O professor Dowbor diz que o capitalismo está se deslocando. Ele afirma que nem sabe se o animal é o mesmo. Talvez seja! Talvez apenas apareça, como ele mesmo diz, com uma juba mais comprida. Quem já passou dos sessenta anos, sabe bem que nesses últimos quarenta anos desapareceu o capitalismo como o conhecemos após a Segunda Guerra Mundial. Nos últimos vinte anos, então, nem se fale! Mas, onde está o cerne das mudanças? Qual é o sangue e nervos novos do animal?
Dowbor faz a parte dele, eu faço a minha. Elas não são excludentes. Mas, enfim, não posso deixar de acrescentar a visão do filósofo diante da visão do economista.
Há três observações que nos dão o essencial do bicho mutante. Respectivamente, elas podem ser encontradas em Antonio Negri & Michael Hardt, Christian Marazzi e Franco Berardi, todos eles filiados ao marxismo autonomista ou pós-operaísta.
Negry e Hardt colocam o básico, em termos históricos, para uma visão ampla e geral. Eles falam do advento da fábrica social. Em determinado momento, a automação chegou a tal nível nas fábricas, que os trabalhadores foram postos de volta para a cidade, para a sociedade em geral, e transformaram toda a sociedade em uma fábrica social, a sociedade digitalizada: empresas ou homeoffices, e mais alguns ainda empregados com carteira de trabalho, mas a maioria postos como autônomos ou terceirizados.
Marazzi nota que esse regime da sociedade digitalizada, da fábrica social ou capitalismo de plataforma se fez junto de uma “nova composição orgânica do capital”. Antes, a equação da mercadoria era da seguinte forma: M = Cc + Cv + m, com M sendo a mercadoria, Cc como o capital constante (a maquinaria e processos de organização do trabalho), Cv como o capital variável (salários para os trabalhadores) e m a mais valia (o trabalho não pago, o excedente). Nessa fórmula, o capital constante era o chamado trabalho morto, ou seja, o trabalho e a ciência incorporada às máquinas. Hoje, com o trabalho cada vez mais dependendo do General Intellect, ou seja, de um saber difuso, junto de emoções e capacidade de expediente, o próprio capital constante se torno o homem. A equação passou a contar com o homem tanto no Cc quanto no Cv. O homem está integrado à máquina, faz um trabalho que não se esvai na mercadoria, pois é cada vez mais intelectual (cognitivo, imaterial), e permanece com o próprio homem. Assim, economiza-se com máquinas (o computador pessoal é compra do próprio trabalhador, sua educação ou é pública ou ele próprio a paga, e a infraestrutura material das redes é feita, em boa medida, com dinheiro público), economiza-se com salários (pois a terceirização é a regra, e o trabalhador é convencido de que ele é empresário de si mesmo), e desse modo a mais valia pode ser ampliada.
Berardi, por sua vez, nota que se o capital constante é o homem, esse homem não é mais o homem que se relaciona com a máquina, como quem dirige um automóvel ou vigia uma máquina fabril. O homem atual está fundido com a máquina. As máquinas atuais possuem interface, e o homem se forma, junto com elas, na composição da subjetividade maquínica. A interface entre o homem e o maquinário algoritmico (e IA) obriga o homem a empobrecer a sua semântica para receber da máquina uma inflação semiótica. Mas símbolos sem significado comandam a subjetividade maquínica, na verdade, são a sua essência. Essa subjetividade funciona o tempo todo, no regime 24/7. A mais valia é ainda mais ampliada, e o resultado disso é um ciborg que pensa estar com mais tempo livre, mas está em regime muito mais intenso do que antes. A própria jornada de trabalho e a jornada de descanso possuem agora um fronteira nublada. Temos aí, então, um novo regime biopolítico.
Essas mudanças no trabalho se fizeram em conjunto com a própria mudança do mercado. Este, deixou de ser um mercado das coisas para ser mercado financeiro (há aí toda uma história própria sobre isso, mas que está ligada às mudanças no trabalho exigidas ela crise do fordismo). Antes o mercado financeiro financiava o mercado das coisas, as indústrias e empresas. Hoje o mercado financeiro é que diz quanto vale empresas, trabalho, amor e tudo o mais. Tudo vale segundo o que a bolsa de valores diz que vale. Antes vigorava a teoria do valor-trabalho e adjacentes. O tempo de trabalho (para marxistas) ou a utilidade do trabalho (para outros teóricos, por exemplo, marginalistas) dava a mensurabilidade para o valor. Atualmente, é o valor cotado na Bolsa, que não depende de questões intrínsecas de mais trabalho ou melhor trabalho ou trabalho mais útil, que serve de parâmetro para todo tipo de mensuração. O valor se fetichizou no mercado de ações e o trabalho se transformou na ideia fetichizada de que todos são empresários. Capital e trabalho existem, mas ninguém é burgues ou proletário, ninguém é capitalista ou trabalhador. Ou ao menos, ninguém pensa que é, uma vez que a caracterização desses personagens foi completamente alterada.
Esta é a nova juba do velho animal. Ou talvez um novo animal cuja juba é falsa. Uma fake juba!
Os partidos políticos de esquerda estão ainda atônitos diante dessas alterações, que se aprofundaram nos últimos vinte anos. Alguns dizem, no Brasil: “o mundo é digital, mas o PT continua analógico”. É uma forma simplória. Na verdade, não foi a tecnologia que mudou e, então, mudou o mundo, foi realmente o capitalismo que, voltando às palavras do professor Dowbor, se deslocou, se desloca.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista