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DE ONDE VEIO O IDENTITARISMO?

A representatividade das minorias na democracia liberal é um ganho inestimável em termos civilizatórios. As políticas de cotas no ensino universitário de graduação são parte dessas boas medidas postas no sentido de tornar os povos livres de preconceitos. Em geral, são as esquerdas que mais insistem neste ideal. Mais que os próprios liberais que, enfim, de modo primeiro empunharam a bandeira da democracia moderna, ou seja, a democracia liberal. Esse ideal nunca se vinculou aos programas identitários. Foi a direita que defendeu a ideia de identidade nacional, identidade de povo e similares. Mas, a partir de meados dos anos 1970, especialmente nos Estados Unidos, os movimentos de minorias começaram a se dirigir rumo ao identitarismo. Eles se fundiram ao neoliberalismo e passaram a defender pautas e modos de ação bastante distintos dos movimentos coletivos de minorias, próprios dos anos sessenta.

Atualmente, muitos confundem identitarismo com movimentos de minorias, e não raro com ideários da esquerda. Identidades a respeito de gênero, orientação sexual, etnia, cor, religião etc., nesse começo de século XXI, se preocupam antes de tudo em glorificar aquele que, vindo de alguma minoria, é o “indivíduo vencedor” na sociedade capitalista atual. Negros, mulheres e gays se destacam nessa prática, induzindo outras minorias menos emergentes a fazerem o mesmo. A ideologia do neoliberalismo, que prega que todos nós somos “empresários de si mesmos”, ganhou de vez o modo de falar e agir de boa parte dessa esquerda. Mesmo que alguns identitários saibam algo de Marx, e até o citem, eles nada possuem dos ideais que um dia nortearam social democratas e comunistas. É possível que alguns até estejam em grupos que mantém esses rótulos, mas a prática é a do “self made man”, agora “negro”, “gay” ou “mulher.”

Junto disso, a identidade perdeu traços culturais e adquiriu traços rasos, especificações que estão longe da própria característica da minoria da qual dizem emergir. O negro é negro por conta da cor da pele. (Há até quem louve o “negro retinto” – como fez a jornalista Miram Leitão. Faria bem, para ela, ver o belo e chocante filme Passing). O gay é gay porque faz sexo de modo diferente do hétero (há quem ache que gay é definido por fazer sexo anal! E pior ainda: há até quem ache que só quem é penetrado no sexo anal é gay!). O caso da mulher, às vezes, é ainda mais grave: é mulher a mulher que decide dizer que foi oprimida (sem contar que há os que acreditam que a mulher para ser mulher tem que contar isso, publicamente, e a violência tem que ser sexual – do assédio ao estupro). Inaugura-se então a época do self-made-man-vitimado e raso em subjetividade. Eis aí a face do domínio neoliberal como ideologia que morde o calcanhar das esquerdas, e não raro, em alguns lugares e tempos, devora o corpo todo.

Diante dessa alteração, a investigação que acredito que deva ser feita é sobre as razões dessa mudança, e como ela se fez. Levanto aqui algumas pequenas hipóteses.

Meu ponto de partida são Hegel e Nietzsche. Meu ponto médio é Marx. Meu método é o de Rorty – o método que observa as narrativas e constrói outras.

Tentando tornar a metafísica vencedora, capaz de se impor como a narrativa correta e final, Hegel ofereceu como subproduto um bom retrato da modernidade. Sua “dialética do senhor e do servo” trouxe à tona um elemento que deveria encarnar o homem genérico, o universal humano moderno: o trabalhador. Apesar de submetido ao senhor, a capacidade do servo de transformar a natureza pelo trabalho, seria enfim o trunfo do segundo sobre o primeiro. O senhor se manteria distante do saber, restando-lhe apenas o mando, e acabaria ficando dependente do servo para se reconhecer como senhor. O servo, por sua vez, teria o germe da autonomia em si mesmo, por conta de ganhar legitimidade não pelo aval do olhar do senhor, mas pela práxis transformadora inerente à sua condição. Hegel inaugurou a modernidade como a época do universal humano como o trabalhador.

