O professor Ladislau Dowbor leu O valor de tudo, de Mariana Mazzucato, com os olhos do economista. Então, deixou espaço para a minha colher. O livro apresenta uma primeira parte que interessa ao filósofo.
Dowbor se interessou em mostrar como que o capitalismo financeiro fez “a cauda balançar o cachorro”. Ao invés das finanças colaborarem com o setor tradicionalmente chamado de produtivo, elas passaram a fazer da renta o mecanismo hegemônico do capitalismo. Com isso, aumentamos patrimônio de ricos e diminuímos empregos de todos, contribuindo para um mundo de mais distância social. Resumindo ao máximo, é esta a lição do livro e também aquela na qual insiste Dowbor em seus livros. Todavia, a primeira parte, que Dowbor deixa de lado ao comentar o texto, é a tese de Mazzucato sobre as razões teóricas pelas quais o capitalismo conseguiu contar histórias que pudessem justificar essa virada em favor da financeirização.
Ora, sendo da linha dos filósofos Donald Davidson e Richard Rorty, que nos ajudam a tomar as narrativas como importantes, não posso deixar de notar a primeira parte do livro, na qual a própria Mazzucato assume a postura de quem também está interessada nas narrativas. Para ela, o papel da Economia tem sido o de contar narrativas que, não raro, tiveram com objetivo o convencimento de alguns que eles não são merecedores dos ganhos da sociedade, mas que outros são.
Aliás, diga-se de passagem, talvez a própria Mazzucato não tenha atentado para a sua filiação ao pragmatismo. Ela parte de Platão, justamente um fundacionista (ao menos se consideramos que Platão foi platônico – o que não é garantido), nesse sentido o oposto de Rorty, para dizer que foi com ele que aprendeu a ver a economia como contendo narrativas justificadoras. Assim, ela diz que seu livro “questiona as histórias que ouvimos a respeito de quem cria valor no capitalismo contemporâneo (…) e questiona o efeito que tais histórias têm sobre a capacidade de alguns poucos de extrair mais da economia em nome da criação de valor”. (p. 15). Não há nada mais pragmatista, em um sentido rortiano, que esse propósito!
A maneira como ela cumpre esse seu propósito é bastante simples. Ela apresenta basicamente dois tipos de narrativas. O primeiro tipo acolhe as teorias dos clássicos da filosofia política – Adam Smith, David Ricardo e Marx. São eles que dizem que o valor está relacionado ao trabalho, em especial ao tempo de trabalho. O segundo tipo abarca as teorias marginalistas, que se fixam na utilidade para determinar o valor. No primeiro caso, temos teorias objetivas. No segundo, teorias subjetivas. As teorias objetivas tomam o valor, a partir do tempo de trabalho, como o que pode determinar preços. As teorias subjetivas acolhem os preços, como eles se dão no mercado, como um fato que por si só diz tudo o que pode dizer sobre o valor. Nesse caso, valor de é algo é o seu preço. Mazzucato diz que em determinado momento, a partir do final do século XIX, em especial com as denúncias dos socialistas a respeito da exploração do capital sobre o trabalho, houve um deslizar das primeiras teorias para as segundas. As teorias subjetivistas ganharam hegemonia porque se mostraram mais afinadas com o movimento da financeirização que, enfim, foi ganhando terreno no século XX para se tornar a regra de nosso tempo.
Mazzucato não conta como a história da financeirização evoluiu. Ela não se mostra preocupada com os Trinta Gloriosos, o fim do acordo de Breton Woods, o neoliberalismo subsequente e, enfim, a crise da Nova Economia. Seu objetivo é mostrar que as narrativas ligadas à “revolução marginalista”, a ascendência da teoria do valor vinda do marginalismo, venceu outras narrativas por conta de virtudes que lhe seriam internas. Que virtudes? Algo não necessariamente muito justo: a narrativa dos marginalistas inverteu todo um discurso sobre a distinção entre produtivo e improdutivo. A renta era tradicionalmente improdutiva, da Idade Média aos clássicos e até mesmo para neoclássicos. Mas, as narrativas do marginalismo incluíram como produtivo também a renta, e ajudaram os países a começar a colocar no cálculo do PIB o setor financeiro. Do ponto de vista de como uma narrativa venceu outra, Mazzucato aposta que foi esta a capacidade do marginalismo de se tornar hegemônico, sendo que hoje ele é ensinado aos estudantes de economia não como sendo uma narrativa, mas como a teoria econômica par excellence – a correta e a única.
No desenvolver do livro, Mazzucato aponta para os impasses da narrativa marginalista, e de como vários aspectos foram nublados ao se abandonar e mesmo soterrar as teorias objetivas sobre o valor, como as dos clássicos. Na teoria marginalista, uma barra de chocolate não ganha valor por conta do trabalho humano nela embutido, mas sim por conta de que, em determinado momento, há quem queira comer chocolate. Em outro momento, aquele que já comeu chocolate passa a ver uma barra de chocolate com menos valor do que via minutos antes, quando estava desejoso de chocolate.
Marx nunca desconsiderou essa “teoria da demanda”. Mas ele a tomava como básica, como o elemento comum ao mercado. Se não vemos utilidade em algo, não é possível fazer dele uma mercadoria. Justamente por isso, este, segundo Marx, não era o elemento diferenciador. O elemento diferenciador deve ser o que se poderia acrescentar ao básico do mercado, ou seja, o fato de que há produtos que incorporam mais valia (por aumento de tempo de trabalho e por produtividade), o excedente de tempo trabalhado. Os trabalhadores precisam repor suas energias, mas, para tal, consomem mercadorias que não são o equivalente, em tempo de trabalho (socialmente necessário) e, portanto, em valor, que aquelas que tais trabalhadores produzem para seus patrões Desse gap surge o valor, a mais valia e, enfim, pode-se tirar o lucro. Se isso pode se precificado, então o preço deriva daí, do valor.
A teoria clássica sempre bateu cabeça sobre o problema da precificação. Os marginalistas resolveram então abandonar esse problema e simplesmente decretar que o valor é dado pela utilidade, pelo jogo da demanda e oferta, e que isso é espelhado pelo preço. Existe o preço e este é tudo, é o valor.
Até aí temos Mazzucato. Mas, agora, ponho minhas cartas na mesa. Para além da história econômica, que poderia ser acrescentada ao roteiro de Mazzucato (mas o que deixaria o livro muito massudo), o que há para o filósofo notar é que a “subjetivação do mundo” é de fato uma tendência da modernidade, algo notado por Hegel e Nietzsche, ainda que com sinais trocados: algo nocivo em Nietzsche e algo positivo em Hegel. Nesse caso, a economia não destoa desse grande movimento da cultura moderna, notado pela filosofia. Um outro detalhe é a matematização da teoria econômica. A teoria subjetiva, por ser uma teoria que só olha para o preço, acabou ganhou um aspecto de objetividade por conta de sua fácil representatividade por meio de equações, curvas e gráficos. O que era mais objetivo e mensurável, não era compatível com a matematização. O que nasceu mais subjetivo, ao fim e ao cabo se fez aparentemente mais objetivo por meio de uma representatividade matemática.
Desse modo, o subjetivismo dos marginalistas se sentiu mais à vontade com o positivismo do fim do século XIX e de grande influência em todo o século XX. As narrativas marginalistas, hoje, por esse aspecto, até se parecem aos olhos dos estudantes, aquelas mais capazes de serem as únicas verdadeiramente científicas. Ministros e economistas falam, sem corar, o quanto essas teoria são a verdade, negando qualquer validade ao que era o objetivo no passado, ou seja, as teorias do valor trabalho.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista