Investigação é uma coisa, debate é outra. Polêmica é uma terceira coisa.
Sócrates não debatia, ele investigava. O interlocutor era convidado por ele para um trajeto no campo lógico, denominado de Elenkós, o método da refutação. Algo parecido com a falsificabilidade de Popper (1)
Os sofistas gostavam do debate. Não investigavam, apenas usavam da retórica para que o discurso pudesse sobressair aos ouvidos de terceiros.
Diferentemente dessas duas formas de produção de narrativas envolvendo o saber, a polêmica era, de certo modo, uma forma popular de conversar na Grécia Antiga. Polêmica vem do grego polemikos, que quer dizer agressivo. Polemos no grego nada é senão a guerra. Os gregos adoravam a guerra como uma espécie de jogo. Eles eram fãns do agon. Eram agonísticos por natureza. A polêmica como debate era a guerra na sua forma verbal.
A sociedade brasileira está em uma fase em que alguns pedem, sem qualquer legitimidade para tal, que as polêmicas sejam cessadas. Há os que fingem que pedem, mas na verdade exigem. Trata-se da censura ao que restou de grego em nós. Segundo tais pessoas, a polêmica sobre os vários tópicos a respeito da escravidão, que mal ou bem elucida muita coisa ao leitor de jornais, não pode ocorrer. É que a sociedade brasileira resolveu polemizar, e isso tem incomodado os que, por não serem convidados a participar, soltam gritinhos e gemidos por aí. São os novos senhores de escravos. Eles acreditam que são donos de gente! Acham-se proprietários dos brasileiros. Na conta dessas figuras, nós não podemos “polarizar” e “polemizar”. Esses senhores não podem entrar na polêmica, se acham muito superiores, ou querem assim parecer (no fundo, se acham inferiores), então só participam de polêmicas se são chamados para dar a “última palavra”. E há assuntos, como os que têm a ver com liberdade, negros e escravidão, em que eles acham uma afronta que a sociedade, em peso, não os tenha convidado para entrar na polêmica.
Surgiram agora dois donos de escravos no Brasil, Sílvio Almeida e Luís Felipe Pondé. O segundo acusa a polêmica sobre a escravidão de “molecagem” e “risco de desbunde” (Folha, 10/10/2021). Tratei disso em vídeo (https://youtu.be/3N2lyJFlMYA). O primeiro, querendo parecer erudito, constrói um texto de colégio citando Foucault, no intuito de encerrar de vez com qualquer polêmica (Folha, 14/10/2021).
O homem que mais se metia em polêmicas, Foucault, fez um texto contra a polêmica. Almeida não entendeu o propósito e achou validade universal no texto. Utilizou tal escrito para ganhar autoridade diante dos brasileiros que ele imagina que são sua propriedade, e disse: “calados!” “Polêmica sobre escravidão não vale”. Ele vai trazer o resultado final de seus estudos sobre o tema, o tema dos negros no Brasil. Pois ele acredita que tem a prerrogativa de definir como os oprimidos devem se comportar. Afinal, junto com a garota-propaganda da bolsa Prada, ele ministra cursos de modo a ensinar o oprimido o quanto este é oprimido. E sem qualquer constrangimento, cobra dos estudantes!
Diferentemente de Almeida, Pondé nem cita Foucault. Ele não precisa de Foucault, se acha bem mais capaz que Foucault. Talvez por isso mesmo tenha se posto contra a iniciativa de filósofos da PUC-São Paulo de criar a Cátedra Foucault no Brasil. Não queria que o material todo, doado do exterior, viesse para cá. Para ele o importante seria uma cátedra sobre autores conservadores! Foucault era autor procurado só por marxistas, dizia Pondé, do alto de sua sabedoria de leitor de orelha de livros nunca lidos, mas citados. Que os professores e os brasileiros em geral, todos seus escravos, escutassem o proprietário!
Temos no Brasil esses senhores de escravos que só querem nos deixar alguns momentos sem as correntes nos pés, mas não fora da senzala. Em qual momento? Ah, sim, temos de ser merecedores da pseudo-liberdade: mas isso se formos democráticos, liberais (conservadores), centristas e, enfim, se nos mantivermos calados; então teremos o direito de ficar com os pulsos descansados. Eles nos deixarão sem correntes por um momento.
Mas parece que as polêmicas irão continuar. A direita e a esquerda que forjam as polêmicas não estão nem aí com a opinião desses dois goiabas. Ninguém está realmente acreditando que eles acharam alguns documentos, que Rui Barbosa esqueceu de queimar, que comprovam que eles possuem escravos. Todavia, eles também vão continuar. Não se emendam! São os que fazem livros e ao invés de terem na capa algum tema, eles colocam na capa seus próprios rostos! Acham-se na condição de autores clássicos! Quando vejo isso, me dá aquela horrível sensação de vergonha alheia.
Paulo Ghiraldelli, 64, filósofo
1. Fiz dois livros sobre assunto, um pela Editora Cortez e outro pela Editora Vozes, respectivamente: Sócrates, pensador e educador; Dez lições de Sócrates.
Antes quando era só o Pondé, era uma coisa. Agora tem a esquerda com gente como o Silvio, e a coisa fica ainda mais difícil, porque aí engana.
Ghiraldelli, um filósofo anti-petista ressentido…
O professor como sempre brilhante. Racismo, escravidão, homofobia, identitarismo. Assim caminha a humanidade.
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