Alckmin e Lula podem estar juntos? Lula já esteve junto com o empresário José de Alencar e com o político-empresário Maluf. Já governou sob a égide da “Carta aos Brasileiros”, aquela que garantiu Meirelles no Banco Central e uma política econômica neoliberal. Lula faz acordos em torno de votos. Nada além e nada aquém.
Os acordos políticos são possíveis entre figuras que aparentemente diferem porque há já entre elas, às vezes de modo menos perceptível, um acordo tácito. Esse acordo existe entre Lula e Alckmin quanto ao sistema econômico a seguir, ou seja, a vigência do tripé macro-econômico. Estão de acordo, assim, com o básico do neoliberalismo.
O neoliberalismo está em crise. Mas como sair dele? Temos imaginação e força política para tal?
O mundo entrou nessa situação ao final dos anos setenta. Tudo começou com as reclamações a respeito do capitalismo, em especial as de Maio de 68: a fábrica foi vista como espaço alienante e, claro, de vigência do trabalho não pago. Na luta entre capital e trabalho, o capital respondeu às reclamações por meio de dois movimentos. Para aumentar a produtividade, que ele via como sendo diminuída pelas reivindicações operárias, colocou a máquina e automatizou a fábrica. Os trabalhadores deixaram a fábrica e foram trabalhar na sociedade em geral, como uberizados, ganhando menos. Em seguida, o capital reformulou fábricas e empresas, introduzindo o toyotismo no lugar do fordismo como modo de organizar o trabalho.
O fordismo favorecia a produção em massa e a viabilização da sociedade de consumo. O pós-fordismo passou pelo toyotismo, que favoreceu a entrada da linguagem no trabalho, gerando a comunicação entre demanda e produção. A entrada da linguagem, ou seja, da comunicação, se fez necessário por conta da racionalização do trabalho, em especial aquela pedida pela nova relação entre produção e linguagem. Introduziu-se o sistema do estoque zero. A demanda passou a dirigir a produção. Só se deveria produzir o que viesse a ser pedido. A sociedade de consumo deu espaço para a sociedade do consumo qualificado. As propagandas deixaram de incentivar a inveja para incentivar o cultivo pessoal e solitário.
Junto disso, o Welfare State sofreu abalos com privatizações e flexibilizações das leis trabalhistas, de modo a manter o acúmulo do capital, que é o objetivo do mercado capitalista.
Nesse novo regime, o trabalhador deixou de ter o salário indireto (escola pública gratuita, saúde gratuita etc. – os benefícios do Welfare State), que permitia o consumo. Para o consumo não cair e, nesse sentido, o capital continuar seu projeto de acumulação, no lugar do Welfare State surgiu o crédito não só bancário, mas das próprias empresas. Cartão de crédito dado pelo banco e crediário dado pelas lojas, e eis que o consumo conseguiu ser empurrado com a barriga.
Nessa sociedade, as empresas passaram a ganhar mais com o crediário que com os produtos. O dinheiro-que-gera-dinheiro passou a ser a regra do lucro. Um dado interessante: há décadas a Ford não ganha mais com o carro, e sim com o financiamento que ela oferece ao comprador.
Uma sociedade assim deu origem a “era do homem endividado”. Nasceu a sociedade capitalista baseada no “capital portador de juros”. O capitalismo financeiro se instituiu como o verdadeiro capitalismo. A mais valia deixou de ser extraída exclusivamente da produção e passou a vir da sociedade. Nasceu a chamada mais-valia social.
Esse tipo de capitalimos também passou a ser chamado de semiocapitalismo, uma vez que gerou um excesso de símbolos sem significado. Pois a maquinização pós-fordista é feita pelas máquinas que se comunicam entre si, decidindo pelo homem, principalmente no caso das decisões sobre apostas do mundo financeiro. A subjetividade humana cedeu espaço para a “subjetividade maquínica”, que subsumiu o homem à nova máquina.
Eis, então, que percebemos que o cérebro humano está mudando. Uma criança hoje aprende mais palavras com as máquinas que com as mães. Toda sociedade se virtualiza à medida que se uberiza, e passa a funcionar de maneira conectada, descorporalizada, e desse modo cada indivíduo é menos capaz de sentir a dor do outro. Aliás, o outro tem dificuldade de aparecer. “O inferno são os outros”, o tópico de Sartre, perdeu o sentido. O inferno passa a ser o si mesmo!
Cada pessoa tem de trabalhar na Internet em diversos serviços de plataformas que uberizam a todos, e que criam a estranha conversa em que a interpretação perde para a simples pragmática. Não há o que interpretar. Os recados das máquinas são para outras máquinas, e o humano se maquiniza nesse sistema. É a expulsão do básico da vida humana: a hermenêutica. O próprio cálculo financeiro só pode passar por decisão de máquina, nunca por decisão humana. Pois o tempo deixou de ser o tempo humano. Num mundo assim, não à toa a “Internet das coisas” entra em vigência para começar a ter hegemonia sobre a Internet em geral. Eis o resultado: coisas “conversando” com coisas e fazendo de nós também coisas, caso queiramos ainda participar de algo nessa sociedade.
O sistema político que regra tudo isso ganhou o nome de neoliberalismo. Não temos sabido propor alternativas a esse tipo de vida. No Brasil que se desindustrializa há quarenta anos, esse sistema se torna ainda mais perverso. Requisitamos a imaginação, mas ela tem se mantido calada. Talvez fosse interessante, no âmbito político brasileiro, ter alternativas à esquerda, para forçar a imaginação a pensar em coisas diferentes. Caso contrário, Lula-Alckmin servirão para embotar nosso cérebro.
Paulo Ghiraldelli, 64, filósofo.
Enfim, um texto que preciso reler ao menos mais duas vezes, para, de fato, apreender. É um resumo das décadas de minha existência, já cinquentenária, todavia alienada até as últimas eleições à presidência. Eu sempre me identifiquei com a esquerda, mas não fazia ideia do era, de verdade, tanto a própria esquerda quanto a direita.
Um excelente texto. Um esforço gigantesco para estimular, em poucas linhas, a compreensão de um momento ímpar em que vivemos.
Parabéns sempre Professor Ghiraldelli!!!
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