Há um consenso na esquerda de que taxas de juros não podem ser altas, pois inibem a iniciativa privada de tomar empréstimos para investimentos, o que impossibilita o desenvolvimento empresarial e, por conseguinte, limita a oferta de emprego ou até mesmo cria o desemprego. Além disso, taxas de juros, conforme o caso, podem acabar colocando as famílias em dívidas, e como são elas as que gastam e movimentam a economia, há o perigo da parada de negócios no país. Essa é a cartilha jornalística da esquerda.
A direita, em termos econômicos representada por matizes do neoliberalismo ou do liberalismo, diz que taxas de juros são altas para conter o aumento de preços. Ou seja, se a inflação pode apontar a cabeça, é necessário desaquecer a economia do mercado das coisas para ampliar o mercado da mera transação de dinheiro, o mercado financeiro. Com taxas de juros subindo, o capital estrangeiro vem para o mercado financeiro doméstico, traz dólares, e com isso faz o dólar cair de preço, barateando muita coisa. O capital nacional não se envolve com investimento, mas, em compensação, compra títulos do governo, financia o estado para que este possa trabalhar com mais folga nas políticas públicas. Essa é a cartilha jornalística da direita.
Nos dois casos, o objetivo final, ao menos o que é dito, é o de se alcançar a melhoria geral da vida do país, principalmente dos mais pobres. No caso da direita, acrescenta-se aí mais um frase: “os mais pobres são os que mais sofrem com a inflação”. Quem já não ouviu isso?
A esquerda retruca para a direita: não há interesse dos liberais em bem estar de pobre, o que há é que a taxa de juros alta remunera melhor os compradores de títulos, além de garantir uma negociação mais fácil desses títulos, e com isso os mais ricos, que são os maiores detentores de títulos, são os que ganham. E ganham também no financiamento que suas companhias fazem para o consumidor, para as famílias.
A direita não avança mais, apenas repete o mantra: quem não faz taxa de juros oscilar para cima para desaquecer a economia lança o país no fogo que sai das narinas do dragão da inflação. “É tiro no pé” – repetem. Ao final, segundo a direita, qualquer aluda de políticas sociais para os trabalhadores e mais pobres será corroída pela inflação.
Então, a esquerda tende a assumir o meio termo: taxas de juros são instrumentos benéficos, e não a corda com forca feita para o suicídio. Há de se encontrar uma taxa ideal. O Banco Central deve fixar uma taxa condizente com o desenvolvimento e condizente com o plano de não deixar a inflação estourar. A direita salta no meio do picadeiro e grita: o Banco Central não fixa a taxa de juros segundo a sua própria cabeça, ele o faz olhando para o mercado. Os movimentos do mercado possuem variáveis que são levadas em conta pelo Banco Central, e só então ele coloca a taxa de juros. É aqui que a porca torce o rabo, ou melhor, é por essa hora que surge André Lara Resende de rabo torcido ou, mais elegantemente, de nariz torcido. Ele torce o nariz para seus ex-companheiros de governo FHC, em especial um dos que, com ele, ficou conhecido como o pai do Plano Real. Nunca o Real teve mãe! E isso deveria ser significativo para os observadores!
A população em geral até hoje não entendeu o Plano Real. Não há cultura em economia para tal. A escola pública desconsidera em seu grade curricular o assunto. O meio jornalístico mal sabe comentar a política, e a economia, então, ficam com os mesmos de sempre, que por acúmulo de tarefas param de estudar muito cedo. O resultado é que o Plano Real, até hoje, é visto pela população com tendo acabado com a inflação como que por milagre. E poucos se lembram que ele deu um bom tombo em boa parte de nossa indústria. Aliás, a mídia faz questão de continuar a falar do Plano Real como se este, ao final, não tivesse levado FHC a não conseguir fazer o sucessor. Serra perdeu para Lula na campanha presidencial do início do século XXI.
