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GLÓRIA MARIA E O ANTIVITIMISMO

Caso Hobbes estivesse entre nós, ele esqueceria da expressão “guerra de todos contra todos”, com a qual ele caracterizou o “estado de natureza”. Ele iria, talvez, usar “tempo da vitimização de todos contra todos”, para então dizer que, para romper com isso, veio a civilização, o tempo da “vitimização de todos a favor de todos”.

É difícil não ver que vivemos o tempo da vitimização.

Glória Maria nunca quis fazer auê com os episódios de racismo pelos quais passou. Não dava trela para esse tipo de coisa. Quando contar sobre episódios desagradáveis virou moda, tentaram lhe arrancar histórias sobre preconceito. Sempre educada e alto astral, ela não fez cara feia, mas não deu vazão aos instintos alheios. Com a sua morte, agora os episódios aparecem e a imprensa fatura em cima.

A modernidade é, para Peter Sloterdijk, a continuidade da intensificação do mimo, que fez com que o primata pré-homem virasse homem. Somos fruto da leveza. Antes de tudo, por termos tido, em determinado momento, uma mãe que não se manteve como uma simples progenitora. O homem é um animal que tem mãe. Um dia uma fêmea parecida conosco mas que ainda não era uma de nós teve um filhote prematuro. Ele veio sem pelo e frágil. Por conta da sorte, o bando daquela fêmea teve algum sossego diante de predadores e, além disso, a falta de comida não foi uma constante. Ela conseguiu cuidar do filhote frágil, e a evolução fez o resto. Veio a neotenia: nós, homens, nascemos adiantados. Isso, de nascer com cara de aborto, virou uma caraterística da espécie, e nossa fraqueza virou vantagem, pois somos os animais que nunca encerramos a aprendizagem. Em nossos tempos, o mimo ganhou empurrões pelo modo como vivemos a lógica do dinheiro, da tecnologia e da despreocupação formativa. De certo modo, a vida contemporânea é repleta de leveza. O dinheiro nos dá trânsito, a tecnologia nos dá tempo e, enfim, a individualidade curtida nos dá liberdade de nos formarmos sem grandes investimentos e esforços – podemos nos tornar influencers! Que isso seja para alguns somente, não importa. Os outros seguem achando que podem também o que não podem. Afinal, as sensações da classe dominante são as sensações dominantes. Que isso, a socialização do mimo dada por dinheiro, tecnologia e liberdade de mediocridade, seja aparente ou ideológico, não quer dizer que não tenha lá a sua verdade. Então, ficamos tão leves por conta das desonerações que a vida moderna nos deu que temos que procurar alguma reoneração, algum peso, alguma coisa que reponha a lei da gravidade, da qual fizemos troça. Ou fazemos isso ou podemos levitar. Podemos sair por aí sem corpo, pela nuvem internética, e não sabermos mais voltar! Sabemos da “insustentável leveza do ser”.

O vitimismo de nossos tempos é a maneira como fazemos a história se repetir como farsa.

Que tal malharmos na academia, conversar sobre doença, reclamar de banalidades? Que tal passarmos mal por engordar e, ao invés de ver o que ocorre conosco, ficarmos gritando “gordofobia”, e dando uma de adolescente dizendo “você tem que me aceitar como sou”? Mas que tal, ainda, sermos mais “profundos”, e termos de confessar para a filha do Temer, ou para a Djamula Ribeiro (do movimento “Agora você sabe”), que alguém fez algum tipo de afronta sexual conosco na infância? Mas, e para os leitores? Ora, algum caso de racismo, em especial de quem não quis que isso ficasse sendo manchete – não é bom contar? Sucesso entre leitores, né? Afinal, é a bisbilhotice que, por si só, já ajuda, associada ao vitimismo que se tornou a marca de nossa época. Vende jornal. Vende tudo. Vende tênis e crédito bancário, se vier junto da “reportagem”.

Glória Maria está aí, no meio de centenas de obituários, reaparecendo como personagem de episódios de racismo que, ela própria, não achou que deveriam ganhar relevância.

“Escolhidos do mundo para mostrar chagas, vocês existem e são importantes para nós” – principalmente para nós, os que fazem discursos de posse ou de despedida segundo o que pede o figurino do coach de plantão.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista

6 comentários em “GLÓRIA MARIA E O ANTIVITIMISMO”

  1. Para mim, o ponto mais marcante é o de que as sensações da classe dominante são as sensações dominantes, mesmo que elas não sejam factíveis. Assim é a sensação de viver uma projeção da vida alheia, que nunca se alcança, tal como o sujeito miserável e sem expressão, que ainda assim, dando ouvido aos coachs do momento, segura o cigarro aceso na frente do espelho, puxa e solta a fumaça, emendando a frase: “Ao sucesso!”

  2. Fábio Coelho Kwitko

    Credo acordar sábado e ler isso! Sua vó que nasceu assim! Eu nasci bem rechonchudo cabeludo e bonitão, e mamãe passou mel em mim.
    Também detesto gorda!
    Tem tribufu aí que deveria é dar graças a deus de ter sido comida por alguém na vida! Tem criança que foi desvirginada por ninguém menos que o Michael Jackson, e fica reclamando. Quem vai querer comer o Macaulay Culkin hoje em dia?!
    Outra modinha xarope é essa de as pessoas ficarem mentindo que foram pobres. Que gentalha de mal gosto! Já não basta a quantidade de pobre mesmo que tem na cidade?! Eu queria viver num mundo só de gente fina!
    Que foi, não gostou, seu pé-de-chinelo?! Vai nascer de novo! …Vai fazer uma dieta, gorda!

  3. Minhas pacientes pretas têm certeza absoluta que a brilhante jornalista global Glória Maria “se branqueou” em termos ideológicos. Nada a estranhar, porque o poder e dinheiro costumam afastar bastante aqueles abastados de suas origens e quantidade de melanina na pele.

  4. Discurso igualmente proferido por Fernando Holiday e Sérgio Camargo. Quando pessoas negras tornam-se alvo preferencial da violência policial, não é vitimismo, é racismo.

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