A posição do homem é inexoravelmente a posição do anti-olho de Deus. Ao contrário de Deus, que tudo vê e pode ver a partir do olho de quem vê, o homem vê somente sob a perspectiva humana. Às vezes, é acusado de nem mesmo ter a tal “perspectiva humana”. Todo o problema da filosofia e da religião, e em parte da ciência, é o de tentar satisfazer o desejo de dar um salto para fora de si mesmo. Comendo do fruto da Árvore do Conhecimento, a árvore proibida, e olhar um pouquinho só por meio do olho de Deus, é nossa aspiração. Trata-se obviamente de um pecado, uma proibição. Não uma proibição moral, mas cosmológica. Todavia, como tudo que é humano, “demasiadamente humano”, esse interdito não tinha outro modo de se expressar senão se tornando uma proibição moral. O homem não é Deus, e não deve tentar ser Deus. Todas as religiões tentam nos ensinar isso, às vezes como sabedoria prudente (para não criarmos experiências nazis), às vezes como remédio para a teimosia (para não contrariarmos demais o destino só por uma via), às vezes como consolo (para não nos desesperarmos frente ao infortúnio).
Mas o pecado só pecado autêntico se provoca a tentação. E o Anjo de Luz, Lúcifer, foi o psicólogo que conheceu muito bem essas entranhas. Eis então que Lúcifer nos fez sempre adepto de tentar “jogar luzes”. E fazemos isso, todos os dias, pecando e pecando. Ou seja, fazendo religião, filosofia e ciência. Pecamos ao criar igrejas, fundar universidades e dar verbas para cientistas. Queremos luzes.
O desejo continua sendo o mesmo pelo qual Lúcifer manipulou Eva. Enxergar pela fresta que nos faria ver tudo como Deus vê, o mundo da infinita perspectiva, o mundo visto pelo Olho de Deus. Gostaríamos de ver como o bebê, e poder saber se há uma linguagem dele, e que foi soterrada pela linguagem social, que é que falamos. Gostaríamos de ver com cinco olhos, como a mosca, mas mantendo nosso pensamento de humanos. Homens gostariam de ver como a mulher, e vice versa. Mas essas transposições são todas impossíveis. Só Platão acreditou que se era possível olhar o mundo pela perspectiva do Olho do Intelecto Universal, que seria, de certo modo, o olho de Deus. Fora ele, que não à toa foi chamado de Divino, todos nós somos, de algum modo, perspectivistas. Ficamos com Dilthey, aquele filósofo que nos ensinou o historicismo: ao compreender as ciências do espírito, o mundo da vida, nada podemos fazer senão imaginar como o Outro vive e pensa. Pela imaginação podemos tentar com-preender a vida do Outro. Mas sentir e pensar como ele, ou mesmo sentir que não se pensa nada, nos é impossível. Essa última condição, a de não pensar enquanto se vive, foi tentada por Rousseau, e ele chamou isso de devaneio. Não penso que lhe foi útil.
O que podemos fazer é estarmos em comunidade, trocar de comunidades, conversar, dar e pedir razões (como Robert Brandom definiu a filosofia), e construir inúmeras narrativas segundo essas conversações. Richard Rorty nos ensinou a ver uma tal perspectiva não como resignação de quem não conseguiu ser como Platão, mas simplesmente como quem tenta todos os dias pecar, sem de fato conseguir efetivar o pecado. Não somos vocacionados ao pecado, somos vocacionados à tentativa do pecado.
Fomos bebês, mas não nos lembramos de nossa linguagem antes desta nossa, ensinada. Nem sabemos se há uma que não esta. Somos homens e mulheres, e nenhuma transição hormonal ou mudança de plano social e cultural nos garante que podemos ser homens e saber o que as mulheres pensam e sentem e vice-versa. Apenas podemos construir os saberes pelas perspectivas, e então, usar da imaginação como complemento. Não conseguimos virar mosca, mas, se viramos, de acordo com o filme, não iríamos mais pensar e dar o recado, para outros, de como é olhar para todo lado ao mesmo tempo. Já tentamos fazer isso por meio de computação. Eu vi o olhar da mosca, e não achei nem um pouco interessante, uma vez que vi apenas a simulação. Ver mesmo, jamais poderei.
O interessante é que sermos bebês é definido por não bebês, os adultos. E sermos homens e mulheres (ou qualquer outro gênero que venha a se fixar culturalmente a ponto de adquirir uma perspectiva) é definido separadamente por nós, homens e mulheres. Não temos como trocar experiências linguísticas com bebês. Mas temos como trocar experiências linguísticas entre homens e mulheres. Desse modo, mesmo no mundo restrito do perspectivismo, há variações, graus quanto ao esforço que fazemos com a imaginação. Claro que a imaginação é ampliada com a familiaridade, e nós, que somos adeptos praticantes de atividades em igrejas, universidades e laboratórios, achamos que também nosso ascetismo pelo conhecimento, nossa via crucis especial chamada método, vai nos dar alguma vantagem. Sim, deve nos dar! Deve quebrar o monopólio recém criado pelo “lugar de fala”. Aliás, há muitos séculos vem quebrando esse pretenso monopólio que, felizmente, nunca existiu. Nem pode.
Um lugar de fala é o nosso lugar com o qual nunca concordamos em ficar. Ficar nele seria simplesmente inutilizar essa nossa terrível vocação para o pecado, o desejo de ver, pelo menos por breves segundos, pela perspectiva do Olho de Deus. Essa é a base da civilização, a base de nossa maldição de termos passado pela Queda, para ganhar o pão só como o suor de nossos rostos.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista
Discutia eu, de modo cortês com uma amiga com visão identitária. E a razão era que o homem, mesmo que para defender, não tinha “lugar de fala” quando o assunto era os problemas que a mulher enfrenta na sociedade. Ou seja só a mulher pode se defender. Tentei mostrá-la que não preciso ser um Yanomami para compadecer-me e cobrar direitos para esse povo, mostrei que este nem fala tem, mas gemidos de dor. Penso que confundem “lugar de fala” com “fala com conhecimento de causa”, que este texto deixa bem claro a diferença. Por mais que trago em mim todas as lutas das minorias, ainda assim nunca senti e provavelmente não sentirei na pele o quê um Yanomami ou uma mulher sentem, este nos seus respectivos mundo tem o “conhecimento de causa”. Mas o olhar de fora também pode a pontar rumos no sentindo de diminuir as diferenças de sofrimentos dos hoje ditos “minorias”.
Dai a César o que é de César! Como pode César, certificar-se de que o gemido de dor indígena não é uma reinvindicação de seus direitos, ainda que numa reclamação da língua de seu próprio povo? Não lhe é possível observar que a violência de seu comentário, carregado de uma ideologia anti-identitarismo, viola o protagonismo das reinvindicações indígenas? São os povos originários que têm que aprender nosso idioma e não o inverso para terem seu lugar de fala? É isso mesmo? Também são os negros que necessitam ser advertidos do que é ser negro e das situações em que há ou não racismo? São as mulheres que precisam da orientação masculina para entenderem de sua própria natureza? Que o lugar de fala, bem como o nosso pecado do olhar de Deus sejam parte integrantes e complementares de nossa fala, nos é perfeitamente compreensível, mas isso não significa dizer que possuam equivalência, em absoluto.
André, não quis dizer que o indígena não tem voz por simplesmente ter um linguagem diferente das demais. Lamento que tenhas entendido desta maneira. Mas o quê tentei dizer que sua fala ou mesmo seu gemido foi sufocado por quatro anos. Período em que quem estava no governo não governava para as minorias, como ele mesmo disse, mas para os “poderosos”. No comentário que fiz tentei mostrar que muitos e muitas tem suas vozes sufocadas pela opressão e se ainda não temos mãos sobre nossas gargantas temos que gritar mais alto em favor dos que se encontram sufocados. Mas é isso aí, valeu a dica. Espero que estejamos olhando para mesma direção.
Prezado, César. Sim, a compreensão do que falou me foi bastante clara, no entanto, a despeito de ser uma pessoa que se entenda por esquerda, estou muito distante dessa argumentação sofismática do Ghiraldelli sobre o identitarismo. E aproveito a oportunidade de perguntar a você e a toda tal esquerda reflexiva. Vocês já ouviram ou mesmo conhecem a argumentação sobre identitarismo da Rita Von Hunty, uma LGBTQIAP+ assumida e militante contra a homofobia? Se só conhecem a argumentação quixotesca do Ghiraldelli, como podem verdadeiramente refletir sobre a questão de forma dialética? Desculpe, você fala de maneira muito cafona e desrespeitosa de sua amiga mulher ( e aqui não é uma mera redundância de termos ), já a subjulgando como identitarista. Por favor, César, se você for daqueles que pauta suas reflexões pela razoabilidade, abandonando certa maneira a verdade absoluta à utopia, sim, estamos na mesma direção.
Ao que tudo indica, o ‘ filósofo ‘ não se entende bem com os paradoxos! Quem nos garante que ‘ ser bebê ‘ a partir do não lugar de fala destes, de fato determina o que é ser um bebê? Evidentemente que não se conspira aqui contra o método científico que nos permite acomodar todos os que não têm seu lugar de fala, como os próprios bebês, animais e reino vegetal, a uma condição de acolhimento e convivência que nos é conveniente. No entanto, isso não nos permite afirmar que estejam bem determinados, em absoluto, ainda mais quando a advertência, nos vem de quem possui seu lugar de fala! Que absurdo!
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