Mas, a questão atual é, sem dúvida, não o plano Real, mas o núcleo da manjedoura do Plano. Nunca vi um bebê com dois pais biológicos que não fosse bebê de gato. Mas, enfim, temos aí Armínio Fraga e André Lara Resende. E hoje, enquanto o primeiro desfila no Carnaval que se aproxima, agora em 2023, no bloco liberal, que nunca perdeu a festa do Momo nem no tempo da Covid, o segundo pai bandeou de lado, e desfila como candidato a Presidente do Banco Central no bloco do PT. A razão disso é que André Lara Resende defende, junto com a esquerda, juros mais baixos para o Brasil. Os jornalistas que estão tentando julgar as escolas de samba e as fantasias, tão ocupados em alimentar a imprensa de internet, que exige tempo integral nos dígitos, vão falando e escrevendo de maneira mais frenética que o próprio carnaval. Chegam a ir onde tem frevo, abandonado a cadência do samba. Por isso, não informam os leitores que as razões pelas quais Lara Resende defende juros mais baixos nada tem a ver com as razões pelas quais os que também defendem juros mais baixos assim o fazem.
Lara Resende se converteu à TMM, Teoria Moderna da Moeda. Como todo recém convertido, acha que todos os outros, na esquerda e na direita, ainda não tiveram o prazer de estar sob a iluminação divina com a qual ele próprio foi ungido. Todavia, isso não foi nada inútil. Passou a publicar para se explicar. Todavia, quando fala, se explica bem menos, e deixa no ar a ideia de que poderia estar no mesmo barco de economistas de esquerda. Além disso, conta a seu favor com o namoro da esquerda americana em relação à TMM. O resultado disso tudo é que o plano analítico não se populariza.
Da nossa parte, por conta de sermos filósofos, o que sempre chama a atenção são antes de tudo os fundamentos das falas. As narrativas são produzidas para provocar efeitos práticos mais imediatos. As narrativas teóricas são feitas para garantir ao convertido que ele foi convertido por algo que vem do âmbito do divino, e não se trata de uma mera crendice. Lara Resende não se faz de rogado.
A narrativa teórica de Lara Resende, na questão dos juros, tem como frase paradigmática um enunciado curioso: “Ao elevar a taxa de juros para conter a demanda e, supostamente, reduzir a inflação, o Banco Central está na realidade definindo a inflação mais alta” (Camisa de força ideológica, Penguin, 2022, p. 93).
A frase é espantosa, ela contraria o senso comum da economia, ou o que Lara Resende chama de “teoria convencional hegemônica”. Ninguém da esquerda diz isso. E ninguém na direita vai concordar com isso. Então, o que é que Lara Resende quer com isso, uma vez que ele não está disposto a ficar na frase e, a partir daí, ser internado em hospital psiquiátrico?
Tudo começa na TMM com a tese sobre a origem do dinheiro.
Um dos princípios da TMM, talvez o mais conhecido, e que Lara Resende defende, é que a moeda não vem do fato de ser um equivalente universal gerada no mercado e pelo mercado, mas simplesmente vem do poder do estado. A moeda, nessa teoria, é uma “unidade de dívida pública, legalmente aceita para o pagamento de impostos e obrigações contra o estado, que passa a ser a unidade de conta da economia”. (p.90). Weber definiu o estado como a instância que tem o monopólio legítimo da violência. A TMM de Lara Resende define o estado como a instância que tem o monopólio legítimo da criação da moeda. De fato, são coisas confluentes! Vamos manter esse principio na memória. Voltaremos a ele.
Os estudos seguidos por Lara Resende seguem a narrativa crítica à Teoria Quantitativa da Moeda (TQM). Ela é representada pela célebre equação MV = PY. M é a quantidade de moeda, V é a velocidade de circulação da moeda, P são os preços e, enfim, Y é o nível de atividade da economia. Por essa equação, o aumento da moeda implica no aumento de preços, se a velocidade de circulação e o nível de atividade da economia são constantes. Eis aí o fenômeno da inflação: preços aumentam se há aumento quantitativo de moeda. É um resultado intuitivo, e boa parte de nós pensa assim quando se fala de inflação.
Assim, pela TQM a estabilidade da inflação é alcançada por meio da alteração da taxa de juros. A taxa de juros deve correr na proporcionalidade inversa à taxa de inflação. Quando há a subida de preços, a taxa de juros é acionada para cima, e eis que se espera que os preços caiam. A intuição concorda: se a economia desaquece, os preços param de subir, ou seja, a inflação cai e/ou se estabiliza. Tanto a direita quanto a esquerda, nas narrativas que mostramos no início, aceitam a equação da TQM. A diferença é, portanto, quanto ao julgamento que fazem a respeito do que é necessário suportar, se mais ou menos inflação.
