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Passing – uma obra anti-identitária

Passing é um romance publicado em 1929. A autora é a escritora negra norte-americana Nella Larsen. Rebecca Hall produziu o filme com o título do livro, em 2021. Infelizmente a película foi lançada no Brasil com o título Identidade, o que já havia ocorrido com a tradução, recentemente publicada pela Harper Collins. Com isso, o jogo de palavras do título se perdeu. Trata-se de uma obra sobre “passing”, e não sobre identidade negra, no sentido que o termo identidade tem se apresentado na mídia atualmente, nos quadros do “identitarismo”.

Identitarismo é uma ideologia de direita. Nasceu junto do fascismo, e hoje se apresenta como proposto neoliberal que, por dominação ideológica, se faz passar como algo de esquerda pelos incautos, que supostamente acreditam que tal coisa tem a ver com a defesa de minorias. Passing está fora dessa polêmica.

Passing é um termo inglês que quer dizer, em nosso português, o “passar-se por”, e também pode estar se referindo “ao passamento”, ou seja, à morte. A história começa com o encontro de amigas de infância, agora casadas, Irene e Clare (as atrizes Tessa Thompson Ruth Negga). Ambas são negras. Todavia, Clare se fez passar por branca para se casar com um branco que, por sinal, não gosta nenhum pouco de negros. Passando-se por branca, conseguiu ter uma vida fora do Harlem. Diferente de seu marido médico, que não poderia se passar por branco, Irene pode também, ainda que esporadicamente, se passar por branca. Por isso encontrou Clare em um hotel em que negros certamente não entrariam. Mas, diferentemente de Clare, Irene jamais deixou o Harlem ou negou sua cultura afro. Ao menos não de modo que ela própria pudesse se dar conta.

A partir desse encontro, Clare amplia sua saudades do Harlem e da vida entre os negros. O dinheiro não havia compensado a solidão e a vida falsa com o marido. Então, Clare passa a visitar Irene. Clare é desenvolta, alegre e juvenil. Irene é intelectualizada e, no Harlem, uma figura capaz de ser anfitriã de poetas e outros figurões brancos, frequentadores das festas da comunidade negra. Clare não dá muita importância para essa pompa. E logo passa a incomodar sobremaneira a já infeliz vida sexual de Irene. A moradora do Harlem cisma com um suposto flerte de Clare com o seu marido médico, e se deixa levar por um sentimento dúbio de cuidado e ódio a respeito da amiga. A partir daí, nada mais é necessário para que o demônio que habita todos nós possa fazer o resto, pondo Irene como uma potencial inimiga de Clare.

Assim, a história não é sobre brancos reais e negros. Mas sobre o fantasma da cultura branca sobre a real vida na cultura negra. Na própria casa de Irene isso de manifesta. Ela tem empregada doméstica, que é mais negra que ela. Quando ela se dá conta, Clare já desfez hierarquias nessa sua casa: passa a conversar com a empregada sem cerimônias, desfazendo a cultura branca instalada no interior da casa de Irene. Uma negra que se pinta de branca vem em minha casa para colocar os mais negros fora do esquadro – certamente este é o pensamento que nutre Irene, algo que vai se somar ao fato de imaginar que pode estar em meio a um triângulo amoroso. A essa altura do filme já é possível notar que há pólvora e estopim o suficiente para que as coisas não venham a acabar bem.

O filme segue o livro, pondo em cena o fenômeno do colorismo, que extrapola o que o identitarismo de hoje em dia pode conceituar e entender. Há negros e negros no mundo dos negros, sem que isso possa ser dito. Enquanto que no mundo dos brancos há brancos e negros, e se há diferença entre negros para os brancos, isso é sempre dito.

O colorismo é bem conhecido de nós: a cor da pele enquanto tonalidade determina o grau de liberdade e de possibilidade de “passing”. Expliquei em outros artigos como isso tem a ver com a identidade idem, e não com a identidade ipsem, e o quanto é uma prática identitarista e errada.

O romance e o filme abordam esse tema espinhoso do colorismo na sociedade do Harlen dos anos vinte. Ao invés de qualquer busca pela referência à cultura afro, o colorismo, para enaltecer ou para discriminar, se fixa na tonalidade da pele. Esse é o demônio que transita durante o filme, e se responsabiliza pelo seu desfecho.

Paulo Ghiraldelli, 65, filósofo

2 comentários em “Passing – uma obra anti-identitária”

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