “separação das esferas de valor” após o fim do prestígio da capa unificadora da religião. Antes deles, Marx propôs como uma solução o socialismo. A sociedade comunista, na qual a economia coletiva poderia libertar o homem, deveria fazê-lo senhor de seus afazeres e não mais objeto de forças de mercado que o estariam escravizando e ao mesmo tempo impondo a todos uma “irracionalidade” desagregadora.
Sloterdijk vê essa situação de outra maneira, completamente nova. À sociedade moderna, segundo ele, cabe dois tipos de liberdade, que, obviamente, demandam dois tipos de subjetividade. Uma das noções modernas de liberdade é a de Hegel: a consciência das necessidades. Hegel desfez a dualidade “liberdade versus necessidade” assumindo a função da consciência como o que entende que livre é aquele que sabe seus limites postos pelo que são suas necessidades, ainda que esta possam mudar historicamente, e que de fato assim fazem. Outra noção de liberdade moderna é a de Rousseau. Ele propõe o afastamento de toda oneração social, das máscaras sociais, e busca uma situação de liberdade na não-consciência. O exemplo é a célebre passagem no lago Biel, em Os devaneios do caminhante solitário, em que se deixa levar pelos devaneios. Pode-se até dizer que Rousseau encontrou a liberdade em uma alteração ontológica não-cartesiana, ou seja, no não penso, logo existo. Sentir a existência, e só ela, no completo devaneio, sem passado ou presente ou futuro, é o que Rousseau apontou como sendo a verdadeira liberdade.
Assim, os modernos levaram isso para o campo da ação: hegelianos de esquerda fizeram partidos transformadores e, em certo sentido, até puderam usar o Rousseau teórico da Vontade Geral, para a desgraça da liberdade; mas, os rousseauístas românticos, os da fuga social, foram antes de tudo para o mundo hippie e puramente libertário que para qualquer outra coisa. Maio de 68 foi o apogeu de prestígio dessas teses todas no conjunto do que se chamava então “juventude”.
Sloterdijk tem pouco apreço pela lilberdade rousseauísta, se esta acaba por desembocar na busca da vontade geral. Nesse caso, quando isso ocorre, atribui a Rousseau um desenvolvimento pessoal desrespeitoso com as transições que as esfera íntima deve passar, sabendo preservar o Outro que nos é inerente e que pode garantir nossa capacidade de conviver bem com a alteridade e com disposições alheias. Todavia, por outro lado, Slorerdijk não acredita que a liberdade rousseauísta tenha sempre que desembocar numa vala comum de quem retorna à sociedade ou para uma fusão com a Natureza ou uma perda na Vontade Geral.
O filósofo alemão entende que a liberdade rousseauniana tem, ela própria, um componente de reengajamento no mundo. Uma ida para um eu interior em devaneio, completamente desonerado, é limitado no espaço e no tempo e, não raro, proporciona exatamente o chamado para o campo da oneração. Afinal, quanta leveza suporta o homem? Não é o título “a insustentável leveza do ser” uma expressão preferida de Sloterdijk? Claro, porque tal expressão é a condição moderna. Ora, é nisso que Sloterdijk vê o chamado do real como alguma coisa que tem a ver como a maneira que Sartre encara a liberdade ou, melhor, o engajamento.
O engajamento de Sartre, como não podia deixar de ser, tem uma clara referência política. Sloterdijk a toma de um modo mais amplo que, em certo sentido, talvez até seja mais fiel ao conceito sartriano que o que é divulgado.
A célebre frase de Sartre de que o “homem está condenado à liberdade” explica a noção de engajamento. Para o existencialismo o homem não tem uma natureza para fora da sua própria existência.[1] O homem se torna o que é, ou seja, efetivamente humano, pelas contínuas escolhas que faz na sua existência; em cada escolha, materializa-se a liberdade. Ela surge nas decisões. Realiza-se nas escolhas. Essas escolhas não podem não ser feitas. Quando o homem pensa não escolher pela sua vontade, acabou de escolher, ou seja, escolheu não escolher. Trata-se de uma escolha a vida e o homem é sempre seu próprio projeto. A cada decisão o homem se faz e faz a liberdade surgir, se realizar. Nesse sentido, a todo momento o homem está se engajando.
