Os antigos julgavam as ações pelas ações. O comportamento contava mais que tudo. Depois, na era cristã e moderna, as avaliações das ações passaram a ser feitas a partir da verificação da intenção. O princípio básico do confessionário, para obter a verdade, e do arrependimento, para expiar a alma, exigido pelo cristianismo para que se pudesse falar de faltas humanas, consagrou-se também na justiça laica. A modernidade de Descartes e afins não mudou isso, ao contrário, manteve esse padrão. No entanto, vivemos uma terceira fase. É o mundo contemporâneo. Em nossos dias, não basta revelar a intenção, é necessário a exposição pública, a participação em uma espécie de reality show eterno, em que cada um deve fazer os outros povoarem seus mundos imagéticos com cenas de intimidade perdidas. Cada um só pode ser avaliado se vier a se expor sem pudores em praça pública. Tudo deve ser resolver no fórum permanente da Internet.
No mundo antigo, quando um condutor de biga corria pela cidade e atropelava alguém, ele era responsabilizado por ter conduzido a biga de modo inábil. Deveria ressarcir a vítima ou o estado pelo ato de incompetência técnica. No mundo moderno, passou-se à figura do “dolo” e da “culpa”. A intenção tornou-se um parâmetro. O carro atropelou e matou fulano. Eis a pergunta: o condutor vai se tomado como criminoso que cometeu homicídio doloso ou homicídio culposo? O cristianismo está aí presente: o pecado é pecado porque pecamos não só por atos, mas por omissões e pensamentos. Fundamentalmente pecamos por pensamento.
Diferentemente, no mundo contemporâneo, o palco em que tudo que pode ocorrer é modificado. Esse palco é construído, tijolo por tijolo, por um tipo de capitalismo que inaugurou uma forma especial de mercado. Vivemos o capitalismo financeiro e, digamos, cognitivo. As finanças e a venda de papeis comandam tudo. São ações e títulos que estão no mercado, não mais produtos materiais. E ações e títulos espelham marcas, símbolos – o brand. Trata-se de um capitalismo de produtos imateriais, em que algo é respeitado e procurado pela imagem, o símbolo que leva os participantes a acharem que os papeis que se ligam a uma determinada empresa vão render mais dinheiro. Não importa mais o produto, mas a marca. Nesse capitalismo muito mais fetichizado e mais fantasmagórico do que aquele analisado por Marx, o mundo imagético dita as regras. Ora, o mundo imagético dá o tom de modo que tudo que é avaliado seja avaliado como imagem. Avaliar ações é, então, perquirir o grau de entretenimento provocado pela imagem.
É sob essa regra da imagem, espetacularização e, especialmente, pornografização e entretenimento que funciona o Instituto Liberta. Trata-se de uma organização de Luciana Temer, filha do ex-presidente Michel Temer, com apoio de setores da mídia neoliberal e, em especial, a escritora Djamila Ribeiro. O Instituto quer trabalhar com a violência sexual contra a infância. E acredita que o melhor caminho é colocar na praça a campanha “#AgoraVcSabe”.
Essa campanha incentiva cada pessoa que sofreu abuso na infância, agora adulta, a revelar o abuso de sua época em vídeo gravado, a ser exibido na Internet e na TV. Em outras palavras: o modo como se quer conscientizar não é pela estatística e pelo que já se sabe, mas pela exposição da vítima que tem que se re-vitimizar e se re-humilhar em público. Assim, cada filho poderá descobrir que seu papai foi vilipendiado, foi abusado por padres, vizinhos e também pelo vovô e, por conta disso. Por conta de saber isso, cada filho ficará muito orgulhoso de seu papai, e irá tomar cuidado para que não aconteça com ele a mesma coisa. Só pode ser isso! O Instituto Liberta é dirigido por pessoas que, desconfio, são destrambelhadas.
A ideia de um mundo moderno em que se investiga a intenção é a ideia de que a intenção está oculta, e que pertence ao campo privado. A ideia de que não importa a intenção, e que nenhuma privacidade deve existir, não é moderna, é contemporânea. É ela que comanda a infeliz iniciativa da campanha “#AgoraVcSabe”. O mundo interior, indevassável e garantido como um direito, o direito à privacidade, se perde diante do mundo em que cada um só tem garantias ontológicas se virar uma imagem de espetáculo, entretenimento, de heroísmos às avessas, para alimentar o freak show da Internet.
O pior é acreditar que se expondo, o autor da exposição estará superando o trauma e ajudando na conscientização social a respeito de abuso infantil. Nem uma coisa e nem outra. Ele apenas estará caindo no ridículo, na solidão, e deixando a descoberto a si mesmo, pela segunda vez, e também os seus familiares. Trauma é algo a ser tratado com profissionais adequados, do mundo da psiquiatria, em completo segredo.
Quando denunciamos a violência sexual em uma guerra, queremos pegar culpados e queremos fazer a guerra parar. O trabalho do jornalismo sério faz isso. Nesse caso, não há masturbação com o sofrimento alheio. Os jornais podem fazer manchete “para vender”. Mas o jornalista, em geral, faz a reportagem esperando contribuir para o fim da guerra. Muitos entrevistados do Holocausto acharam que deveriam falar para que o evento não se repetisse como uma barbárie de um regime e de uma época. Não é isso que se pede como a campanha “#AgoraVcSabe”. Nesta campanha, há um apelo ao indivíduo. É o suprassumo do neoliberalismo. Não basta mentir dizendo que todos são empresários de si mesmo, é necessário agora inventar a exposição do calvário de si mesmo.
