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A GUERRA TORTA E JUSTA DE THIAGO

Thiago Amparo é negro e faz bem em escrever com o fígado (Folha, 06/10/2021). O que ele não lembra é que o fígado foi o lugar preferido de Zeus para castigar o deus que roubou o fogo do Olimpo para entregá-lo aos homens. Thiago pode ter o fígado regenerado apenas para que o abutre venha devorá-lo mais uma vez e mais uma vez. Talvez a Folha de S. Paulo, com seu conselho “plural”, seja mais um abutre. Um conselho pode abutrizar inocentes sem qualquer investigação.

Mas, o que Thiago não sabe ou não prestou atenção, talvez por juventude, é que o historiador escravocrata e o rapaz do rosto talhado a canivete atacam algo que ele não deveria defender: identitarismo. O identitarismo é uma política neoliberal, com pé no fascismo, que não ajuda em nada as minorias.

Identidade possui duas acepções, como nos ensinou Paul Ricouer: a identidade ipse e a identidade idem. A segunda é da lógica, a primeira é da subjetividade. Identificar A com A é uma coisa, dizer que um Eu é igual a ele mesmo é outra coisa. Tanto Thiago quanto seus adversários esqueceram tal lição. Ao falarem de universais, pegam a identidade idem, não se dão conta de que estão falando de pessoas e, portanto, de comunidades, cultura humana. Se esqueceram que a identidade, quando passada pelo vetor da subjetividade, envolve lutas por hegemonias que lhe são incorporadas.

O identitarismo faz esse erro. Pega idem e não ipse, e com isso fixa a identidade em uma coisa, uma pessoa que vira coisa. A identidade que emerge de uma minoria é diferente, ela carrega cultura, e com isso, ou reconhece o que se põe como universal na sua dialética com o particular, ou presta desserviço. O universal não é o branco, e o particular não é negro. O universal é a lei que conseguimos, ainda que com hegemonia branca, em favor das minorias, no caso, a negra. Se a lei universal, conseguida na sociedade democrático-liberal branca, tornou o racismo antes que falta moral um crime, já desde do ano de 1951 (Lei Afonso Arinos), como podemos desconsiderar isso? Nesse caso, estamos falando de negros que se identificam não com sua cultura que só perdeu, mas com negros que se identificam com sua cultura que também ganhou. E ganhou no campo jogado por brancos e negros, com hegemonia branca.

Ora, achar que cada negro e cada branco é identificado com negros e brancos é uma bobagem. O negro se identifica com a conquista da lei, se assim o quiser, para defender a minoria negra e não para servir de peça ao identitarismo neoliberal (eis o identitarismo neoliberal: “Thiago é nosso trunfo”, “Thiago é o negro que venceu no jornal branco”; “Djamila, por ela mesma, veste Prada”). Mas, se a todo momento, invocamos uma abstrata condição negra para uma defesa necessária e justa da vida negra, isso é a coisificação em ação. Nisso, perdemos a dialética entre o universal e o particular. Tal perda se faz pelo erro na escolha do que é o universal e o que é o particular.

Os inimigos racistas do Thiago fazem a escolha errada: o branco é o universal. Fazem-no por desconhecimento intelectual ou desonestidade intelectual?  Seja como for, Thiago caiu nessa conversa.

Se olharmos para a identidade ipsem e não idem, ou seja, para a subjetividade carregada de cultura, teremos de olhar para a cultura negra que a forma, e então a luta pela lei, pelo universal, é a luta que forjou várias subjetividades negras, mas não todas. Não forjou a de Fernandinho Férias e não forjou a do chefete bolsonarista da Fundação Palmares. Forjou a de gente como o Thiago.

Thiago pelo identitarismo idem é negro. Thiago que defende minoria negra é aquele que com subjetividade, o da identidade ipsem. O problema é que Thiago está se deixando levar pela conversa de seus inimigos e indo pelos conceitos pouco úteis do identitarismo.

PAULO GHIRALDELLI, 64, filósofo

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