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A SUBJETIVIDADE PÓS-INDUSTRIAL

Quando da época da sociedade fordista-keynesiana, boa parte dos produtos comprados, não sendo os chamados gêneros perecíveis, vinham com um selo a respeito da obsolescência programada. Sabia-se quando as coisas compradas seriam substituídas. A sociedade de consumo, então nascente, alimentava todos com a produção em série. A capacidade salarial deveria dar conta da primeira compra. Então, após as coisas pifarem exatamente por terem cumprido o tempo prometido de uso, a capacidade salarial deveria se mostrar capaz de dar conta da reposição. Talvez a compra de um modelo novo viesse a ser requisitada.

Essa sociedade entrou em crise ao final dos anos 1960. O capital queria acumular mais, e um tal modo de produção parecia limitar sua ação de auto-expansão. Entre várias medidas tomadas para resolver esse problema, algumas foram internas às fábricas. As máquinas começaram a se sofisticar, vieram os robôs, e empurraram o para fora. Os produtos passaram a ter “garantia”, mas não mais data de validade. O consumidor foi chamado a optar sobre o produto e até sugerir novos. A comunicação se instaurou na fábrica. Veio o código de barras e o kam bam. Produção, venda e entrega foram articulados pela informação, pela comunicação. E tão logo a máquina entrou de vez na fábrica, também entrou a comunicação pela Internet em toda a sociedade. Estabeleceu-se aí o fim dos estoques, a racionalização da produção segundo as informações em feedback contínuo a respeito de vendas e de preferências. Em um prazo de menos de trinta anos apareceu o prosumidor: aquele que, consumindo, é semi-autor da produção. Isso valeu para produto e serviços. Instaurou-se aí a sociedade pós-industrial ou sociedade pós-fordista-keynesiana.

Na vigência dessa sociedade, em seus primeiros anos, dois mecanismos foram acionados. As firmas viram que o importante, para ampliar o consumo, produzir não só seus produtos corriqueiros, mas produzir também subjetividades. Criou-se todo um aparato de marketing para gerar ambientes e subjetividades que articularam gostos políticos com produtos e serviços. Nasceu a necessidade da marca, e a fama da marca diante da sua tarefa de se associar a “estilos de vida”. O consumo voltou a crescer. Tornou-se individualizado, oscilando de preço e, em vários casos, ultrapassando a possibilidade de compra dos assalariados. Veio então, junto disso, o chamado cheque especial, com crédito para além do fundo, e depois surgiu o cartão de crédito. Eis a instauração do socialismo do cartão de crédito. A bancarização de mais gente e a abertura de lojas já prontas para, elas mesmas, serem financiadoras (e, não raro, seguradoras), teve aumento espantoso. O mundo cresceu em abundância de produtos, opções, gostos e leveza, mas, ao mesmo tempo, readquiriu novo peso: as dívidas, os eternos juros.

Tendo criado uma subjetividade ligada ao produto, o capitalismo se transformou radicalmente. Gerou a era do prestígio da marca. O cultivo da marca como associado ao cultivo de estilo de vida, para além do próprio consumo do produto propriamente dito, se fez pela necessidade da nova subjetividade já gerada na fase anterior. Associado a isso, surgiu todo um novo conjunto de ramos de produtos variadíssimos. Inclusive e principalmente aqueles ligados ao entretenimento, entraram para a agenda do consumo. O reino do intangível se estabeleceu. Com a internet, a infosfera gerou filmes, músicas, livros, textos para consumo imediato e em série. Criou a entrega rápida, da compra e venda feita pela internet em concomitância com a propaganda e o marketing. Assim, nasceu o trabalho ligado a tudo isso, ou seja, o trabalho por aplicativo – a continuidade, pela internet, do que eram o franchise e as terceirizações. Em suma, instaurou-se aí o “capitalismo de plataforma”, no qual vivemos hoje. Do entregador de pizzas ao médico, do músico ao que ensina puericultura, todos se plataformizaram, e seus trabalhos podem depender ainda de região, mas em boa parte dependem só da nuvem. A digitalização se completou na sociedade em que impera uma nova fábrica, a “fábrica social”. Ela é a própria sociedade produzindo dia e noite. O tempo livre aumentou e, no entanto, em certo sentido, diminuiu.

Nessa sociedade, em que os arranjos políticos que vieram a satisfazer o capitalismo financeirizado foram sintetizados pelo nome de neoliberalismo, se fez valer uma subjetividade diferente. Trata-se da subjetividade implementada pela própria plataformização, que agrega todas as nossas atividades atualmente. Essa subjetividade não é mais exclusivamente humana. Ela se faz na interface entre homem e máquina. É a subjetividade maquínica. Ela agencia homens e máquinas e os funde na infosfera. Uniu o prosumidor com o trabalhador precarizado no interior de uma linguagem que é a linguagem de máquina em correlação com a linguagem humana, que precisa ser simplificada para interagir com a linguagem de máquina. Essa subjetividade já substituiu as mães, e portanto ensina a todos. A geração Z aprendeu o que deve fazer, e isso sem as conotações emocionais das mães.

