É evidente que o garoto que matou a professora vai ser internado. É louco, todos dizem isso sem titubear! Assim, com tal sentenciamento e ação rápida, a vida segue sem qualquer mudança. O próximo garoto ou garota, se vier com metralhadora, criará um estrago maior? Todos irão fazer como fizeram os homens do governo de Tarcísio: “lamento!”
Algum herdeiro de Trump e Bolsonaro poderá voltar com a solução que a direita canonizou: que apareça um batalhão de polícia na escola, a cada aula. Ou que cada professor fique armado. A professora de 71 anos não deveria fazer a chamada distraída, deveria estar com uma mão na caneta e a outra no coldre, né? Trump pessoalmente já chegou a sugerir isso. Aqui pelo Brasil há Eduardos Bolsonaro aos montes falando besteira igual. Isso sem contar os chorosos com cabeça de minhoca: fazem frases do tipo “no meu tempo havia respeito, agora, o Paulo Freire gerou isso, uma juventude que não respeita nada”. Sim! A direita já lembrou de criar mais besteiras contra Freire – ele é um enrosco na garganta dessa gente.
Brucutus, brutamontes e gente que defeca pela boca dão essa duas soluções acima. E os intelectuais?
As análises que vi não ajudaram. Historiadores e filósofos parece que se recolheram. Sociólogos estão envolvidos com outras coisas. Pedagogos choram. Ora, ataques desse tipo se equivalem a suicídios. Então, que os psicólogos e psicanalistas falem alguma coisa. Na falta de Calligaris, Vera Iaconelli deu seu parecer na Folha de S. Paulo. Gosto dela, mas, confesso, o artigo me pareceu confuso, derrotado, meio que apocalíptico. No meio do texto, um trecho que dá o espírito da peça toda: “A escola não tem como resolver uma sociedade desmantelada pelas redes sociais, violentamente polarizada, que ruma sem pudores para a autodestruição. Seus limites são tão claros quanto sua potência.” (Folha, 27/03/23)
Ora, louvo a Vera por fazer o aviso que fizemos nos anos setenta e oitenta, contra o que chamávamos de “ilusão liberal”: a escola não tem como resolver mazelas sociais. Todavia, não consigo segui-la no restante. Não tenho como endossar a ideia de que nossa sociedade está sendo desmantelada por redes socias. Muito menos tenho ímpeto de reclamar de polarizações, mesmo que eu saiba que virou moda falar assim. Também não possuo vocação para dar uma de Zé do Apocalipse, aquele personagem do saudoso e genial Glauco (criador de Dona Marta, Geraldão e tantos outros, e também morto por violência gratuita). Não vou sair por dizendo que nossa sociedade “ruma para autodestruição”.
Vera parece ter esquecido uma lição de Marx que é relativamente banal, mas que é preciso ser recordada cotidianamente, pois a armadilha é forte. Ela se enredou no fetiche da tecnologia. Ela tomou as redes sociais, a máquina, ou seja, um conjunto de algoritmos, como determinantes de nossa desgraça, e isso parece que contaminou todo o seu modo de pensar. Rede sociais fazem tão mal quanto fizeram histórias em quadrinhos, caneta Bic e Xuxa – coisas condenáveis por psicólogos e pedagogos entre os anos cinquenta e oitenta, exatamente nessa ordem. Iriam destruir a sociedade. A primeira nos deixaria analfabetos. A segunda estragaria nossa caligrafia. A terceira nos sexualizaria precocemente de tal modo que iríamos ficar adultos com problemas incuráveis de personalidade. Sempre duvidei que tais coisas fossem assim, tão poderosas, ainda que alguns tenham de fato ficado analfabetos, e passaram a escrever e falar “conja”. Mas não foi culpa das HQs. Outros perderam a letra mesmo – todos os médicos já não a tinham, né? E, de fato, vários entre nós, mais jovens que eu, ficaram sexualizados tão precocemente que acabaram gerando filhos avessos ao sexo: a geração Z. Agora, a internet é o grande demônio de psicólogos sérios, mas também preocupação dos não sérios, como algum coach do tipo Leandro Karnal ou algum picareta de estilo Luís Felipe Pondé.
Essas elocubrações da Vera Iaconelli, ao menos para mim, não ajudam a entender os atiradores e esfaqueadores juvenis das escolas. Mais colaborativo são aqueles relatos que recolhem os traços comuns desses garotos, em especial o modo como vivem as relações sociais que, enfim, são bem típicas dos últimos trinta anos, e que se distinguem bem das do passado. É no quadro das novas relações sociais que devemos procurar elementos de explicação da agressão aparentemente gratuita. As coisas são mais claras nos Estados Unidos. Mas surgem aqui segundo parâmetros e motivações semelhantes.
