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Você não foi abusado sexualmente? Ah, então você não é gente!

Antes dos regimes disciplinadores das instituições fechadas, os que portavam alguma anomalia física ou corporal não eram completamente inúteis. A sociedade de então sabia bem utilizá-los. Cultivava com eles, por meio deles, a utilidade do escárnio. Eram atrações públicas. Desapareceram da praça quando as instituições disciplinadoras especiais os recolheram. O capitalismo precisou disciplinar tudo, na sua sanha de tornar o homem em geral produtivo para a acumulação do capital. A modernidade clássica, do modo que foi estudada por Foucault, foi essa época.

O capitalismo mudou. Nosso capitalismo atual não precisa mais de disciplina, ela foi incorporada às máquinas. Nosso capitalismo, com todos fora da fábrica e trabalhando individualmente no tecido social, requer a performance, a autoconstrução, a própria teatralização de si mesmo. O necessário agora é a “formação continuada”. “Ninguém nasce pronto”, diz um coach qualquer, com ou sem diploma de ciências humanas. Mas a sensação real é de que nunca há término para a formação. Ninguém se forma. Todos precisam se modular continuamente.

O que vivemos hoje, como Deleuze soube descrever e antever bem, é uma sociedade de regimes abertos. O controle se faz por mecanismos horizontais que modulam fluxos. O dinheiro, a informação, os comportamentos etc. – tudo é tomado como fluxo contínuo e cabe a nós mesmos, em redes – em especial, agora, a rede de computadores – modular esses fluxos. Em uma sociedade assim, as anomalias não são mais anomalias distintas, mas ganham graus. E sendo tomadas em graus, podendo ser horizontalmente controladas em seus fluxos, elas integram a normalidade em que vivemos. Ou integram-se à normalidade patológica em que vivemos.

Assim, nossa sociedade atual já não se lembra do tempo das anomalias na praça pública e talvez tenha uma tênue lembrança dela nos circos. A fronteira entre o que é o sofrido e o que é o não-sofrido se perde. Instaura-se a “sociedade paliativa”, para usar uma expressão que é título de livro de Byung-Chul Han. As amenidades ganham destaque. É preciso não ofender ninguém. É preciso não escutar um “ai” sequer. É necessário morrer quieto.

Uma sociedade assim, regula o frenesi. Todos podem ficar agitados, mas ninguém pode se destacar com uma agitação diferente. É uma sociedade plural, diversificada, mas não é uma sociedade em que o inteiramente Outro possa emergir. A mesmidade se impõe por debaixo de uma aparente diversidade democrática. Não à toa até as mexidas de bunda de fazedoras de clipes, do tipo da Anitta, precisam ser padronizadas, numa imitação barata de outras latinas que até já largaram a carreira. Instaura-se o teatro de si mesmo, o comportamento histérico. O homem histérico, antes que o puramente deprimido, prolifera como sendo o homem atual – uma conclusão que assumo junto de Peter Sloterdijk. Mas ele, o histérico atual, difere da mulher histérica do século XIX. Ele é de uma afetação calculada, modulada, capaz de poder ser usada no âmbito da vida de youtuber ou vida televisiva, com ou sem cachimbo na boca, com ou sem trejeitos afeminados. Ora, então as anomalias, os sofrimentos, o inaudito precisa ganhar também um espaço de amostragem, mas dentro dos padrões do permitido. Tudo se faz no interior da regulagem, da modulação de fluxos. O ideal é que a vida privada desapareça, e que todos possam contar suas dores e vergonhas publicamente, a fim de que até aquilo que era mais secreto possa ser objeto de pequeno escárnio, para logo ganhar o estatuto de normalidade. Patologizamos tudo para que tudo possa ser normal.

