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A presença de Anitta

Como era de se esperar, Anitta não trouxe voto para o PT (confiram as pesquisas e verão), mas já deu dor de cabeça. Primeiro, a conversa tola de legalização de maconha. Não é algo que se coloque em agenda política do modo que ela fez. Dá apoio e, em seguida, põe cobrança – e das mais controversas. Errado! Segundo, avisa o partido que não pode usar a imagem dela para a promoção eleitoral. Ora, como ela quer proibir isso?

Todavia, aqui cabe mais entender Anitta do que avaliá-la. Entender Anitta serve para entender o capitalismo em que vivemos.

A indústria cultural é hoje uma indústria como qualquer outra. Ou ainda: mais lucrativa que outras. A indústria cultural pouco pode ser entendida segundo a ótica da Escola de Frankfurt, que cunhou esse nome. O capitalismo da época dos frankfurtianos não existe mais. A indústria cultural que eles viram pouco tem a ver com o que ela é hoje, em nosso mundo neoliberal, financeirizado e pós-fordista.

O trabalho imaterial deixou de ser uma parte pequena do mundo da produção para se tornar hegemônico nos dias de hoje. O trabalho de Anitta é duplamente imaterial: trata-se da perfomance da própria Anitta associado ao trabalho de produção do marketing da Marca Anitta. Em que forma ela garante o lucro, para a empresa Anitta? Através da privatização antes da marca do que propriamente da performance. O clipe é o produto, mas agregado a ele vem a Marca Anitta. Esta não é vendida, é arrendada. A empresa Anitta quer garantir o monopólio da marca, e com isso pode criar a renda dessa marca, que é agregada ao clipe da própria Anitta, claro, mas também aos inúmeros outros produtos de outras empresas – faculdades, tênis, roupa esportiva, perfumes, carros, bancos etc. Propaganda política entra nesse quesito. A marca Anitta só pode ser agregada à marca do PT, a Estrela, se pagar o arrendamento. Assim funciona boa parte do capitalismo atual: antes com o arrendamento do privado, e este é privatizado por meio de técnicas de monopólio de direitos autorais e coisas semelhantes. E isso implica uma criação de nova legislação. Para forças produtivas novas, modifica-se, claro, a superestrutura jurídica.

Desse modo, Anitta não proibiu o PT de uso de seu nome, e sim de algo poderoso no mercado atual, que é a Marca Anitta, que está envolvida em uma trama de produção mercadológica complexa, e que movimenta dólares a dar com pau. Devemos lembrar que a maior parte das mercadorias que podem usar a Marca Anitta, para ter valor agregado, estão com suas ações no mercado financeiro, o que amplia sobremaneira o que se espera de dinheiro vindo dessa marca. Mesmo que ela fosse petista, ela não teria outra opção senão proibir o usa da Marca Anitta. O militante pode usar, mas, mesmo assim, Anitta vai sair na caça dele. Seus advogados estarão atentos. E isso não por ela, mas pelo fato de que outros pagaram o uso da marca, e os que pagaram são sociedades anônimas, com milhares de acionistas na Bolsa.

O modo de produção pós-fordista, onde reina o trabalho imaterial, é dessa forma financeirizado – assim tem nos ensinado os pós-operaístas como Carlo Vercellone, Christian Marazzi, Toni Negri e Michael Hardt etc. Ao mesmo tempo, Anitta se apresenta na formulação da ideologia neoliberal: autêntica empresária de si mesma. Essa mesma postura ideológica é, ela própria, agora, não mais algo no campo exclusivo do controle social. A função da ideologia mudou. A ideologia, ela própria, se tornou elemento da produção. A Marca Anitta é associada ao “empresário de si mesmo” ou, como diz Peter Sloterdijk, ao ser humano que se auto-intensifica. Desse modo, a ideologia neoliberal não cumpre a mera função das ideologias anteriores, de controle social, mas ela é, também, parte da produção. O símbolo Anitta não é a dança somente. Ela é ideológica na medida em que propaga a ideia do “empreendedor de si”, e isso agrega valor ou dá coerência à mensagem de Anitta que vem no interior de sua marca. A Marca Anitta não implica em arte, mas implica em mensagem sobre o que fazer na vida, como se comportar, como ter sucesso etc. “A presença de Anitta” é exatamente o que é arrendado, e que muitas vezes usa do trabalho gratuito para se tornar o que é. Fans cantando junto ou testando seus produtos ou avaliando clipes são prosumidores – produtores consumidores. Eles ampliam a mais valia, o trabalho gratuito não pago, que é incorporado ao lucros do patronato que paga pela Marca Anitta.

Desse modo, a indústria cultural de Adorno e Horkheimer está lá no passado. Podemos ler e reler o que os frankfurtianos produziram. Instrui, mas não nos fornece muito do que precisamos para entender o mundo em que vive “A presença de Anitta”, o nosso mundo. O nosso mundo deixou para trás, de uma vez por todas, o mundo de antes dos anos setenta. Muitos militantes de esquerda ainda não compreenderam isso. Teimam em viver e fazer teses sobre uma época que morreu antes mesmo deles nascerem.

Paulo Ghiraldelli, 65, filósofo, professor e jornalista.

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