Nos desenhos animados de Charlie Brown saltam aos olhos os modos distintos em que se apresentam crianças e adultos. O mundo infantil é composto de personagens bem delineados, com uma subjetividade profunda. Todos se apresentam inteiros, de corpo completo, com movimentos e conversas inteligíveis. O mundo dos adultos se apresenta por meio de metade das pernas e sapatos, fazendo a distinção apenas de gênero, de acordo com as diferenças dos pés. O que falam é ininteligível, são ruídos em uma só cadência, não raro irritante. Zumbidos. O mundo dos adultos é o mundo do sempre igual, que contrasta com o mundo das crianças. Snoopy pertence ao mundo das crianças. Mas ele não fala, apenas pensa. Dentre todos os personagens, só ele abusa da imaginação. Ninguém pode viver as aventuras de luta contra o Barão Vermelho, só ele. Audacioso.
Uma primeira leitura dessas distinções nos leva a pensar em algo mais ou menos óbvio. O mundo dos adultos é apresentado segundo a ótica das crianças: pernas, sapatos e uma voz que pouco significa. Nada de novo é apresentado às crianças. Todavia, penso que há mais a ser dito sobre essa divisão de mundos. Talvez ela possa apontar para uma mudança de configuração, quando pensamos o advento do mundo moderno e seu desdobramento no mundo contemporâneo.
Que o campo do adulto seja o reino da igual, enquanto que o tempo da infância funda a terra que escapa ao “desencantamento do mundo”, que Weber viu como a marca da modernidade, é o que impulsionou Walter Benjamin a pesquisar as historias infantis, o brinquedo, o jogo, a ótica das crianças. Há uma época em que o encantamento do mundo ainda está vigente, mostra sua fecundidade. A modernidade se abre como a época do adulto, que nada mais escapa do sol, o que é “claro e distinto”, para lembrar a expressão de Descartes, ele próprio um dos pais do pensamento moderno. O mundo moderno e contemporâneo é o mundo da impossibilidade da infância, ainda que tenha sido nele que o próprio conceito de infância tenha sido inventado.
Os pensadores modernos críticos, e especialmente os contemporâneos que atentaram para os desdobramentos mais radicais da modernidade, cada um a seu modo, notaram a distinção entre o mundo significativo e o mundo do igual. Ou seja, o mundo de Charlie Brown e Snoopy, de um lado, e o mundo dos sapatos monocórdios do sempre igual, do outro lado.
Marx é, certamente, o pensador que se preocupou com o igual, introduzido pela modernidade. Sua teoria da descrição do valor narra o advento da chamada abstração real, a abstração que não se dá no âmbito do pensamento somente, mas que ocorre no âmbito de práticas, instituições, relações sociais e costumes. O advento do mercado capitalista tende a inutilizar os valores de uso, as coisas, e fornecer importância somente ao valor de troca, base do valor. Ora, o valor nada é senão aquilo que permite a troca. Ele funda a sociedade do império do equivalente universal. Horas do trabalho socialmente necessário é expresso em equivalente universal, uma mercadoria, e esta é realizada na prática na condição de dinheiro. Impondo sua lógica, o dinheiro refaz práticas, instituições, relações sociais e costumes, marcando tudo com o seu rosto cuja função é precificar. O ambiente ganha em todas as suas peças seus rótulos, os preços, e eis que tudo pode ser trocado por tudo à medida que é trocado por dinheiro. Todo o colorido do mundo é substituído pelo que é o igual. O mundo se torna uma grande tautologia.
Nos tempos contemporâneos, os escritos de Anselm Jappe, seguindo Robert Kurz, insistem na teoria de Marx como uma teoria da abstração real. A Escola de Frankfurt também fez isso, décadas antes.
Mas há uma série de outros pensadores, talvez não tão apegados a Marx, que notaram nossos tempos como uma época de domínio do igual, como a época da hegemonia do barulho indistinto e apelativo do mesmo que caracteriza os adultos do desenho de Charlie Brown.
Peter Sloterdijk caracteriza a modernidade, e também os tempos contemporâneos, como a época da dificuldade da continuidade da ressonância. Ele busca responder o enigma posto e de certo modo respondido por Martin Buber: como que as crianças acabam tendo uma linguagem? A tese de Sloterdijk, entre outras, é a de que precisamos nos referir a uma ontologia do dois, e não mais do um. No âmbito de suas investigações, digamos assim, de ginecologia negativa, ele adentra imaginariamente o útero para captar não o campo de um ser que virá, mas de um Cá e de um Lá. Ele vê no útero o processo de surgimento de dos polos que visam articular desde o início uma ressonância, aquilo que se configura na existência de feto e placenta. Sem essa ressonância, jamais poderíamos, depois, executar qualquer linguagem.
Segundo Sloterdijk, os modernos passaram a inutilizar a placenta. Deram o passo para não reconhecer a ontologia do dois e o caráter fundante da ressonância. Deram um passo para ver tudo sem o Outro, sem alteridade e, portanto, como o que é regido pela igual.
Os antigos sabiam, lembra Sloterdijk, que a presença da placenta lhes indicava o fundamento da alteridade, o que se expressaria depois nas figuras vindas da transformação do espírito: o elemento placentário se transmuta, e o que é físico se abre para dar espaço ao que é espiritual ou psíquico. Abre espaço para inúmeros substitutos capazes de não deixar a ressonância desaparecer: a voz da mãe, o amigo imaginário, o anjo da guarda, o daimon, a consciência etc. Todo o reino do simbólico se faz, em sua pré-história, pela ressonância. Sem ela, não teríamos a linguagem. Os antigos souberam honrar essa sabedoria. Não à toa, como Sloterdijk exemplifica, as bandeiras tiveram origem na prática de clãs egípcios de carregar placentas de matriarcas amarradas em uma vara.
Nenhum de nós, modernos e contemporâneos, cultiva as bases da ressonância. Nenhum de nós se acha como um Outro no eu, como Sócrates achava, ao enfatizar o “dois em um”. Nenhum de nós, modernos e contemporâneos, leva ao pé da letra, como Platão o fez, sua própria definição de pensamento: “o diálogo da alma consigo mesma”. O pensamento moderno não se apresenta a si mesmo como diálogo, como herdeiro da ressonância, mas sim ao modo de Descartes, como algo unitário. Perdemos o Outro em nós. A mesmidade capenga é nosso chão.
Em certos aspectos, Gilles Deleuze também fala da mesmidade como caracterizando nossos tempos. Ao distinguir a época moderna clássica, estudada por Foucault, e os tempos contemporâneos, que ele próprio tenta caracterizar, Deleuze mostra que nossa sociedade é a sociedade de fluxos, do império do contínuo. A igualação exige o contínuo. Processos em que o Outro se imiscui, interrompem fluxos. Ora, fluxos são o todo da contemporaneidade.
Deleuze mostra que todas as instituições para as quais Foucault olhou (escola, hospital, exército, prisão etc) eram campos de começos e términos. Locais de aquisição de disciplinas por meio de negatividades. Campos de vida que um dia deveriam cessar e repor seus indivíduos em outro lugar. Mas o mundo contemporâneo é diferente. A escola, diz Deleuze, não dá nenhuma importância para o dia de “formatura”. Pois ninguém está formado. Todos os rituais de términos se esvaíram. Ninguém mais adquire disciplina, mas todos esperam que o controle se exerça pelo próprio fluxo de atividades em que cada um está inserido. Nesse sentido, o homem é uma cifra, diz Deleuze. Poucos anos antes da internet se popularizar, Deleuze mostra o império da autorreferência se fazendo vigente por meio de identidades que são adquiridas por cifras, senhas, e que podem ser trocadas umas pelas outras, em falsa riqueza de características. A sociedade de fluxos de trabalho, comunicação e dinheiro, todos internos ao fluxo dos sinais magnéticos da internet, é o que mais se aproxima da ideia da era de fluxos do igual vislumbrados por Deleuze para caracterizar o contemporâneo.
