Pular para o conteúdo

OS PRAGMATISTAS E A ÉTICA MODERNA

Grosso modo os filósofos atuais acreditam que há duas maneiras de nos descrevermos como cidadãos éticos. Podemos nos mostrar como usuários de um vocabulário que abrigue princípios universais que implicam em um dever, ou que abriguem princípios universais que garantam menos desprazer.

Ética do dever e ética do prazer ou do menos desprazer – eis aí as duas grandes éticas laicas modernas.

Os que acreditam em uma ética do dever procuram qual é, enfim, a lei que devem seguir. Kant nos dá uma, que funciona como um imperativo: devemos agir de modo a poder, sem contradição, tornar a nossa ação uma ação cabível universalmente. O exemplo de Kant é simples: posso mentir? Não, não pode, pois se a mentira se tornar uma regra universal perdemos a própria noção de regra, pois perdemos a comunicação.

Os que acreditam em uma ética do prazer procuram avaliar, caso a caso, como fazer com que mais pessoas sofram menos. Modernamente, Mill e os utilitaristas defendem tal ética. Sempre é útil que levemos em conta que o desprazer de menos pessoas ou o menor desprazer de uma pessoa é o que temos em vista. Os exemplos nesse campo são inúmeros: em geral, se não conheço quem está envolvido no problema, diante de ter de optar entre jogar uma boia para três náufragos juntos ou jogá-la para um distante sozinho, opto por jogá-la para o grupinho de três.

Nos dois casos, não há eliminação de dramas. Uma vez partidário de Kant, não posso mentir. Mas se tiver de esconder alguém da polícia, um amigo ou uma pessoa que é inocente, não devo assim agir e então mentir? Por fazer isso, cairei no campo de perda moral?  E no caso utilitarista? Caio no campo de perda moral se jogar a boia para a pessoa solitária, se ela é minha esposa ou minha mãe?  Bastam esses dois exemplos para vermos que optaríamos num e noutro caso pela atitude não aprovável pelos regimes filosóficos. Teríamos de ser imorais para sermos corretos! Eis aí uma situação pouco confortável.

Os pragmatistas trazem para os filósofos outra maneira de conversar sobre o assunto. Há quem diga que nem é possível considerar esse modo como filosófico. No entanto, os pragmatistas insistem que eles, mesmo sendo pessoas “do contra”, ou talvez justamente por causa disso, também tenham de ser considerados filósofos.

O que está envolvido nos exemplos acima é uma disputa entre ficar no campo ético-moral ou então ceder à lealdade e sair do campo ético-moral. Há uma disputa aí entre ser justo e ser leal. Nos dois casos, se sou justo, sou eticamente correto e não sou leal, mas então, ao mesmo tempo, terei talvez até a maior parte das pessoas contra mim. Afinal, cá entre nós, vamos ser sinceros: ninguém perdoa uma pessoa desleal. Aliás, até filósofos se esquecem da filosofia de Kant e Mill quando são vítimas de alguma deslealdade, e chegam a ver no desleal um desvio de caráter. Um descuido e podem até começar a ver – erradamente se considerarmos suas doutrinas – no desleal o portador de uma falta ético-moral muito grande.

Os pragmatistas não gostam muito de ver a linguagem ou o vocabulário da filosofia comandando a fórceps a linguagem ou vocabulário corriqueiro, especialmente se o vocabulário corriqueiro tem lá seu apelo ao bom senso. Não se trata de decidir por um ou outro, mas de observá-los melhor.

Os pragmatistas sempre acham que a práxis pode ajudar muito a entendermos o que ocorre em situações de impasse desse tipo acima.

No campo da práxis, ou seja, das experiências de vida, se notarmos bem o que ocorre, veremos que não aprendemos o vocabulário da lealdade sempre como em oposição ao vocabulário da justiça. Somos sempre cobrados no sentido de mencionarmos o “nós” como que uma forma de circunscrever aqueles a quem devemos ser leais. Todavia, à medida que saímos da vida infantil para a adulta, esse “nós” amplia seu raio, tornando-se uma circunferência maior. Passamos a usar do vocabulário da lealdade para mais pessoas, não só para nossos pais e irmãos, mas também para nosso cão e amigos próximos. O casamento amplia ainda mais o “nós”. A cidadania torna o “nós” um grande círculo. Há quem imagine que, diante da presença de seres intergalácticos, o “nós” pode ser todos os viventes na Terra.

Sabemos que podemos agir assim porque a experiência da vida mostra que pessoas totalmente desconhecidas, que não são nossos parentes, um dia terminam por se tornar tão ou mais importantes para nós que muitos parentes. O “nós” é ampliável. Ora, se o “nós” se amplia crescentemente para todos os lados, termina não por eliminar a justiça, mas por incorporá-la a um caso de lealdade. Podemos nos tornar leais à Humanidade, e por lealdade não deixa-la sucumbir. Desse modo, lutaremos por leis que regrem nossa conduta enquanto seres leais uns aos outros. Desleal seria, então, trair essas leis que garantiriam o gigantesco “nós”. Em outras palavras: a justiça não desaparece, mas ela é vista, então, como uma prática de lealdade ampliada, e não uma inimiga da lealdade.

Nossa ética ou, digamos assim, nosso ethos, viria de uma prática de ampliação histórica e social da lealdade. Casamentos, amizades, empreendimentos comuns, linguagens sentimentais postas em jogo, compaixão, identidade em casos de dor – tudo isso são elementos que jogam a favor de utilizarmos o vocabulário da lealdade para mais e mais pessoas. Teríamos uma ética da lealdade ampliada, o que seria uma ética de reconstrução da justiça.

Os pragmatistas podem ser acusados de não estarem fazendo filosofia à medida que, nessa trajetória, não podem fornecer um vocabulário do dever ou do prazer, fundamentados em alguma noção de natureza humana, mas apenas um vocabulário que diz “ele é um de nós” e “ele também é um de nós”. Trata-se aí de um vocabulário que deve ser analisado pela sociologia e descrito pela história. Nessa perspectiva não há uma fórmula filosófica, uma chave de solução de todos os casos, por meio de uma regra universal. Nem há uma regra ética escrita nas estrelas, mas somente nossa práxis de convivência ampliada.

Os pragmatistas gostariam de serem considerados filósofos, ainda assim. Imaginam que podem não ter fundamentos últimos para uma ética, mas isso não quer dizer que não possuem capacidade de descrição dessa situação de ampliação da lealdade que, enfim, possa ser traduzida em uma narrativa relativamente diferente da narrativa sociológica e da narrativa histórica. Muitas vezes, esse tipo de filosofia pode ser visto como uma forma de história filosófica da cultura ou mesmo história das ideias e comportamentos. Não raro, pode ser uma narrativa que ao invés de elementos empíricos, utilize a própria tradição da filosofia, da narrativa que se faz herdeira antes das obras filosóficas que das obras sociológicas e historiográficas. Nesse sentido, pode ser sim uma filosofia moral. Por que não?

Paulo Ghiraldelli, 2013

1 comentário em “OS PRAGMATISTAS E A ÉTICA MODERNA”

  1. Como é bom ler uma honestidade intelectual em nossa perspectiva injusta enquanto direcionada à globalizada cultura do comportamento de consumo apolítico e notadamente ultraliberalizada na libertinagem do mercado, que vende ainda a ideologia europeia classicista, tradicionalista e orgulhosamente medieval.

Não é possível comentar.