Aqui, precisamos refletir sobre uma alteração ocorrida no próprio interior do mundo contemporâneo, para deixar tudo melhor explicado. Lembro que em um texto de 2005, a psicanalista Suely Rolnik, escreve que o mundo do capitalismo financeirizado, se mostra como um mundo próprio à sedução. Ela diz que: “o que nos seduz nos mundos-imagem produzidos pelo capital é, basicamente, a ilusão que eles veiculam de que existiriam mundo em que as pessoas nunca experimentariam fragilidade e sentimentos de estranheza, ou no mínimo teriam poder de evita-los e de controlar a inquietação que provocam, vivendo uma espécie de existência hedonista”. [1]
Ora, se pensarmos no que o Instituto Liberta quer, podemos acreditar que seus diretores participam dessa ideia exposta por Rolnik. Mas, na verdade, essa ideia de Rolnik não descreve mais a nossa realidade. O que vale atualmente não é se mostrar como quem não tem fragilidade, mas exatamente o contrário, se mostrar de qualquer maneira – se mostrar abertamente para se dizer: “sou autêntico”, nada escondo, aqui está todo meu eu, minha intimidade, que foi devassada pelo abusador e que agora, apoteoticamente, é devassada por mim mesmo para vocês todos, que deverão der um “like” para as imagens e textos que eu mostrar. O abuso que sofri garante que eu exista. Eu existo legitimamente enquanto abusado, e só posso de fato existir se você, com seu olhar, me vendo como recordando o meu abuso, me observar.
O projeto narcísico de nossa vida atual, que leva cada um a se portar como imagem e se autocurtir, exige que possamos curtir também nossas desgraças. Precisamos confessar a desgraça não para obter expiação, mas para provocar uma catarse coletiva que nem mais se verifica. É a pura necessidade de pornografia, de transparência, exatamente para que nada que é segredo seja segredo. Tudo que é segredo, que não é da ordem a imagem exposta, perde valor moral e perde até mesmo estatuto ontológico. A ideia de que o mundo é uma representação, como anunciou o filósofo Martin Heidegger, se materializa na prática de que a própria representação se produza não como representação mental, mas como telão coletivo, como quando vemos jogos da Copa do Mundo em um bar.
Temos de nos imolar da cruz da Internet para sermos atrativos e, com isso, seduzir e garantir nossa condição de pessoa, de cidadão. Dado que cada corpo imagético é tudo que temos, devemos mostrar o corpo como não contendo nenhuma nódoa, para derrotar o abusador, que deve estar em algum lugar, trinta anos depois do abuso. Eis o mandamento contemporâneo contra o abusador: “ele atingiu a nossa alma, nos arrebentou, mas vejam todos como nada ficou marcado no meu corpo! Sou livre!” É assim que cada um irá mostrar sua vitória, seu glamour, seu narcisicismo e seu modo imagético de entretenimento para os influencers que, por sua vez, também irão publicar livros mostrando as posições em que foram abusados.
Mais cedo ou mais tarde, talvez tenhamos aí um Kama Sutra só com as posições executadas pelo abusador e pelo abusado, distribuído em sites governamentais e de ONGs, para que toda a família saiba o que ocorre em seu interior. Que nenhum segredo permaneça na Terra, pois só o total mundo iluminado pela verdade que se fez imagem, que se explicitou, contém algo que tem o direito de ocupar lugar. Paralelamente a isso, a real eficácia contra os maus tratos gerais na infância, que deveriam aparecer nos programas escolares, tanto de sociologia do trabalho quanto de educação sexual, são abafados. A vítima é convocada a dar seu show enquanto à escola é negado o direito de apresentar o caso com a discrição e o know how apropriado.
Paulo Ghiraldelli, 65, filósofo, escritor, professor e jornalista
[1] Rolnik, S. Antropologia Zumbi. São Paulo: N-1 e Hedra, 2021, p. 61-62.
Um absurdo, na minha opinião, expor algo trágico do passado para todo o mundo, achando que vai ter paz espiritual. Isto é tem que ser feito com um especialista ou no anonimato.
Que absurdo estas ideias estapafúrdias de expor a intimidade alheia, coisa de gente embecilizada. Na escola que trabalho é difícil abordar o tema de educação sexual, a maioria dos alunos advém de famílias evangélicas. Mas os casos que chegam ao conhecimento da escola são tratados com toda descrição e encaminhados como deve ser, o abusado a profissionais especializados e o abusador denunciado.
Trata-se da espetacularização da desgraça. É o sofrimento virando produto.
A sexualidade é uma dimensão humana essencial, e deve ser entendida na totalidade dos seus sentidos como tema e área de conhecimento. Problema de difícil solução.
Vitor,este texto quem escreveu-algum idiota lá da JOVEM PUM????
Parece o Pondé Bicha Velha,meu,puta que o pariu….
QUE TEXTO MAIS PONDÉ,HEIN????????kkkkkkkkkkkkkkk
Parabéns Professor pela análise. Ousando contribuir com o debate: O julgamento pelo comportamento, trouxe muitas cabeças cortadas em bandejas. O confessionário surge como superação disso, mas graças à Ciência, é superado pela Psicanálise. Acho que esse exibicionismo doentio tem suas raízes na ausência da Psicanálise na vida da maioria das pessoas ( nem todos conseguem pagar sessões de terapia), deixando claro que não é com terapia que se muda regime social. Acho ainda que não é destrambelhamento apenas, mas trata-se de um projeto político muito bem pensado e representado no” #Agora vc sabe”.
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