Nós, os letrados, estamos acostumados a acreditar que não devemos acreditar em ninguém. Na nossa idéia, há alguém sempre nos enganando: políticos, imprensa, igrejas, negociantes e mesmo nossos amigos. A noção de que vivemos sob o erro e não sob o certo, e que tomamos o falso pelo verdadeiro, é tipicamente oriunda das filosofias que emergiram com a divulgação dos textos religiosos judaico-cristãos, dos textos dos filósofos modernos e, enfim, hoje em dia, do senso comum alimentado pelas ciências – em especial as ciências humanas.
A idéia de que estamos mais distantes da verdade do que do falso e mais perto do erro do que do acerto deve muito à noção de pecado original (segundo os nossos textos religiosos ocidentais) e também aos textos das ciências, em especial o marxismo – que diz que “o capitalismo” nos coloca sob inúmeras ideologias – e o freudismo – que nos diz que é mais o nosso subconsciente que fala do que o nosso próprio eu consciente. Bíblia, Marx e Freud – eis a trilogia que nos deu bastante alimento para acharmos que talvez venhamos a gastar uma vida sem saber direito o que é verdade e o que é correto.
Assim, todos nós, letrados, não raro achamos que estamos sendo muito espertos ao descobrir a “ideologia” que faria com que a maioria de nós se guiasse por uma “falsa consciência”, ou que realmente somos muito inteligentes ao apontar o que emerge do “subconsciente” e que estaria nos levando para o lado que não escolhemos racionalmente.
Os gregos antigos, diferentemente, tendiam a achar que eles viviam segundo a verdade e sob as regras do que é certo, e que enunciados falsos e aprovações do erro eram contingências – situações altamente pontuais e contornáveis. Ao considerarmos isso, temos de admitir que o estadunidense Donald Davidson (1917-2003) – na trilha dos pragmatistas – foi o filósofo mais grego entre os contemporâneos. As hipóteses céticas, segundo as quais ou conhecimento – crenças verdadeiras bem justificadas – não é possível de ser alcançado, não teriam qualquer cabimento. Sua obra, que agora sai em cinco volumes publicados pela Oxford um ano após sua morte (agosto), é o fruto de mais de quarenta anos de trabalho original, nos quais ele tentou nos ensinar, entre outras coisas, uma lição grega: temos mais crenças verdadeiras que falsas, mais acertamos que erramos e, enfim, os enunciados que emitimos não estão, em sua maioria, nos campos do falso e do pecado.
Mas dizem os outros filósofos que simplesmente acreditar nisso, não vale. Que é necessário refutar o cético – mostrar ao cético que é possível, sim, provar a existência do pensamento, mostrar a validade do conhecimento da existência do mundo exterior e, por fim, a validade do conhecimento de outras mentes. Teríamos de desmentir o cético em todos os seus pontos de ataque. Davidson consegue tal façanha?
Nessas últimas quatro décadas, o que Davidson nos ensinou foi que antes de embarcarmos na agenda do cético, deveríamos notar quatro pontos básicos.
1) Descartes nos ensinou que para duvidarmos de alguma coisa precisamos, antes de tudo, ter pensamento, uma vez que a própria dúvida já é pensamento; sendo assim, não duvidamos da existência do pensamento.
2) Antes de seguir Descartes, no entanto temos de ver que até mesmo este ponto levantado por Descartes, e que dá um passo contra o cético, requer que saibamos utilizar o conceito de verdade. (Descartes tomava um tal ponto como inicial; Davidson no ensinou que ele continua válido, mas não tem qualquer prioridade na sua forma de explicar o conhecimento). Qualquer enunciado, para que possamos entende-lo, precisa que saibamos em que condições ele é verdadeiro. Se dizemos “Há um rato no armário”, não importa se tal enunciado é verdadeiro ou não, mas nós o entendemos perfeitamente porque sabemos de antemão o que é para o enunciado “Há um rato no armário” ser verdadeiro ou ser falso. O conceito de verdade é central em nossa conversação e tal conceito é “primitivo”, ou seja, ele não pode ser exposto em uma definição única, fácil. É como o conceito de ponto em geometria – nós o temos, mas não conseguimos definir ponto.