Na conta de Franco Berardi, o igual se instala no contínuo daquilo que ele vê como surgindo da relação homem-máquina. Na relação do homem com a máquina moderna, havia o aprendizado do homem para operar a máquina. Pode-se lembrar da relação do homem com o automóvel. Na relação do homem com a maquinaria das plataformas da internet, não há aprendizado em um sentido propriamente dito, mas redução da linguagem do homem a uma vida adaptativa para gerar uma nova subjetividade. Nessa nova subjetividade, o homem se insere por meio de sua adaptação e redução à máquina. Berardi fala da conexão que suplanta a conjunção. Esta é baseada no encontro de corpo, vidas, diferenças, oposições, pelos, suores, rugosidades. A conexão, diferentemente, é a ausência do corpo. Ela é fundada simplesmente pela equação, aquilo que põe um parâmetro como absorvível pelo outro. A linguagem humana se torna pobre em semântica para se integrar à linguagem de máquina, inflacionada em semiótica. O ciborgue é uma subjetividade empobrecida pelo igual, pela falta de alteridade. Ele não pensa, não exerce a reflexão, ou seja, “o diálogo da alma consigo mesma”, mas apenas calcula. O cálculo é o antidiálogo.
Todas essa situações, relatadas por esses filósofos, podem ser postas sob a rubrica que crio a partir de uma expressão de Byung-Chul Han: o “inferno do igual”. Trata-se da sociedade que expulsa Eros, significativamente para se deixar levar por uma religião sem deuses. O mundo erótico, que provoca a linguagem e a imaginação, é substituído pelo mundo da pornografia. A sociedade pornográfica, como a caracteriza Byung-Chul Han, é a sociedade em que nada que é escuro, negativo, feito de treliças e de devaneios imaginativos tem vez. Tudo tem que ser “claro e distinto”, com closes de todos os tipos. Há a super exposição, o super consumo, o super desempenho. O reino neoliberal do empresário de si mesmo é o sítio no qual a dialética do senhor e do escravo não existem mais. A dialética do patrão e do operário é substituída pelo mundo unitário em que todos são capitalistas. Pois o trabalhador também tem capital. Sim, no mundo empresarial atual fala-se de capital humano. Todos somos, então, finalmente iguais! Nesse mundo sem confrontos, sem o Outro, nada atrapalha a visão, e portanto tudo perde a distância, tudo é posto bem “no seu nariz”.
Tanto Berardi quando Byung-Chul Han reclamam dos corpos sem pelos, da “depilação brasileira”, que impede que exista qualquer dificuldade para que uma mão deslize pelo corpo. A boca que desliza na pele, se não possui os obstáculos dos pelos, escorrega como escorrega tudo que é pornográfico. Dificuldades são para sociedades disciplinares, não sociedades de fluxos. Negatividades são para sociedades sem dinheiro, não em sociedades de dinheiro autorreferencial que, enfim, tudo resolve. Ou dinheiro de crédito, que tudo permite. Vivemos a sociedade em que a linguagem não se exerce por ressonância, mas por mensagens, sinais. criada por ressonância, a linguagem se esqueceu disso e se faz por conexão. Ora, conexão não é abrigo para a linguagem, só a conjunção, o viver junto dos corpos a permite. O viver junto dos corpos é o viver no reino em que o Outro tem seu lugar.
O Outro pertence ao campo das crianças, só nele Charlie Brown conversa. O mundos dos adultos é o mundo do barulho que nada significa. Aqui, é necessário sempre lembrar, que Snoopy se recusa até mesmo a falar, uma vez que precisa ficar consigo mesmo para exercer a imaginação. No interior da vida do diferente, de Charlie Brown, Snoopy retém ainda mais os problemas do Outro. Ele fornece não dificuldades para Charlie Brown, mas dificuldades para quem lê ou assiste Charlie Brown. Ele é o provocador da alteridade para quem vê a tirinha Peanuts ou o desenho animado. Ele também é o que estampa o confronto. Nenhum dos personagens vão para a guerra. Ele vai. E enfrenta o terrível Barão Vermelho. Ele nos dá o testemunho da existência do Outro.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista
Ghiral, você se extrapolou. Parabéns pelo texto inteligente, didático e elucidativo.
Desculpe-me, mas penso que é com isso que se reflete, e não com aquelas doideiras, xingamentos, misogenia e preconceito camuflados; e a visceral inveja do Pondé; que tantas vezes você demonstra lá no Youtube.
Não é possível comentar.