O que Lara Resende argumenta, e com razão, é que no mundo todo, nos anos mais recentes, a taxa de juros alta, no curto prazo, realmente reduz a inflação, mas no longo prazo, ela faz aumentar. Se é assim, o que é que pode regular a taxa de inflação? Ele diz: a política fiscal. Ou seja, o equilíbrio sustentável da dívida pública. Ora, mas se é pelo cuidado com a dívida pública, então fica difícil para o estado desenvolver políticas públicas, pois só com a arrecadação de impostos isso não é possível, deve-se subir a taxa de juros para atrair o capital de modo que este compre títulos do governo e financie o estado. Mas é exatamente aí que Lara Resende recupera o princípio da TMM, que tem se verificado empiricamente: não é pela ampliação da dívida que se deve encontrar moeda, mas simplesmente pela ampliação da base monetária feita pelo próprio estado. Ele é emissor. E nos últimos anos, cansou de emitir e de não causar nenhuma inflação. Foi isso que se viu a partir das crises de 2008 nas economias mais complexas e é o que se vê ainda (Juros, moeda e ortodoxia: Penguin, 2017).
Assim, a maior necessidade de financiamento público não requisita necessariamente juros mais altos. E o modelo de análise que corresponde a esse quadro, ou seja, que dá conta da expansão monetária que ocorreu (Quantitative Easing), segundo Lara Resende, nos empurra à conclusão de que o juro nominal alto sinaliza uma inflação alta. Ou seja, juros altos não só agravam o desequilíbrio fiscal, mas também, a longo prazo, sustentam uma inflação alta. Os preços mais altos se mantém por conta da sinalização dos juros altos. Esse resultado é anti-intuitivo, sim, mas somente para aqueles que permanecem pensando na relação da quantidade de moeda como sendo relacionada a aumento de preços.
A TQM é um forte componente do que André Lara Resende chama de “camisa de força ideológica”. Talvez o termo ideologia, nesse caso, não seja um bom termo. Não se trata realmente de ideologia, de envolvimento com direita e esquerda, mas se trata de mentalidade. Nesse caso, mentalidade, aqui, é algo ligado aos que os historiadores, desde os anos setenta – em especial dos da chamada Nova História – passaram a utilizar para explicar comportamentos arraigados nas populações, nem sempre explicados racionalmente, ou seja, muitas vezes comportamentos que não deveriam de se sustentar diante de mudanças dos elementos empíricos.
Desse modo, Lara Resende se torna um aliado dos que hoje, pela esquerda, criticam a alta da taxa de juros. Mas ele não o faz, muito provavelmente, por compartilhamento dos mesmos fundamentos, mas por conta de seu alinhamento às narrativas que estão no arcabouço da TMM. Essa distinção é importante. Não levá-la em consideração faz muitos seguirem o debate econômico dos últimos anos, em especial este que se desenvolve agora, como a maior parte dos jornalistas assim o faz, com comportamento de rebanho, e não “pela própria razão”, no modo iluminista.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, escritor, professor e jornalista
Ele está capitaneando uma quebra de paradigma no Brasil. Torço para que seja bem-sucedida, que forme novas bases de pensamento e discussão, e sobretudo de ação política com efeitos na sociedade e na vida do povo.
Michel Lafer, muito prazer.
Concordo com seu comentário. Só acho que ele terá êxito somente se for realmente ouvido e, quiçá, ser alçado ao cargo de Presidente do BC. Implementando, na prática, as mudanças e estas dando resultado positivo aí sim ganhará a atenção das elites e da mídia e o apoio da sociedade, como ocorreu com o plano real. Poderá até ser o sucessor do Lula, kkk, como pai desse segundo filho, que pretende “consertar” o estrago do primogênito (o real). Abraço.
Obrigado, professor. Espero mais vídeos e textos, o tema é muito rico.
Mesmo condividendo muitas coisas da MMT, discordo sobre o fato que seja verdadeiramente alternativa. A MMT não é nada de novo, é uma mixtura de teorias Keynesianas e críticas ao monetarismo (se veja o livro de Kaldor, 1981, “Fallacies on Monetarism”) que quem frequenta o debate economico já conhece e com as quais – na maior parte – concorda. Ótimo que agora se tornou “moda”, mas nada mais. Pode ser verdade que uma parte da esquerda concorda com a TQM, provavelmente (e infelizmente) o Haddad está entre eles, mas a parte mais exclarecida da esquerda (e o Belluzzo esté entre eles no meu ver) sepre argomentou contra o monetarismo e o fato de considerar a moeda endógena ao processo économico, como a MMT parece ter descoberto agora.
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