Sejamos claros: nosso presente é pós-fordista e pós social-democrata, isto é, ele é o do capitalismo financeirizado e plataformizado, e é neoliberal. Nesse tipo de mundo, bem definido nos últimos trinta anos no Brasil, as relações sociais perderam seu núcleo conflitivo. Isto é, desapareceu a disputa entre capital e trabalho consubstanciada na guerra entre patrão e trabalhador. Esse conflito é contado, a partir da ideologia neoliberal, como tendo evaporado. E, de fato, nesse caso a ideologia não está contando uma mentira completa. A empresa virou sociedade anônima e escondeu a figura do burguês, ou mesmo a fez desaparecer. A fábrica se automatizou, e dispensou os trabalhadores. Na fábrica social que é a cidade, o home office, o trabalho terceirizado e plataformizado apanharam todos em um único vórtice. Isso se fez junto da financeirização, fruto do desregulamento das leis que controlavam bancos e similares, no quadro gerado pelo neoliberalismo. E as privatizações vieram para ampliar a mais valia e extinguir o salário indireto. Mais despesas com saúde e educação se fizeram sentir no plano familiar. Para manter padrões de vida, os trabalhadores foram bancarizados e a cada um foi dado um cartão de crédito. Os juros cobrados são uma hipoteca do trabalho futuro. Nesse nosso mundo atual ninguém trabalha no que gosta, no que é formado, mas no que permite que se pague o cartão. Somos uma sociedade endividada com um estado também endividado.
Somos atomizados na falta de sindicatos e comunidades. E eis que as relações sociais se fazem frouxas ou inexistentes. Somos instigados a sermos “empresários de nós mesmos”. Todos são capitalistas, pois todos possuem um capital – capital humano, dizem. Portanto, somos uma sociedade que não vê conflitos, e se eles tornam a aparecer, não enxergamos motivos reais para eles, e os tomamos como “polarização” sem razão, que deve ser abafada. E se cada um deve vencer como empresário solitário, sem confrontos, é fácil ver o quanto isso gera de ansiedade. Somos uma sociedade ansiosa.
No contexto da sociedade gerada nos últimos trinta anos, a figura da “dialética do senhor e do servo”, de Hegel, desapareceu. Ela era fundamental para servir de retrato do panorama da relação eu-outro, aquilo que os intelectuais diziam que estruturava nossas relações (e nossas personalidades) do final do século XIX até os anos setenta. A luta de classes se foi. Os confrontos entre “o povo do Estado” e o “povo do mercado”, como Wolfgang Streeck diz no livro Tempo comprado, não possuem o mesmo nível concreto de embate. O conflito capital versus trabalho continua, claro, mas em um plano muito abstrato. Cada um de nós se sente sem o outro, sem confronto e, portanto, sem parâmetros para crescer no campo intelectual, moral, sentimental e cívico. Afundamos em um individualismo sem indivíduo e em um narcisismo onde não achamos direito o Narciso.
A juventude anseia o conflito eu-outro e busca relações sociais fortes. Busca comunidades, em que estes dois elementos – laços fortes e confrontos reais – estariam. Não os encontra. Fica revoltada pelo fato das comunidades serem engodos. A escola é uma dessas comunidades que não são mais comunidades. O ódio ao engodo se acentua quando a criança percebe que outros se adaptaram ao engodo, e fingem serem felizes. Há então a exclusão da falsa comunidade, e a revolta contra ela. Uns depredam a escola, outros vão adiante. Essa falsa comunidade se torna o mal do mundo, o que é preciso destruir. Algumas dessas crianças excluídas do falso o atacam, com facas e tiros. Acertam nos símbolos mais fáceis da falsa comunidade: colegas e professores.
É nesse quadro que alguns se tornam atiradores e esfaqueadores. Um daqueles que foi excluído do falso, se vê como potencial vingador em favor do que seria a verdade. E parte para a ideia de fazer justiça, ou seja, de fazer vingar a verdade. Um ímpeto não diferente do daqueles adultos que quebraram coisas no Palácio do Planalto, em 8 de janeiro deste ano , no episódio que ficou conhecido corretamente como Golpe Tabajara.
Vamos ter que mudar a face desse capitalismo ou mesmo sair dele. E isso, no momento atual, é bem menos utópico do que no tempo que tínhamos utopias prontas.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista
O senhor foi cirúrgico, professor: um suicídio. E estamos vendo um suicídio coletivo de jovens buscando alguma comunidade de sentido em que possam habitar, e as facções criminais vêm se constituindo como tal, dada a raridade de comunidades reais ante a atomização vivida. Funcionam como uma “família”, tem linguagem própria, músicas, coisas para fazer, provisão de recursos etc. Só observar a massa carcerária: para além de cor, eles possuem uma faixa etária. São os que matam e morrem. E agora apareceu mais esse fenômeno bem descrito pelo senhor da falta de sentido e propósito dessas falsa comunidades. O corpo ainda é real.
Este texto me fez refletir sobre como a escola está imersa nessa atomização reproduzindo essa ausência de comunidade. Mas, penso que em escolas sem projetos pedagógicos concretos essa realidade é ainda mais aterradora. Crianças e jovens criam certas comunidades nas escolas, porém são, segundo o texto “falsas comunidades” sem relação eu-outro. Em verdade são “comunidades” formadas no espetáculo do individualismo, onde cada um (uma) é rei ou princesa de si mesmos. São ensimesmados (as).
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