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Caminhando e cantando, mas sem saber para onde!

Pensamos com mais facilidade o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Vários entre nós, filósofos de esquerda, temos repetido esses dizeres de Zizek. O fim do mundo pode ser pensado porque, em geral, é sempre um evento relativamente externo a nós que o determina.

Vários tsunamis e poluições de todo tipo poderiam ser efeitos de uma guerra nuclear de pequena escala. Os sobreviventes, então, responsabilizariam os tsunamis e a poluição, e menos a guerra, pela desgraça. Vimos isso recentemente: todos falando em pandemia, e não em sindemia. O conceito de sindemia, que envolveria considerar a produção e o espalhamento da Covid-19 como algo gerado pela nossa intervenção social na natureza, não foi adotado. Não podia ser adotado.

O fim do capitalismo não pode ser pensado exatamente por este motivo: o seu término deve nos envolver diretamente como sendo o produtor de tal obra. Não temos a coragem de nos responsabilizarmos por coisas tão grandiosas. Já tivemos essa capacidade. Napoleão disse que, com ele, a Revolução havia chegado ao seu término. Ele falou isso tomando a Revolução já não mais como evento histórico ou período, mas como uma instituição, a instituição francesa par excellence. Tratava-se de encerrar a Instituição para, então, eternizá-la. Impondo pela força a regra burguesa a outros países, a Revolução estaria exposta como eterna.  

Quando os dirigentes da URSS declararam que, finalmente, o comunismo estava instaurado, todos no Ocidente sabiam – e eles lá mais ainda – que não era uma verdade, e que se era, então ninguém mais iria querer ser comunista, o que quase ocorreu. Poucos anos depois o império soviético caiu como um castelo de cartas. A instituição chamada Revolução, de matriz napoleônica, voltou a imperar no mundo. O reino da propriedade privada e do dinheiro nos comanda.

Falta-nos coragem ou falta-nos imaginação para pensar o fim do capitalismo? Ou a falta de imaginação é, antes de tudo, provocada por uma coragem embotada? É uma obra muito grandiosa, e por isso ela nos faz recuar. Grandiosa por uma razão: o capitalismo se tornou algo complexo, globalizante, capaz de não mais nos governar por cima, mas através de nossos poros. A financeirização do capitalismo o tornou ainda mais pegajoso que antes. Não conseguimos pensar como seria viver sem a rede digital-financeira mundial modulando e fazendo correr os fluxos de dinheiro, comunicação e trabalho. Chegamos a um ponto em que toda a nossa vida orgânica está imiscuída nesses fluxos, e eles parecem que não poderiam simplesmente existir sem que fossem regidos do modo como estão regidos. Hoje é mais fácil pensar que podemos encontrar ETs do que pensarmos em viver sem o monopólio do Google e de seu PageRank que criar valor, ou do substituto a este, que já está programado.

Imaginar o fim do mundo é sempre uma questão infantil. Cria-se uma causa e … bum! o mundo se acaba. Apocalipse é uma palavra cujo significado inicial é descoberta. Utilizamos hoje essa palavra para falarmos de um cataclisma, de um grande cataclisma. Um grande cataclisma é sempre uma descoberta, talvez o momento em que se pode fazer uma grande descoberta, a que responderia a pergunta “qual é, afinal, nosso destino?” O capitalismo é difícil de ser pensado pela razão de que não podemos associar seu fim a um apocalipse. O pensamento apocalíptico pode ser usado como simplificador. O capitalismo é complexo, e quando queremos ver sua origem, nunca conseguimos de fato criar datas confiáveis. Acabamos nas mãos de historiadores que, às vezes por gosto pessoal, elegem alguns marcos para que possamos ter a matéria escolar dividida sem nos deixar loucos em época de provas.

Daqui há alguns anos, se um evento apocalíptico que possamos chamar de natural não nos venha abocanhar, levando a civilização de roldão, poderemos até estar dizendo algo assim: estarmos vivendo em uma situação não capitalística! Quem sabe? Então, alguns de nós não enxergarão esses nossos dias senão como um tempo em que o fim já deveria ter sido visto por todos. Várias teorias serão retomadas, e seus adeptos irão dizer: “fulano de tal já dizia que …”. Inúmeros contemporâneos nossos, atuais, e outros não contemporâneos, então, serão tomados como profetas. Quem sabe a teoria de Marx, do colapso do capitalismo por ele mesmo, não irá então ser ensinada nas escolas como de fato uma religião, algo como que a profecia realizada? Afinal, ela não é de todo implausível nao! Leiam Marx com calma e irão ficar com dúvidas sobre sua implausibilidade!

Todavia, no momento atual, quando saímos das facilidades do pensamento apocalíptico, aí tudo se volta para o mais difícil, que é entender que em 2008 tivemos uma crise do capitalismo que nos fez alterar muitas leis, e que em poucos anos essas mesmas leis deixaram de vigorar. Todo arsenal legal americano capaz de evitar a crise do subprime pela segunda vez já foi restaurado. De modo que a confiança no capitalismo como o regime de crises e, ao mesmo tempo, imortal, se refez. Todos nós da esquerda, salvo raríssimos casos, pensa em maneiras de administrar o capitalismo e mitigar os efeitos sociais perversos do neoliberalismo. E o pior, a maior parte de nós sequer sabe ao certo se conseguimos mitigar tais efeitos. E os que dizem que sabem são vistos como pedantes demais para serem levados a sério. Queremos eleger em governos de esquerda porque sabemos que a direita nos esmaga com mais velocidade do que o próprio capitalismo nos esmaga. A direita parece querer acelerar a desgraça.

Não sabemos como o capitalismo pode chegar ao fim. Mas, de fato, em verdade, não sabemos nem como mitigar seus efeitos. Sempre quando pensamos que podemos vender algo para a China, temos de esquecer que eles, lá, ainda não possuem sindicatos livres e, por isso, o trabalhador é oprimido. Sempre quando achamos que nossa indústria vai ter chance, descobrimos que ela, debaixo de nossos narizes, emprega trabalho infantil ou, aberta e legalmente, contrata mulheres com salários menores que os de homens, para a mesma função. Todo governo de esquerda que entra sabe que irá ser sucedido, muito provavelmente, pela direita. Que a população irá ficar insatisfeita por alguma razão. A razão, de fato, sabemos: o capitalismo como um todo faz os ricos e os pobres ficarem em maior distância entre si, criando subjetividades que não podem ser de todo convencidas de que a felicidade chegou.  

É desse modo que nós, da esquerda, vamos para as eleições no Brasil este ano. Vamos tateando. Só a direita sabe o que fazer. Ela simplesmente não tem que fazer nada. Ela pode se dar ao luxo de nunca fazer nada. Ela pode se dar ao luxo de dizer, diante de 700 mil mortos pela Covid: “e daí?”

Paulo Ghiraldelli, 65, filósofo, professor e jornalista.

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