Tentando tornar a narrativa metafísica obsoleta, e procurando uma narrativa substituta para a filosofia, Nietzsche também ofereceu como subproduto um retrato da modernidade. Suas exposições sobre o confronto entre o forte e o fraco (ou “nobre e servo ou escravo”, “doente e sadio”, “judeu e romano” etc.) mostraram a modernidade como uma condição na qual, ao final, não seria o primeiro o vencedor, e sim o segundo. Dotado de vocação para moralizar todas as ações, o fraco investiria na produção linguística capaz de gerar a má-consciência no forte, e quando este começasse a valorar moralmente linguagens e ações, criaria dentro de si a pior da corrosões, a culpa, a busca de arrependimento, e ao mesmo tempo acabaria por se tornar um fraco. Todo esse projeto do fraco teria como motivação o ressentimento diante do forte. Nietzsche inaugurou a modernidade como a época do universal humano como o homem do ressentimento.

Nem Hegel e nem Nietzsche buscaram fazer sociologia. Mas suas produções em filosofia podem nos trazer visões para uma sociologia teórica capaz de compreender o “espírito moderno”. Assim foi feito. Foram essas narrativas, de Hegel e Nietzsche, que alimentaram a maior parte de nossa compreensão de nossos tempos e, enfim, do que poderia ser o universal humano. Trabalhador ou ressentido? Nunca chegamos a decidir de fato isso. Mas, nos dois casos, tratava-se da ideia de encontrar um homem genérico, o homem moderno par excellence. Essas narrativas, através de tantos outros filósofos, pensadores, instituições, democratização da escola, criação da imprensa etc;, levadas adiante pelo iluminismo e pelo romantismo etc., vigoraram até o final dos anos de 1970. Dali para diante, as coisas começaram a mudar.

Durante o século XX todas as utopias, a comunista, a nazista e a liberal, e suas variações, podiam ser descritas pelas ideias que remetiam ao “mundo do trabalho” e aos “sintomas de niilismo e ressentimento”. A ética e a política cabiam em narrativas vindas da matriz hegeliana e nietzscheana. As pessoas se reconheciam em histórias derivadas do que foi traçado, com variações, por uma antropologia relacionada ao trabalho e ao ímpeto de vingança. Nisso, tínhamos elementos que se pretendiam universais. No entanto, após os chamados Trinta Gloriosos, a guinada foi rápida. Adentramos nos últimos quarenta anos, o nosso mundo atual.

Aqui, tomamos Marx: ele apontou para os primórdios da globalização. Ele acentuou o tópico da fetichização. Alertou para a importância do General Intellect. Esses fenômenos se acentuaram um século depois de sua análise. A crise do fordismo, o fim do dinheiro com lastro e a entrada do câmbio regrado pelo mercado, as flexibilizações do neoliberalismo e as mudanças no mundo do trabalho que culminaram com o advento da fábrica social (a fábrica se automatizou e o trabalho humano foi para a sociedade e se digitalizou), a emergência da força de trabalho mais dependente do General Intellect, o fim do valor mensurado pelo tempo de trabalho e a emergência do valor que vem do preço, a hegemonia da lógica do capitalismo financeiro e uma série de outras alterações relacionadas a estas, criaram um mundo novo. Nesse novo mundo, as pessoas se dispersaram e, agora, se podem se aglutinar, não o fazem mais por qualquer elemento universal a não ser o dinheiro – e este não passa de um sinal magnético na tela dos computadores, um número ao qual se acrescentam zeros segundo mecanismos que fogem ao controle humano. Ninguém mais se identifica com a necessidade universal de justiça, a partir ou não da vingança, seja por ressentimento ou ira. Ninguém mais se identifica com o trabalho enquanto o que poderia definir o humano. As divisões de classes e os movimentos políticos do que se entendia como esquerda, direita e liberais, antes atados por narrativas bem construídas, perderam essas narrativas que lhes davam vínculos. A cada pessoa do século XXI restou imitar aquilo que sobrou como o universal: o dinheiro, nessa fórmula a menos terrena possível, quase que metafísica. Ser veloz, ser volátil, ser crescente, ser mutável. Eis então o que sobrou para as pessoas se sentirem ainda pessoas, com alguma referência ao “si mesmo”. Essa leveza pede um contraponto, algum peso. Alguma âncora na terra. Esta, então, se apresenta por um traço corporal ou comportamental particular, e de preferência algo que traga vantagem momentânea. Sim, até porque nenhuma vantagem é, em um mundo regrado pelo cotação da bolsa de valores, outro tipo de vantagem que não a super momentânea.

