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O neofascismo brasileiro e o identitarismo

Só em uma época, em toda a história do capitalismo, este conseguiu propiciar uma diminuição da distância entre ricos e pobres. Isso ocorreu durante os chamados Trinta Gloriosos, as três décadas que se sucederam após a Segunda Guerra Mundial. Foi a época de instauração da chamada sociedade de consumo. O casamento entre as ideias econômicas de Lord Keynes e as ideias de produção de Henry Ford geraram esse tipo de sociedade. Do ponto de vista dos desejos, foi um período de crescimento de uma certa forma de inveja. Uma inveja saudável: cada um que via alguém com um novo produto, desejava ter um igual. Eletrodomésticos, vestidos, carro, casa etc. “A grama do vizinho é sempre mais verde” – dizia-se nesse tempo.

Alguns teóricos começaram a achar que essa inveja poderia ser prejudicial. Temerosos por conta dos eventos do pré-Guerra, que deram origem ao nazifascismo, esses teóricos começaram a imaginar que a inveja poderia reproduzir um sentimento ruim novamente. Todavia, a inveja do pós-Guerra era um sentimento diferente. Tratava-se do cultivo do desejo de “estar na moda”, de participar daquilo que tudo indicava que, com algum esforço, daria para participar. O sentimento do pré-Guerra, que originou o fascismo, nunca foi de fato a inveja, mas o ressentimento, a frustração, a inadaptação. Tomado pela psicologia banal, o sentimento do pré-Guerra, que esteve na base do nazifascismo, poderia parecer inveja, e talvez até pudesse ter lá um componente no qual vingava o desejo daquilo que era do outro, ou o desejo de ter o que o outro tinha. Mas, no pré-Guerra, havia uma sensação de profunda injustiça no ar. A vida moderna parecia ter trazido, repentinamente, um outro mundo, no qual não se dava para viver sem algum ganho intelectual a mais. Esse ganho intelectual pareceu para muitos como sendo um truque dos aristocratas, dos liberais, dos mais ricos, ou até mesmo da classe operária organizada e voltada ao comunismo. O jovem que se filiou aos regimes fascistas, não só na Europa e no Japão, mas no mundo todo, tinha algo em comum: ele se sentia excluído pela modernidade, pela máquina, pelas novas exigências culturais. E ele passou a acreditar que os de cima estavam zombando dele, que o haviam deixado de fora de tudo, e que o olhavam como se ele fosse uma aberração.

Não foi difícil convencer esse jovem de que, na verdade, ele, vindo do campo, é que correspondia ao verdadeiro homem da terra, originário, e que ao invés de ser inferior, era o mais superior de todos. O nacionalismo e a xenofobia se aglutinaram rapidamente a uma biologia racista e a mitos de origem. E em cada país, começou-se uma caça aos que, até então, tinham facilidade com a modernidade: intelectuais e ricos. Em muitos lugares, o “intelectuais e ricos” eram resumidos por uma figura: o judeu. Estrangeiros e homossexuais logo foram postos também no mesmo cômputo. O fascio se organizou em cada sociedade como uma unidade de pessoas antes fracas, gravetos, mas juntos poderiam formar uma arma. Não era assim, de fato, literalmente, o fascio? Sim, a arma romana fascio era isso: gravetos que solitariamente não poderiam fazer mal algum, mas reunidos e amarrados, e tendo um machado no topo, se tornavam em uma arma fatal.

“Gravetos da terra, uní-vos” – eis os chamado! E se uniram. Cada fraco, imbecil, solitário, infeliz sexualmente e desajustado diante das novidades da cidade vindas da industrialização rápida, entendeu que deveria fazer parte de um fascio, e atacar na rua os que passaram a ser acusados de os causadores de todo tipo de desgraça da nação. Os que seriam aqueles que haviam excluído os inadaptados. Deu no que deu, sabemos bem!

O neofascismo não reproduz mais o fascio. Não vemos mais, em nenhum lugar do mundo, grupos paramilitares em profusão, como no fascismo original. Mas o sentimento produzido nesses quarenta anos de neoliberalismo, de 1980 aos nossos dias, em termos de frustração e exclusão diante da sociedade mais sofisticada, está presente. O sentimento de inferioridade intelectual, até mais do que a inferioridade financeira, carreia as pessoas para o neofascismo. E isso, em alguns lugares, se alia facilmente ao xenofobismo.

