PERCEBI QUE há aqui entre nós, no canal TV Filosofia, os que se admiraram com o fato da G – Kay (que eu ainda não sei direito quem é – pois não tive ânimo de procurar) ter “fama” e “sucesso”. Ora, estando aqui neste canal, não se pode ser irreflexivo! Reflitamos então!
Fama é uma coisa, sucesso é outra coisa. Fama é o que parece que essa coisa chamada G – Kay tem. Sucesso é questionável. Parece que, como toda “influencer”, ela é vazia. Mas essa é a precondição para que o “influencer” tenha fama, e em certo sentido sucesso: ele tem de ser vazio. A segundo precondição é que ele, sendo vazio, possa ser enchido (eu ia dizer preenchido, mas seria tentar uma sofisticação que soaria mentirosa). O enchimento é necessariamente feito com o que pode haver de pior: a própria fama. Desse modo, desafiamos as leis da física, mas não da lógica. O vazio preenche o vazio. O resultado é interessante: a pessoa entrevista a si mesma, ela chora por conta dela mesma, ela ri por conta dela mesma, mas nunca ri dela mesma! Ela é o bobo da corte, cuja função social é ser a matéria prima de memes, digamos, bestiais. Ou melhor: bestializados.
No III volume da Trilogia das Esferas (infelizmente ainda sem a publicação da tradução do alemão, embora já tenha sido feita para a Estação Liberdade), o filósofo Peter Sloterdijk (fiz dois livros sobre ele, um da Vozes e outro da Via Verita, que aconselho lerem urgentemente), comenta sobre o vazio de formação gerado no contexto atual, em especial o que é alimentado pela mídia de implementação mais recente. Sloterdijk tem a tese de que o homem é fruto do mimo. Sem que a progenitora tivesse virado mãe e sem que esta tivesse dado atenção aos mais fracos (e talvez mais bonitinhos) da prole, não teríamos gerado um ser aparentemente pobre de recursos físicos, mas rico em recursos intelectuais. A seleção natural fez o resto. E eis que tivemos o processo de neotenia: a espécie incorporou características do indivíduo. Aquele que nasceu prematuro acabou fazendo valer esse seu defeito para a espécie: nascer aos nove meses, ou seja, antes da hora. Desse modo, o filhote humano nasce sem poder viver sem os cuidados da mãe. O resultado disso é que, ao contrário de outros animais, nunca para de aprender. E o mimo, que garantiu a neotenia, se fixa como o necessário para o humano, e seu aprendizado contínuo tomado como dom da espécie. O mimo contínuo gera a sociedade da leveza. Estamos hoje, em boa parte do mundo, na leveza extrema. Nossa sociedade é a sociedade em que podemos existir em condições técnicas e de tempo livre (com aspas e sem aspas) crescente. Ficamos tão leves que somos obrigados a criar barreiras artificiais para que não flutuemos! Vamos para a academia pegar pesos, vamos nos divertir falando de doença, vamos criar associações de ajuda a coisas no mundo que nem sempre merecem nossa ajuda, vamos pagar seguros para evitar o inevitável. Ou seja, tentamos complicar a vida, dado que ela é fácil. E fácil para muita gente, até para o pobre, na comparação com sociedades anteriores às do capitalismo.
Surge então, no lugar do entretenimento, que Pascal observou no século XVII, não o jogo para desenvolver o lúdico, como era no tempo dele, mas o jogo para fazer algo com o tempo livre que ficou abundante, ou aparentemente abundante. Fazer algo no sentido de “fazer qualquer coisa”, inclusive aquilo que recupere peso. Além disso, é preciso preencher a solidão de estarmos sempre conectados, mas nunca efetivamente em conjunção. O individualismo moderno deslizou para o narcisismo e histerismo. Adoramos teatralizar a nós mesmos. Muitos de nós dizem estar namorando a si mesmos. “Estou sozinho, estou me curtindo”. Voltar-se para o umbigo e exagerar em traços particulares, bizarros e fomentar idiossincrasias de público virou regra. Eis aí a profissão do “influencer”: provocar downloads. Encher o usuário de coisas que estão no “influencer”: o vazio.
Políticos como Bolsonaro fizeram isso tão bem quanto gente do entretenimento da mídia, ou como canais de energúmenos no Youtube, em geral os “autores” de auto-ajuda, todos falando sobre “ansiedade”, uns otimistas e outros pessimistas!