Faz-se necessário um peso em um mundo que não é exclusivamente aquele em que tudo “o que ó sólido desmancha no ar”, mas naquele em que há uma “insuportável leveza do ser”. O mundo do aparecer, que deixa de lado a velha dicotomia entre ser e ter.

Show time! Eis o mundo do aparecer. Mas, aparecer como? Como aparecer sem alguma ontologia, sem que se olhe ao lado e não encontre mais a mobília do mundo? Como encontrar alguma coisa que, tendo a ver com o corpo, não deixe a alma se perder por aí, no infinito da logaritmização?

Foi nesse vagalhão que emergiu a nova narrativa: cada um é cada um se puder se mostrar vencedor exatamente por conta de sua desgraça, real ou aparente. Se sou vitima, tenho de criar minha narrativa de desgraças e de superação. Se não sou vítima, que eu trate de encontrar em minha vida algum episódio que eu possa narrar, de modo que eu também seja vítima, e logo apresente a superação. A superação só pode ocorrer – esta é a lei social atual – se eu berrar de público todas as minhas intimidades. O negro, a mulher e o gay podem encontrar nas narrativas – tanto faz se verdadeiras ou não -, que estão no mercado das narrativas, tudo que precisam para gerarem alguma identidade. Ao branco, avisado de que ele, uma vez na classe média e tendo alguma ligação com a Europa, não está mais próximo de qualquer modelo universal, resta também o caminho da vitimização. Pode inventar a mentira de que ele, agora, é oprimido. Mas pode fazer melhor, pode se vitimizar no mesmo modelo dos identitários agora já clássicos. Não é difícil. E a Internet e a infosfera estão aí para isso. Ele sempre pode lembrar ou inventar que foi preterido injustamente em algum momento da sua vida. Mas, para realmente entrar na jogada, é melhor que ele crie sobre si mesmo um caso no qual ele, na infância, foi vítima de assédio sexual. Tudo que se pede é que, ao final, ele se mostre como vencedor, como tendo se tornado, agora, empresário de si mesmo, e tendo rompido com toda a sociedade opressora que o vilipendiou. Então, algum chapa-branca, mordido pela mesma doença, dirá a todos estes homens contemporâneos, em um discurso abestalhado: “vocês existem, e são importante para nós”. O estado é esse nós? Quem? Ninguém sabe. Não importa.

Esse projeto de autodesgraçamento público atingiu a própria ideia de superação. A própria ideia de sacrifício se alterou. Pode-se encontrar, então, um teólogo que, não contente como o sofrimento de Jesus na Cruz, resolveu provar que o filho de Deus passou por assédio sexual: antes do caminho do Calvário, ficou nu na frente de de duzentos soldados romanos. Até hoje, depois de ter lido isso, penso que esse teólogo teve prazer sexual nisso em um grau de intensidade que supera a intensidade da dor de Jesus na Cruz, tendo antes estado ou no pelado diante de romanos tarados.

O identitarismo é exatamente esse projeto. É o projeto que acolhe todos nós, caso quisermos nos comportarmos como dignos de um RG ou CPF. Esse é o ponto de partida para continuarmos no interior desse novo mundo. Ao mesmo tempo, CPF é o ponto de partida para a bancarização.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, escritor, professor e jornalista

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