“Não há educação neutra”. Há quem ache essa frase banal. Mas quem acha isso, sabe pouco de ciências humanas e filosofia. A frase é de Paulo Freire, e ela não está perdida, solitária. Pertence a um texto, claro. Mas antes de tudo pertence a um conjunto de narrativas que faz 25 séculos que nos perturbam. A discussão é filosófica. Hoje em dia, a denominamos de epistemológica.
A educação é uma prática. A pedagogia é a sua teoria normativa. A filosofia da educação é a sua teoria mais ampla, menos normativa. Eis a tríade: educação, pedagogia e filosofia da educação. Elas se colocam conjuntamente no Ocidente. Não há educação sem alguma pedagogia e não há pedagogia sem alguma filosofia da educação. A tríade é irmanada. Portanto, falar em neutralidade sempre é alguma coisa que falamos de todos os elementos da tríade. Dizer que não há educação neutra é dizer que não há pedagogia ou filosofia da educação que são neutras. Elas são sempre engajadas, são políticas, são derivadas de interesses, e esse interesses são classistas.
A questão não é banal exatamente por conta da pergunta filosófica: mas há objetividade se não há neutralidade?
O jornalismo trabalha com a ideia, tomada de modo tranquilo, de que para existir alguma objetividade é necessário “ouvir os dois lados”. Ouvindo os dois lados (só há dois) e sendo honesto em reproduzir o que falaram, eis que se conseguiu trazer uma boa narrativa para o telespectador ou leitor ou internauta. Há aí, para o jornalismo, ao final do processo, um texto que poderia ser chamado de objetivo. O objeto foi apreendido sem que o sujeito o tenha contaminado com seu próprio olhar ou cheiro. Hegel não acreditava nessa possibilidade assim, de modo fácil.
Essa posição dos jornalistas não é a posição dos cientistas e filósofos. Os primeiros não escutam lados, mas criam no laboratório situações adrede preparadas que devem ajudar as hipóteses a serem falseadas, negadas etc. Filósofos escutam narrativas e criam narrativas variadas, ou para ampliar o perspectivismo (Nietzsche e Rorty) ou para ver se os fundamentos se sustentam (platônicos em geral). No último caso, os filósofos estão mostrando que eles possuem muitas dúvidas a respeito da possibilidade do conhecimento objetivo.
No marxismo de Paulo Freire a posição epistemológica é complexa, mas é possível de ser explicada de modo simples. O olhar do pesquisador é olhar de classe, está sempre imbuído de uma visão interessada e interesseira. Se tal classe não é a dominante, ela tem mais chances de não produzir ideologia, e assim buscar uma visão acurada do mundo em contraste com a visão da classe dominante, sempre afoita no trabalho de conservação do status quo. Então, uma classe menos afeita à necessidade de produzir ideologia, pode, exatamente pelo seu interesse classista, ver melhor que a outra. O pesquisador que adota sua visão tem mais chances de estar próximo da objetividade, exatamente por não ser neutro. Nesse tipo de marxismo a não neutralidade não atrapalha a objetividade, ao contrário, ela é sua garantia.
Essa epistemologia marxista de Freire, ou que em alguns momentos foi adotada por Freire, tem mil e um adversários e críticos. Mas, de modo algum, a crítica a ela pode ser banal. Mas todos reconhecem que banal ela não é. Exatamente por isso a frase de Freire “não há educação neutra” não é banal. Ao contrário, ela abre espaço para um vespeiro filosófico imenso. Pondé quis insinuar que a frase é banal, em texto em que tentou sujar Paulo Freire, lá em 2015 (Folha de S. Paulo). Mas ocorre que Pondé não sabe do que fala. Falta-lhe formação filosófica mais sólida.
Paulo Ghiraldelli, 64, filósofo.
Maravilha Professor!!
Adorei seu texto e vamos continuar nossa luta contra as classes dominantes.
Não é possível comentar.