Poderíamos ir adiante e juntar a tese de Sloterdijk com as observações dos marxistas pós-operaístas (Negri, Lazzarato, Berardi etc.), e ver o quanto o mundo do trabalho mudou após o neoliberalismo, a financeirização, o endividamento geral e, enfim, a transformação do trabalhador fabril em trabalhador do imaterial. Eis aí o mundo pós-fordista. Se seguimos esse fio, notamos que a “fábrica social”, a sociedade como local de trabalho (pois a fábrica verdadeira se maquinizou e ficou sem o homem), adotou o sistema de comunicação para satisfazer o indivíduo, produzindo por demanda. (Produzir por demanda foi necessário, para reduzir estoques, e perder menos, e gerar mais valia mais polpuda). A produção por demanda veio na direção do aumento do mimo. E o cartão de crédito deu o empurrão para que se pudesse consumir desse modo. Endividados sim, mas felizes por sentir o prazer de comprar tudo o que se inventa da própria cabeça, dado que a linha de produção desaparece, e surge o consumo individualizado e intimista. Posso hoje pedir na internet o que eu quiser, a coisa aparece na minha casa como passe de mágica, ou já de imediato no celular. E não raro faço isso sem dinheiro de fato na conta! Um mundo assim é, de fato, um mundo de ampliação do mimo.
Nessa hora, o mimo pode gerar cientistas e filósofos, mas pode gerar vagabundos vazios, tipos como os “influencers”, e até “influencers políticos”, como o próprio Bolsonaro, o meninão nas lives de quinta feira, não tão distante da besta Mamãe Defequei, ou da G Kay, ou Leandro Karnal e seu sócio Pondé – todos na mesma linha. Da banalidade do mal à banalidade do niilismo e afetação, passando pela banalidade do banal.
Todos nós viramos usuários do capitalismo de plataforma, e ele cumpre a função de ampliação do mimo narcísico, necessário para que sejamos humanos. E, sendo humanos, sejamos bestas. Ou seja, demasiado humanos.
Essa junção do mimo necessário com o capitalismo de plataforma (necessário para extrair mais valia social), é a máquina social de produção de G Kays de tipos variados, mas todos como a mesma função. Dar ao vazio a aparência de cheio. Cheio de vazio.
Paulo Ghiraldelli, 65, FILÓSOFO E PROFESSOR
O senhor acha que eu não tenho mais nada o que fazer?! Ficar lendo sobre esses wiaddo que nem sei quem são!
Que tal influencer “K Gay”?
Fábio Coelho Kwitko, você quer algo para fazer? Que tal estudar um pouco de gramática?!
Um texto bem apropriado para raciocinar a falta de conteúdo que atrais olhares na sociedade que participamos. Todas as vezes que alguém me pergunta “você viu o/a influencer fulano/a (que fez algo que não acrescenta em nada, acrescento mentalmente)?” e respondo “não. Quem é?”, percebo olhares recriminatórios. Bem dito pelo professor, são bobos da corte e atendem (especificamente) ao propósito de entreter (ainda que porcamente).
Artigo muito bom. Eu achei engraçado como ela realmente se parece com o Constantino. O sonho dessa moça era ser entrevistada pelo Jô, mas o que ela ia apresentar a ele? Mais vazio e um banho de vergonha alheia, vide a “entrevista” com a Tata Werneck.
Artigo perfeito, sim este merece viralizar, mas a massa hoje quer ser alimentada de futilidades, ainda não consigo
compreender a fama da Gkay, qual seu talento? O que agrega a sociedade além de mais do mesmo somado a nada?
A internet hoje e inevitável e precisamos dela. Estou sempre de olho no que meus filhos consomem na internet e faço o possível pra que tenham algo com conteúdo e coisas que podem trazer algo de bom pra vida deles, as vezes chego até a proibir algumas coisas.
Apesar de ter uma citação aqui e ali, o conteúdo opinativo prevalece no texto, centrado em figuras públicas que se quer destruir.
Mais do mesmo na cultura do cancelamento, com um toque típico da intelectualidade que impressiona a massa mal-informada ou imbecilizada pela mídia, que o autor finge combater!
Boa colocação.
Ao ler seu comentário vi que encaixou bem no que pensei sobre o texto. Em poucas palavras voce definiu bem as ideias do autor.
Ha um bom tempo não vejo um texto tão excelente
👏👏👏👏👏👏
Obrigada
Uma opinião forçada com argumentos de progressão histórica, apenas. Mas onde é que realmente se encaixam? A cultura kitsch está muito impregnada em vc, senão vc abriria os olhos de outra forma, não é mesmo? Me responda a seguinte questão: um aluno bom tornará um péssimo professor, bom? Um professor bom, da mesma forma, tornaria bom um aluno ruim?! Agora, realmente, filosofia clássicos fazem uma grande falta. Mas eu deveria acusar o contexto atual pela falta da beleza de todo o pensamento deles? Realmente, não.
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