3) O conceito de verdade é “primitivo”, não inato. Ele é aprendido na medida em que participamos do processo comunicacional. Não há nenhuma necessidade de possuirmos a priori o conceito de verdade e, de fato, demoramos um tempo na infância para aprende-lo. No entanto, uma vez no processo comunicacional, este nos exige a apreensão do conceito de verdade.
4) Mas não só a noção de verdade é necessária no processo comunicacional. Este nos exige, também, que a cada enunciado, saibamos outros enunciados. Se dizemos “Há um rato no armário”, é necessário não somente que saibamos o que é que seria poder afirmar “Não há um rato no armário” – a distinção entre verdadeiro e falso e as condições de verdade da sentença –, mas é necessário também que saibamos o que é rato, armário e como utilizar o verbo ser (“há um”). Essa teia de conhecimentos é, talvez, infinita, e não há uma ordem de elementos fixos nela. Davidson chama a isto de holismo – a interdependência dos enunciados.
Com esses quatro pontos, Davidson fez do cético alguém deslocado no tempo. Não há lugar para ele se nosso ponto de partida é não o caminho cartesiano, que vai da descoberta de conhecimento de elementos verdadeiros subjetivos para elementos verdadeiros objetivos, e sim o entendimento de que a comunicação, como ela ocorre conosco – o fato no qual estamos imersos primordialmente –, só vem se efetivando segundo o que vimos nesses quatro itens acima, tomados conjuntamente. Assim, uma vez tendo percorrido os quatro pontos de 1 até 4, podemos voltar a leitura, de 4 até 1 (experimente), e perceberemos o que é a “epistemologia”, que não busca fundamentos últimos, de Davidson.
Não temos que partir em busca da verdade; se estamos conversando e nos entendendo razoavelmente, é porque aprendemos de alguma forma a conceito de verdade objetiva, isto é, o que é para um enunciado ser verdadeiro independentemente de nós. Tomar este ponto como um aprendizado da filosofia, colocou a nós, através da América, no que a Grécia Antiga tinha de melhor.
Esse ganho filosófico atraiu a atenção de um outro filósofo da Grécia Antiga nos Estados Unidos: Richard Rorty. Leitor entusiasta de Davidson, um de seus melhores intérpretes e seu interlocutor privilegiado (segundo o próprio Davidson), Rorty trouxe esses ensinamentos davidsonianos para vários outros campos filosóficos para além da semântica e da epistemologia. Foi ele um dos primeiros filósofos a ter a coragem de desbancar a autoridade da filosofia. Rorty nos disse que o modelo de Davidson a respeito do conhecimento nos dava a oportunidade de antes gastarmos nossas energias no trabalho de construirmos melhores imagens de nós mesmos – aquelas imagens com as quais poderíamos ver nossas potencialidades de sermos mais diferentes, livres e felizes do que até então – do que suarmos a camisa em busca de fundamentos desnecessários.
Rorty, admirador de Sócrates antes do que de Platão, sempre achou que poderíamos mais fazer amor do que conceituar o amor. Sempre acreditou que poderíamos muitos mais fazer educação do que conceituar educação. Defendeu que dependeríamos muito mais de fazer democracia para podermos fazer amor, educação e filosofia do que encontrar fundamentos filosóficos da democracia para que ela pudesse vingar. Assim, o projeto de Davidson, de desinflacionar a descrição filosófica a respeito do conhecimento, lhe soou muito bem. Para ele, seria interessante poder abandonar a obsessão de Platão pelo conceito e voltarmos ao modo meramente conversacional e ironista de Sócrates, como transeunte de Atenas.
Mas teria sido Platão, sempre, um filósofo não-socrático? Donald Davidson, já nos anos noventa, talvez contrariando Rorty, escreveu um belo texto sobre a questão, dizendo que Platão, no final da vida, se arrependeu de seu platonismo e se inseriu no caminho socrático de conversação irônica, sem respostas para suas próprias questões.
Paulo Ghiraldelli, filósofo
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