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Meninos do neoliberalismo produzindo auto-ajuda

A Era Vitoriana compreendeu o final do século XIX e os anos de real esplendor do capitalismo britânico. Os anos do império glorioso da mercadoria. As chamadas grandes exposições (1851, Londres) ocorreram nesse período. A sociedade de moral sexual rígida caracterizou essa época. O show da mercadoria, presente nas exposições, também requisitava um proletariado capaz de controlar sua libido, reservada para o emprego na fábrica, não na cama. Essa época só se encerrou de fato com os anos sessenta. O grito de liberdade sexual individual fez eco no Maio de 68, juntamente com a denúncia de que o trabalho capitalista era o produtor central de alienação.

Todavia, infelizmente, essas reivindicações de Maio de 68 foram ouvidas por um anjo torto. Ele tomou as providências para resolver a situação. O anjo fez a liberdade acontecer e a alienação do trabalho perder lugar. Como?

Nixon tirou a referência do dólar no ouro. Outras desrefencialidades se seguiram. O mundo rígido caiu por terra. A palavra salvadora foi anunciada: flexibilização.

Câmbio flutuante, fim de barreiras, capacidade do mundo de ver o capital fluindo. Não tardou para que o capitalismo gerasse a Internet e pudesse fazer o dinheiro se tornar sinal magnético criado pelos bancos no número que desejassem. Sexo e trabalho seguiram o mesmo rumo da vida livre.

Ao sexo foi dado o poder de ser individualizado e executado a qualquer hora e lugar, ajudado pela pílula anteconcepcional e pelo Viagra. Ao trabalho se abriu a porta do fim da alienação. Nenhum operário teria de ficar vítima da linha de produção: a maquinização de tudo libertou o homem da fábrica opressora. E eis que os trabalhadores vieram todos para a cidade. As empresas os absorveram, sob o regime de pejotização e uberização. Todos ficaram livres e puderam uns conversar com os outros no trabalho e nas redes sociais, que aliás confluíram. O trabalho alienado se encerrou, disseram uns ao outros. A internet é o reino do trabalho, mas também do lazer. Aliás, ninguém mais distingue uma coisa da outra. Ninguém mais distingue pai de filho, todos estão de bermuda jogando vídeo game. Tanto se pediu sexo que ninguém mais se interessa por ele! Tanto se pediu liberdade no trabalho que, agora, para usufruir dela, trabalhamos em tempo integral nos celulares.

O home office é o apogeu dessa situação que, corretamente, chamamos de biopolítica.  O neoliberalismo se fez forma de governo dessa situação toda. O que se pediu em Maio de 68 não era bem isso? Ora, mas podia ser diferente, uma vez que a ideologia empresarial foi a mão que comandou as ações do anjo torto? Hoje, o lema “vista a camisa da empresa” caiu por terra. Você é a empresa, você é o empresário de si mesmo e, portanto, vista a sua própria camisa. Sua pele é sua camisa. O eu soberano está aí para ser curtido. Passe creme no seu corpo e compre um vestido para se olhar no espelho. Algumas fotos para as redes sociais e você está até dispensado de ir à festa, onde você, se fosse, tiraria as fotos.

A “revolução do indivíduo” é o resultado da revolução de 68 que não veio. É seu substituto. E se tudo passa pelo eu, também os fracassos e culpas – que se ampliam – fogem de qualquer resposta sociológica. O discurso psi toma conta das narrativas. A patologização do eu clama por laboratórios que então transformam todo médico ou apresentador de TV ou influencer youtuber em psiquiatra. Quem está aquém disso, que fique com o seu pastor evangélico! Bolsominions servem para ocupar esse lugar no qual a ignorância nomeou de lugar de ignorantes.

Nessa sociedade, finalmente pósvitoriana de vez, de reino do eu, prolifera o único discurso possível: auto-ajuda. Três tipos se impõem: 1) a auto-ajuda tradicional, em que frases amenas e sem conteúdo podem entreter e motivar; 2) a auto-ajuda específica para o eu, solicitando dele o esforço individual; 3) o fingimento de combate da auto-ajuda, que se faz pessimista, blasé, e que pode ser assumido por quem irremediavelmente não pode usar das fórmulas 1 e 2, pois assume o fracasso.

Dizem que o Brasil é o país da piada pronta. Sim, aqui, esses três tipos de auto-ajuda se concretizaram exatamente em três figuras icônicas, respectivamente: Mário Sérgio Cortella, Leandro Karnal e Luis Felipe Pondé. São os meninos do neoliberalismo. Com diplomas universitários no sovaco, eles podem palestrar para a classe média dizendo que seus discursos não são de auto-ajuda, mas filosofia. Como a escolaridade do brasileiro aumentou em anos, é importante um tal aviso. O brasileiro de classe média acha que quem escuta o pastor é burro, e que ele, escolarizado pelas Uniselvas da vida, pode sim escutar filosofia! Não tendo a mínima ideia do que é filosofia, ele engole frases das três figuras citadas que, por sinal, já são vendidas em pacotes conjuntos. Nunca o kitsch foi tão kitsch.

Para vencer falando amenidades às vezes jocosas: Cortella. Para tentar vencer através de concentração no “eu interior”: Karnal. Para assumir que não se vai vencer porque o mundo não vale a pena: Pondé. Houve um tempo que frases a serem catadas eram as frases de gente que sabia fazer frases: Millôr Fernandes. Mas o que tem prá hoje é isso aí que as editoras resolveram vender no interior da Casa do Saber.

No mesmo período de publicação de O capital, em meados do século XIX, Samuel Smiles publicou o livro Self-Help. O livro trazia regras para o operariado viver bem no capitalismo. Um manual de aceitação do liberalismo. Foi um sucesso de vendas. A auto-ajuda do neoliberalismo é um pouco mais plural que a do pioneiro Smiles. Todos podem ter o seu quinhão e, ainda por cima, manterem-se suficientemente incultos de modo a acharem que os livros dos personagens brasileiros citados realmente têm a ver com o que se faz na academia. A mídia reproduz tudo isso. As livrarias se deixam enganar e colocam Cortella, Karnal e Pondé na sessão de filosofia! E eis que o brasileiro acredita, então, que se ele tiver uma palestra desse pessoal em seu currículo, ele virou gente. Por fim, a Tábata Amaral pode aparecer de público com um livro deles nas mãos para dizer: eu fui pobre, mas vejam agora, eu estudei e estou lendo … filosofia! Os partidos clandestinos, financiados por banqueiros, alimentam esse tipo de lacraia, a deputada-leitora-jovem.

Para aqueles que desejam um discurso aparentemente diferente, há os cursos de como aprender a ser oprimido, negro, regaçado, fodido. Nesse caso, é a auto-ajuda fornecida por Djamila Ribeiro e pelo seu parceiro Sílvio de Almeida.  O identitarismo é fruto do neoliberalismo, e permite que a auto-ajuda até tenha alguma conotação política, aparentemente de esquerda. No entanto, isso cabe no campo da literatura motivacional tanto quanto a dos três palestrantes icônicos do momento. Todos eles são olhados com curiosidade pelo padre Fábio de Mello, que quer manter ainda o seu filão. A verdade é que mataram só Odete Roitman, Maria de Fátima está até hoje perambulando por aí.

Paulo Ghiraldelli, 64, filósofo

3 comentários em “Meninos do neoliberalismo produzindo auto-ajuda”

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