Vivemos a sociedade que faz apologia do pequeno escárnio. Damos cotas para minorias para, por debaixo do pano, dizer: “deixe esse emprego para ele, ele é a cota, nossa empresa precisa ter ele aí”. E então, “o cota” se refestela, até se dá ao luxo de também rir baixinho, riso de canto de boca, curte pequenos escárnios que outros sofrem, aqueles que são os que, dentro da farsa identitária, seriam seus iguais.

O projeto neoliberal que visa a existência não mais de trabalhadores e patrões, mas a proliferação do empresário de si mesmo, casa-se bem com essa ideia da apresentação de performances de sofrimentos adrede preparados para serem relatados. São de fato relatados de modo que possam alimentar olhares que precisam, para sobreviver, de maldades em doses homeopáticas. Eis aí a ideia básica que faz a nossa sociedade atual, pela mão de neoliberais – Luciana Temer, Djamila Ribeiro e Angélica à frente – produzir algo como o #AgoraVcSabe. É o apogeu da nova forma de escárnio. O pequeno escárnio é funciona como o chiste picante de salão, ou a “piada para mulheres”, que perdurou até os anos cinquenta, e que talvez agora volte com a geração Z evangélica.

A ideia básica do projeto da filha do ex-presidente Michel Temer, é que o rico e famoso conte como foi abusado sexualmente, e que isso provoque um tesãozinho em quem o vê na tela. Ao mesmo tempo, o pobre, em especial o indígena ou outra minoria qualquer, deve fornecer testemunhos mais escabrosos, pondo-se completamente à mercê dos olhares que, para sentirem tesão, precisam de doses menos homeopáticas. A regra básica é simples: todos nós só somos gente se pudermos acabar com a nossa vida privada, encerrar nossa sessão de terapia, e nos abrirmos publicamente para que o escárnio escalonado, modulado, possa ser curtido. Todos devem ter a chance neoliberal de exibirem a sua performance. Aí de quem não foi abusado! Aí de quem não puder ter o seu abusador favorito ou abusador de estimação! Não tem mais status de ser humano quem não se prestar a se mostrar arrombado!

Se é assim, então, até Jesus não é mais digno pelo seu sofrimento na cruz. Procuram colocar Jesus no #AgoraVcSabe! Há teólogos dizendo que Jesus foi abusado sexualmente – teve de ficar nu diante de um montão de romanos! E assim, que se dane o sofrimento da cruz, que já não significava mais nada. O bumbum de Jesus, visto por romanos, aí sim, isso foi sofrimento! Talvez algum santo menor, não Jesus, só agrade se ele puder se apresentar como abusado através de penetrações com areia e gelol. É a indígena abusada, que veio aos detalhes na câmera de Luciana Temer, ao passo que Angélica está mais para Jesus, apenas lhe passaram a mão na bunda! E indo para Paris!

A justificativa para tal grotesco projeto de Luciana-Djamila-Angélica é a energúmena e maldosa ideia de que precisamos dar publicidade aos abusos. “É preciso falar de abuso”. Todavia, o que mais fazemos é falar de abuso. Os jornais já perderam a chamada página policial, onde se falava de abuso, pois há tempos que o abuso sexual é cotidianamente mostrado nas páginas principais. Todos estão arrombados. É uma regra jornalística trazer o arrombamento do dia. Se é rico e famoso, é apresentado para um tipo de público, se é pobre, é mostrado escancarado, para outro tipo, aquele que prefere o site de zoofilia da internet. Há décadas só falamos disso e só isso faz sucesso. Não é necessário expor mais gente, inclusive ampliando traumas, para que possamos saber do abuso sexual. As estatísticas dizem. Tudo diz!

Falta política pública para as famílias, falta educação sexual na escola, falta segurança real, falta gente que não queira prejudicar juízes que protegem a infância. Não é mais necessário um The Intercept querendo manchar juízes, nem advogados fanáticos por aborto fora de época.

O #AgoraVCsabe é a reinauguração do circo das anomalias, na sua versão pós-fordista e neoliberal.

Paulo Ghiraldelli, 65, filósofo, jornalista e professor.

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