Em O pequeno príncipe a raposa diz que devemos cuidar de quem cativamos. Em certo sentido trata-se de tomar a noção de consequência não só como algo físico, de causa e efeito, mas também de responsabilidade, de ato humano. Não à toa Heidegger falou de O pequeno príncipe como um grande libro existencialista.[2] Ele traduz a questão da existência e do seu necessário engajamento como um situação dramática, que é o exercício da liberdade da qual não se pode escapar. Pois quem cativa e não cuida, ou imagina poder simplesmente dar de ombros, ainda assim decidiu. Esse engajamento é o que faz com que qualquer um que entre no bote do lago Biel, de Rousseau (Quinta Caminhada de Os devaneios do caminhante solitário), seja requisitado pela continuidade da existência. O barco navega, ele é uma contigência da vida, não a vida.
Sloterdijk diz:
“Olhando mais de perto, torna-se evidente que o sujeito liberado nunca fica permanentemente na posição da inacessibilidade do real. Uma vez que ele descobre a sua liberdade, ele também descobre uma quase ilimitada acessibilidade para chamadas a partir do real. Devido à sua disponibilidade, alcançada no pico da separação interior máxima, ganha a partir de si mesmo o caminho de volta para o objetivo – se não for realizado como no caso de Rousseau, pela neurótica construção de falso ego. Ele sai para fora do barco por meio de uma desestabilizador uma experiência inesquecível, e torna-se disponível ao mercado de trabalho do real, para além de disposição e resistência. Penso que esta virada para auto-oneração é o que Jean-Paul Sartre quer dizer pelo termo engajamento.” [3]
Sloterdijk destaca a fidelidade de Sartre à “liberdade sem solo”. Por isso mesmo, diz ele, “o nada da subjetividade” nunca lhe soou como um “abismo degradante” e, sim, como uma “fonte que jorrava para o alto”. Era como uma “força de negação contra tudo que nos encerra”. Sartre distinguiu-se nessa atitude de muitos outros que, como ele, pensaram a subjetividade; “comprazeu-se no abismo; a revolta era para ele mais que um dever que uma cura”. Assim foi que
“o que designou por engagement era a continuação do dégagement por outros meios; não tinha dúvidas quanto à primazia da libertação perante novas amarras. Dominava a arte de querer espontaneamente quase tudo o que tinha de fazer, onde ia, antecipava-se à coação. Glissez, mortels, n’appuyez pas! a expressão da sua avó, citada várias vezes em destacadas passagens da sua obra, reproduzia o motto da sua vida; deslizem mortais, não façam peso.” [4]
Todavia, o problema todo de Sloterdijk não é o engajamento, mas a fonte capaz de torná-lo possível. Para ele, essa fonte de auto-oneração demandada pelo engajamento é o orgulho. Trata-se da elevação espontânea da situação ordinária, e que os gregos, lembra Sloterdijk, chamava de thymós.[5] É com esse termo que se aponta para o centro do interior afetivo capaz de motivar as pessoas a revelarem-se como proprietárias de fornecimento de virtudes em seu meio social. É como uma “mentalidade liberal de dar vida”. Não se trata aí de qualquer fonte capaz de ser reduzida a uma situação naturalizante, onde apareceriam causas exteriores e condições neurológicas. Na verdade, Sloterdijk insiste, as pessoas tem buscado encontrar a liberdade em lugares onde não se pode achá-la, na vontade, no ato de escolha ou mesmo no cérebro. Com isso, negligenciam sua origem na disposição nobre, na generosidade e na elevação. Na verdade, “liberdade é simplesmente uma outra palavra para nobreza”. É a disposição de tomar o que é o mais difícil. Estar livre, nesse sentido de Sloterdijk, é estar suficientemente liberto para ir buscar o mais impossível, o invulgar e o menos afeito ao demasiadamente humano. Assim, “liberdade é a disponibilidade para o improvável”.[6]
Sloterdijk reclama de quanto esse modo de entender a liberdade, de fazer o melhor e o mais generoso, pode ter sido perdida. Fala da indisposição das pessoas para com o liberalismo político, que ele acha que deve ser recuperado. Insiste então que a palavra “liberal” ou, então, “neoliberal”, tornou-se algo nefasto. Conclui que a liberdade é muito importante para ser deixada nas mãos dos liberais.[7]
[1] A respeito das teses principais de Sartre nunca é demais voltar para a conferência didática O existencialismo é um humanismo. Ver: Sartre, J. P. Sartre. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
[2] Sloterdijk é responsável por uma recente tradução desse livro para o alemão. Ver:
http://ghiraldelli.pro.br/pequeno-principe/
[3] Sloterdijk, P. Streß und Freiheit., op. cit., p. 57.
[4] Slotertijk, P. Sartre. In: Temperamentos filosóficos. Lisboa: Edições 70, 2012, p. 103.
[5] Sloterdijk, P. Streß und Freiheit., op. cit., p. 57.
[6] Idem, ibidem, pp. 57-8.
[7] Idem, ibidem, pp. 58-9.