Vivemos, então, em uma sociedade com menos capacidade de estabelecer rituais, pois estes são emotivos e visam organizar o tempo, e, portanto, a vida. Ora, a vida não deve ser organizada pelos rituais comunitários, mas pelo capital. Temos aí uma sociedade cujo consumo é individualizado, intimista, narcisista e carente do novo. Uma sociedade em que todos devem cultivar novidades e eles próprios serem sempre novos – jovens. Ninguém pode dar garantias ou prazos de validade. Nem para produtos, em para si mesmos, paradoxalmente, pois justamente agora todos se tornaram imortais – assim nos imaginamos. Tudo pode ser rapidamente tornado obsoleto. Nós nos pomos todos como os candidatos ao eterno e, ao mesmo tempo, ao que se eternizará pela obsolescência não programada, às vezes imediata. Muitos de nós, percebendo essa situação nem sempre alvissareira, se tornam histéricos, ou seja, teatralizam a si mesmos, tentando se enganar e enganar outros. Fomentam o frenesi, que é necessário quando é o tédio que pode se instalar a qualquer momento. Um tédio que vem da própria pressão por produzir, ser produtivo, pagar suas dívidas e vencer como “empresário de si mesmo”. O mundo positivo em que o Outro é eliminado por ideologia – nada impede de você vencer em um lugar em que desapareceu o patrão e o trabalhador, diz o neoliberal.

Não se render em uma situação assim, e manter a esperança ingênua na possibilidade política de construção de um mundo melhor é o heroísmo de nossa época. Algo da coragem de cada um.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor e jornalista.

3 comentários em “A SUBJETIVIDADE PÓS-INDUSTRIAL”

  1. Uma subjetividade vazia de signos, pois desapareceu o patrão e concomitante o trabalhador. A plataforma os transformou em “res” , ou seja em coisas a serviço da linguagem maquinica em prol do capital financeiro. A todo instante nos tornamos também obsoletos como coisas “res”.

  2. Osni Winkelmann

    Laurie Anderson, citando William S. Burroughs, cantou que “A Linguagem é um Virus”.
    “A linguagem é um sistema adaptativo que evolui para se adaptar ao(s) seu(s) portador(es).” – Google.
    Os seres vivos complexos são a combinação de diferentes células trabalhando em conjunto por um objetivo comum. Mesmo os vírus foram incorporados alterando o DNA de seus portadores de forma positiva.
    A linguagem é um vírus social, contamina de forma sindêmica, ao se adaptar, muda e, simultaneamente, muda o portador e a sociedade. Psicológica e biologicamente.
    O trabalho altera o mundo, extrai a matéria bruta da natureza e a transforma em objetos apropriados para consumo e neste processo cria o Capital.
    O Capital é um vírus de um tipo diferente. Ele altera a sociedade nas relações fundamentais. Destrói a riqueza criativa da linguagem, camuflado pela ideologia. Reduz a linguagem ao binômio objetificante homem x máquina. O Capital é um vírus letal, ele consome o corpo do hospedeiro e o destrói. Transforma tudo que toca em objeto para seu próprio consumo, sugando toda a vida ao ponto de matar o próprio hospedeiro.

  3. O problema do capitalismo é seu apetite desenfreado. No momento em que um industrial escala e sua marca se espalha além de parcos quilômetros de sua cidade, a oportunidade de outros trilharem o mesmo caminho se esvai. Se fosse realmente um mérito, não haveria tanto problema. Mas sabemos que não é só mérito. Jeff Bezos foi por um par de anos o homem mais rico do mundo e ainda hoje está entre os cinco mais ricos, mas pasmem, com uma dívida enorme em títulos do governo americano. Ora, se o “self-made”, gênio, novo deus acumulou tanto capital, por que precisou de insumos públicos e por que não os quita com seu próprio dinheiro? Tratou-se, na verdade, de um estímulo do governo para empresas com mais de x empregados e Bezos não quita essa dívida, pois paga um juro de 0,4% ao ano, enquanto recebe uma remuneração média mais de 10x maior por seus dólares aplicados. Eu não acredito no comunismo e no socialismo, mas acredito que o capital acumulado deveria se limitar a um limite geográfico e que as políticas públicas deveriam prover a igualdade e não a desigualdade. Cada cidade ter sua apple ou sua tesla e ter bilhões de capitalistas com alguns milhares em suas contas do que alguns milhares deles com bilhões em conta. Eu consigo parar de trabalhar por uns 5 anos, talvez menos no cenário de inflação, mas tem pessoas que mal estão pagando as contas trabalhando em dois ou três empregos e ainda fazendo uns bicos e negociando pertecentes. Já chegaram a um nível análogo de escravos. São pessoas que já não tem o direito de ficar doente ou de sofrer um acidente. Enquanto isso, poucos “deuses do olímpo” se fartam com vinhos e carnes cujo custo excede um ano de trabalho de um porteiro. É indefensável essa situação seja o quanto de estudo que este capitalista teve. Todos os mecanimos financeiros lhes são favoráveis, não venham com discursos de meritocracia.

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