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OS INSUBSTITUÍVEIS

Nós nos acostumamos à ideia de que ninguém é insubstituível. É confortável dizer isso aos que se acham poderosos, e são toscos. Mas não é nada agradável escutarmos isso, quando um ente querido se vai. Outro dia falei das saudades do Pitoko, e me disseram para pegar um filhote, um cão de rua. E eu disse que não! Aquela paternidade acabou ali. Não tem essa de “a vida que segue”. Absorvemos nossas perdas. Tentamos realizar o luto. Mas não temos que entrar pelo túnel da troca, que se fez vigente na modernidade.

Mas, se é assim, por qual razão continuamos a repetir por aí o “ninguém é insubstituível”? É que acreditamos que sempre foi assim. Mas isso não é verdade. Quando lemos os relatos dos antigos, notamos que o ato de troca fácil não lhes era comum. Só nos tempos modernos, no capitalismo, a troca se instaura nas nossas vidas junto com o valor de troca suplantando o valor de uso. O mercado criou o que é valor somente como o valor que permite o intercâmbio. Elegemos o dinheiro, o equivalente universal, como a matéria importante. E como ele confere poder e, ao mesmo tempo, nada é, principalmente agora, senão um sinal autorreferencial na tela do computador, achamos que toda potencialidade está no volátil. Instauramos o reino do igual, quando podemos desconsiderar vacas, rostos, amigos e tudo o mais, pois os trocamos por algo que é um sinal numérico no celular que nos dá a nossa conta bancária.

Marx chamou isso de abstração real. Outros filósofos procuram outros modos de falar do igual, do desaparecimento do Outro. Mais do que no tempo de Marx, o igual se instalou entre nós de modo tão avassalador que procuramos desesperadamente o diferente. Mas logo em seguida ele se torna igual. Mas não ousamos procurar o diferente do diferente, ou seja, o Outro.

Cada um se tatuou para ter algo no seu corpo que lhe fizesse distinto. E logo descobriu que todos os outros haviam feito também tatuagens, e o que é pior, nenhuma dela era realmente algo distinto. Cada um brigou com a moda, e logo descobriu que ao ser diferente de toda moda, havia caído em um grupo de excêntricos cada vez mais iguais, e em um grupo igual a todos os outros. Cada um beijou de monte nas baladas, e descobriu que nem mesmo aprender a beijar conseguiu, uma vez todos beijaram igual – e mal! Cada um gritou por liberdade para descobriu que não deveria ter feito isso muito alto, pois um anjo torto passou e a realizou de uma maneira peculiar: somos livres para copiar tudo. O identitarismo hoje vigente é exatamente isso: o cultivo da identidade, do igual, da ânsia de ser diferente a ponto de pertencer a um grupo do “eu sozinho”. E então o identitarismo mostra um elenco de grupos do “eu sozinho”. Todos muito parecidos em suas reivindicações e sentimentos de fracasso.

O Outro saiu de cena. Ficou o o Mesmo, mas um mesmo mal formado, sem alteridade. Vivemos em uma sociedade cuja regra gritada na imprensa é: o governo tem de unir a nação. Não se pode polarizar. As divergências são saudáveis. Mas, cada divergência permitida só se põe se não for divergência que apela para o Outro. A base do mesmo tem de sair na frente. Nossa sociedade é um lugar em que tudo tem que ser transparente, nada pode se por escondido, tudo que desperta a curiosidade é a vida igual. Por isso todos sabem o que vai ocorrer na casa do Big Brother, pois a intimidade não guarda nada a não ser atividades das intimidades devassadas de todas as pessoas, antes mesmo que o programa comece.

Eros era o Outro. O corpo era o Outro. A dor era o Outro. As negatividades da vida anunciavam o Outro. Eliminamos todas essas negatividades. Eros perdeu seus segredos e o sexo se tornou pornografia. O corpo foi depilado e tudo nele desliza como óleo que corre dos lábios para o ânus. A dor foi proibida, e o que a medicina faz é antes de tudo eliminar a dor. As utopias passaram a ser distopias – e todos elas são cansativamente iguais.

Em cada lugar que vamos, o dinheiro plantou sua semente do igual. Tudo parece substituível. Até as cores perderam a cor. Os que lutam pela reposição do Outro são os que acreditam que a negatividade é uma benção da vida, e são os que não fogem delas. Sem no entanto louvá-las. Há inúmeros seres e coisas no universo que são insubstituíveis. Mas há algo que é substituível, o mercado, aquilo que quer fazer tudo substituível.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista

4 comentários em “OS INSUBSTITUÍVEIS”

  1. Lembrei de Bourdieu, os gostos descendo ao popular; e Winnicott, sentidos de vida e responsabilidades que não se enlutam, por ter q possuir a já possuir.

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