O Império foi escravista, mas não necessariamente racista. As relações entre o negro vindo da África e o Império brasileiro eram, antes de tudo, econômicas, não implicavam em uma relação cultural que, nos dias de hoje, chamamos de preconceito racial e racismo. Vários negros filhos de senhores de terras com escravas receberam o nome do patrão e boa educação, não raro uma educação na Europa. Voltaram para o Brasil e ocuparam cargos importantes. Tiveram papel decisivo no movimento que empurrou o Império a colocar fim no regime escravocrata. Quando da ida de D. Pedro II para a África, em desterro, várias famílias de negros livres, que tinham assento na Corte, foram embora junto com o imperador.
Escravismo é uma coisa e racismo é outra. A República não foi escravista, claro, mas ela deu margem para o racismo. Não por si mesma, mas pela maneira que ela encaminhou sua política de administração da mão de obra.
Na libertação dos escravos, muitos foram deixados nas cidades, sem qualquer aporte financeiro. No Rio de Janeiro, a desgraça veio rápido. Na festa da Abolição, os negros dançaram nas ruas e comemoram muito com cachaça e folia em uma longa noite. De manhã, não tinham mais para onde voltar. Logo viram que os que não comemoraram estavam também chegando, completamente nus, e foram despejados no centro do Rio de Janeiro. Ali ficaram por semanas. O ambiente ficou fétido. As elites locais reclamaram. O poder público agiu como o de costume: colocou os negros para correr. Eles foram para os morros. Foi o começo das favelas. Viveram nos morros em condições do homem primitivo.
Os negros que tinham alguma condição – roupa e pouso – tentaram arrumar emprego. Outros negros já estavam empregados, e foram ajudando os mais pobres. Mas logo chegaram os imigrantes. Estes, por sua vez, foram tratados com a brutalidade costumeira. Um país educado pela escravidão e pelo sistema de coronelato entendia pouco de como era um mercado capaz de abrigar a mão de obra livre. Os imigrantes perceberam logo que não podiam se igualar ao negro, e quase que em um movimento espontâneo, tentaram se diferenciar deles de toda maneira. A ideia do negro indolente e malandro, sujo e incapaz, que não era algo forte no Império, tornou-se algo do senso comum, até mesmo entre negros. O imigrante colaborou bem na propagação desse modo de pensar. Foi a maneira que ele encontrou de se colocar mais próximo dos ricos do local, longe daqueles que, enfim, viviam em sua maioria em casebres, e que antes estiveram acorrentados em senzalas. O negro passou a ser preto. Foi notado pejorativamente pela cor.
O preconceito racial e o racismo recrudesceram na República.
Todavia, nos grandes centros, os negros se integraram aos imigrantes na indústria e no comércio. E os movimentos contestatórios de esquerda acolheram muitos negros. Em tipografias, eles se destacaram como propagandistas de causas socialistas. Mais tarde, já sob os governos de Vargas, o movimento negro cresceu e paulatinamente ganhou espaço em todo canto da nossa cultura. O negro surgiu, então, como pertencente a uma autêntica minoria, quando após a Segunda Guerra Mundial, por conta do genocídio hitleriano, a própria noção de minoria se firmou.
Quanto mais o racismo colocou sua cabeça para fora, mais os negros, então aliados de brancos de esquerda ou liberais de cabeça aberta, se puseram a trabalhar em todos os sentidos para mudar costumes e leis. O resultado foi esplendoroso. Podemos sentir isso hoje. Nossa Constituição atual proíbe o preconceito racial. Recentemente, o presidente Lula tornou o crime de injúria racial igual ao crime de racismo. Não se trata de lei “para inglês ver”. É uma das leis mais cumpridas no Brasil. Junto disso, para criar mais integração, fez-se a bela política de cotas no ensino universitário de graduação (local próprio para isso), que agora já completa mais de dez anos. A Rede Globo passou a investir em atores e atrizes negros. Machado de Assis foi traduzido no exterior e passou a ser visto como clássico da literatura internacional. Nosso número 1 da Academia de Letras, o gênio Machado, que já nos iluminava, agora ilumina toda a cultura universal. Nossa sociedade se tornou altamente reagente diante do preconceito racial e do racismo.
Com um pouco de dialética, nossa história mostra a vitória dos negros e da democracia racial sobre o racismo. Somos um povo cuja maioria numérica é negra, um povo que absorveu a cultura afro, especialmente no âmbito religioso. Um povo que tem dado à minoria negra – minoria no sentido sociológico – um tratamento especial. As escolas foram chamadas a implementar o ensino de cultura afro e história da África nos currículos. Nunca um país se mobilizou tanto no sentido de efetivar o ideal da democracia racial no interior da democracia representativa. Isso foi um ganho da democracia participativa. Temos de nos orgulhar disso. Falta fazer muito, mas o que fizemos, nenhum outro lugar fez tão bem e tão rápido.
Por isso mesmo, a tese do racismo estrutural, é desmentida historicamente. Não fomos estruturados pelo racismo. Não somos racistas. O Brasil não está sobre pilares racistas e muitos menos nosso povo pode ser chamado de racista. O racismo que perdura, e os índices estatísticos mostram que ele perdura, não faz parte do que estrutura o Brasil, mas são manchas que estão sendo extirpadas. Vão ser extirpadas. Mas podem demorar mais, se engolirmos a ideologia da tese do racismo estrutural, uma tese que tem vindo no bojo do neoliberalismo e é nitidamente retrógrada, cozinhada em certas fendas acadêmicas segundo o tempero do ressentimento. Este é o pior dos temperos, causa enorme diarreia.
A tese do racismo estrutural é antidialética. Ela não capta o movimento histórico em suas lutas. Ela é ideológica: quer colocar todo brasileiro como culpado, e não como responsável. Ela expõe o país a um retrato mentiroso de si mesmo, e nega a própria história de vitórias do movimento negro. Talvez ela interesse ao neoliberalismo e ao identitarismo acoplado a ele. O momento agora, por conta dessa ideologia, infelizmente, é o de louvar o negro que venceu por ele mesmo em uma sociedade definida como racista, decretada racista por algumas de suas autoridades. Não devemos cair nessa ideologia. Ela é a porta do inferno, o beco dos ressentidos, a mentira que abafa os movimentos coletivos que construíram um Brasil que se põe no mundo como um dos países mais próximos da democracia racial ideal do que qualquer outro país ocidental.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista.
PS: o professor Milton Santos, geógrafo e pensador brasileiro, se vivesse hoje, estaria profundamente triste com a disseminação da tese do racismo estrutural entre nós.