Em alguns lugares, é o xenofobismo que conta mais. Noutros, como no Brasil, é o sentimento de inferioridade intelectual. Também a derrota social, a frustração sexual e profissional, contam mais para que se possa fazer nascer o neofascismo. O Tio do Pavê ou Tio do Zap repete as teorias da conspiração e doutrinas econômicas que são imbecilidades completas – criadas por especialistas, principalmente nos Estados Unidos (Steve Bannon e movimento QAnon à frente!). Ele, o “tiozão”, precisa mostrar que sabe. Ele faz campanha na Internet contra a escola. Ele chama todo intelectual (que tem legitimidade escolar para ensinar) de “comunista” que, enfim, estaria só querendo “destruir a família e os bons costumes” e lhe “roubar a liberdade”. A escola fala coisas que ele não entende. Então, ele revida mostrando para a família que ele sabe mais que os intelectuais. Quando ele se vê na berlinda, ele recorre aos que posam na imprensa de intelectuais, mas que são ideólogos de direita, e que caminham à margem das universidades públicas, não as integram de fato.

O neoliberalismo é o regime em que o consumo não causa mais inveja. Pois o consumo é voltado para o íntimo, para o narcisismo. O próprio consumo, se exclui, não causa inveja, e não alimenta a frustração. O sentimento que causa a frustração, que está na base do neofascismo, continua sendo aquela frustração do pré-Guerra, o de se sentir alijado do reconhecimento, em especial alijado de ser ouvido e de receber uma aprovação pelo que fala, explica, expõe. Criar um mundo em que se está além da verdade e da mentira, é essencial para o neofascista. Pois nesse mundo, aquela pessoa que realmente estudou na escola, sendo esta a depositária dos clássicos, passa a ter o mesmo valor, em termos de ser ouvido, que aquele que é capaz de dissertar de modo complexo, embora louco e imbecil. Na nossa sociedade, já há alguns anos, se deu voz a gente frustrada com a questão da inteligência: em um tempo, com Danilo Gentili, em outro, com Olavo de Carvalho, desses dois tipos, saíram uma série de derivados, no mesmo estilo. É fácil lembrar aqui de outros com funções semelhantes: Moro e Pondé se esmeraram nessa função.

Essa gente, o típico ideólogo da direita, logo percebeu que algumas coisas na esquerda eram fáceis de serem ridicularizadas. Souberam ver que os movimentos de minorias haviam perdido espaço, dentro da esquerda, para o identitarismo de cunho neoliberal, e viram a chance de mostrar os identitários como gente ridícula, contraditória, para toda a sociedade. Em pouco tempo, uma boa parte da sociedade passou a acreditar que a esquerda era somente isso: os identitários. Esse foi um passo decisivo para os movimentos de direita crescerem no Brasil entre 2014 e 2018. Essa reação da direita aos identitários perdura. E os identitários se esmeram em continuar cada vez mais ridículos, a ponto de poderem ser pisoteados pelo Tio do Pavê. Nesse caso, instaura-se uma luta esquisita, a direita contra uma pseudo-esquerda que tem práticas de direita.

Essa pseudo-esquerda identitária é às vezes classificada como relativista. Mas, ela não é relativista. Ela não faz parte dos movimentos culturais que emergiram nos anos oitenta, que em parte foram chamados de pós-modernos, e que cultivavam a diversidade, a diferenciação. Esse movimentos, que se iniciaram no final dos anos setenta e adentraram os anos oitenta e noventa, caminharam em uma relação dúbia, e não raro até de oposição, com o neoliberalismo que, então, se instaurava pelo mundo. O identitarismo não tem a ver com isso. Ele é francamente neoliberal em espírito, ele advoga a máxima de que agora ninguém mais é trabalhador, todos são “empresários de si mesmos”. O narcisismo dele é profundo. E ele não é relativista, ele fundacionista e anti-pós-moderno. A tese do racismo estrutural é um bom exemplo: o Brasil deixa de ser uma país que tem racismo para se tornar um país estruturalmente racista. O racismo é nosso fundamento absoluto. Todos são pecadores, racistas, uma vez que são brasileiros. E nada é mais importante que o indivíduo que, até então, foi oprimido pelo racismo. Ele é a glória, o mito, o que mostra o verdadeiro brasileiro, que ainda não emergiu. O brasileiro puro, que irá vir de um futuro mítico, sem a mancha do racismo, será de fato o universal. Por enquanto, ele é o fundamento ideal e potencial do brasileiro, no futuro ele se realizará. O fundamento ideal se fará real efetivo, e existente.

A tese do racismo estrutural resulta exatamente nessa doutrina fundacionista, absolutizadora, antirrelativista. Não à toa, os identitários entram em guerra uns com os outros, formando mil grupos. Grupos que não agem como sindicatos, partidos ou movimentos sociais, agem exatamente como o velho fascio. Perseguem! Reinauguram linguagens que, no limite, não são linguagens, são urros. Formam milícias no campo artístico e do entretenimento. São um prato cheio para a crítica da direita. O caráter individualista, narcísico e de non sense dos identitários espanta o homem comum. Este, então, diante dessa diferenciação estranha, perde as referências, e adere à crítica de direita. Esta, por sua vez, não ataca só os identitários. Diz que os identitários representam as minorias e a esquerda, são “comunistas”, são os que “destroem os valores da família”. Eis o debate do absurdo instaurado.

Quanto mais cresce o identitarismo, mais a direita extremada consegue alimento fresco. Nesse ambiente, ninguém mais sabe quem é o fascista. O fascismo se normaliza de ambos os lados, torna-se prático. A guerra semântica é substituída logo pela guerra semiótica. Sai a hermenêutica e entra o berro, o simbólico e histriônico. Cada um quer ter mais presença simbólica na infosfera e, com mais “like”, calar o outro, cancelá-lo. A sociedade emergente dessa prática não consegue conviver com a política. Reveste-se de profundo moralismo. Nesse ambientes, dos dois lados, só há uma classe social: a classe média, em termos ideológicos. Ela repele a política da luta de classes, fala que a política é roubar ou não roubar – assim é a direita. A mesma classe média alimenta o identitarismo, e fala que a política é discriminar e não discriminar o indivíduo.

A velha esquerda, que fica com as ideias do capital versus trabalho e que endossava as minorias, fica perdida diante dessa situação. Tende a proteger os identitários, imaginando que eles são os herdeiros das lutas de minorias, como foi o movimento de Direitos Civis nos Estados Unidos. Fazendo isso, trazem o inimigo para o interior. O identitarismo na esquerda é a porta dos fundos aberta para o neoliberalismo. Aos poucos, vários identitários fazem o neoliberalismo se tornar dono do comportamento de muitos membros da esquerda. Nessa hora, o pior acontece: os partidos de esquerda chegam ao governo e, ao invés de começarem a pensar quem são os ministros que poderão atuar em favor dos trabalhadores, passam a ceder a pressão para colocar uma cota de negros e mulheres nos ministérios. O identitarismo venceu. A prática fascista discriminatória venceu. O neoliberalismo faz o narcisismo chegar ao topo. Do lado contrário, ou aparentemente contrário, a direita aplaude. Ela sabe que terá mais pão doce para ficar forte e acusar a esquerda de burrice, sectarismo, doutrinarismo e, pior, de práticas do fascio.

Paulo Ghiraldelli,dezembro de 2022

5 comentários em “O neofascismo brasileiro e o identitarismo”

  1. Ghiraldelli, acredito que o seu texto esclarece pontualmente como as ANTAS ANTAGÔNICAS como Pondé, Moro, Gentile e Olavo se posicionam no projeto de ilusão e domínio das massas diante do nosso atual contexto de ressentimento neoliberal. Gostaria de ler alguma coisa sua sobre a função dos DIVERGENTES, como Alckmin e Tebet, na construção de um possível projeto de resistência de uma esquerda reflexiva. Abraço.

  2. theevilchainsaw – Filho da Putaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

    Otimo resumo professor, essas figuras como boca de jacare e os identitarios acabam com a sociedade !

  3. Paulo Ghiraldelli – São Paulo – Filósofo

    Nooosssa, tentanto lacrar em favor do namorado? hahahahah Essa coisa de falar “é inveja” é coisa de lacração, ninguém inveja quem está errado cara, acorda!

  4. Paulo Ghiraldelli – São Paulo – Filósofo

    — Perceba Celso: você só se contenta quando falam o que você quer ouvir. Percebe? Na hora que chegamos no identitarismo, você gemeu. Tem que gemer mesmo, você sentiu que o texto fala do seu fascismo.

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