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O Ken virou Jéssica e não Barbie

Rody é o Ken-humano. Bem, isso só até 2020. A partir daí Ken, como ele mesmo disse, se descobriu Barbie. E então resolveu colocar fim ao problema que já vinha enfrentando há anos, o de não conseguir ser o Ken-humano. Passar de Rody para Ken não havia resolvido o seu problema! E então Rody assumiu seios e se colocou sob novas operações, inclusive a retirada do pênis. Emergiu como Jéssica. Agora sim, tudo funcionaria corretamente! Quase. Rody tinha mais coisa no inconsciente!

Jéssica, ex-Rody, resolveu ser mãe. Mas continuou com a imaginação fértil de Rody. Ela colheu seus espermas e passou a investigar se podia ser mãe por meio de um útero implantado nela mesma. O que queria era uma quase autofecundação. Na Europa há a possibilidade de uma tal operação, ainda que não exista boas garantias de êxito.

Jéssica é uma “mulher trans”, segundo a terminologia atual. Faz parte do que convencionamos chamar de “comunidade LGBTT”. Muitos acreditam que Jéssica é uma figura a mais no projeto do destino, o de eliminar a normatividade binária no campo do gênero. Não será assim tão fácil. Por incrível que possa parecer, os problemas do amor serão resolvidos antes. Pessoas amarão pessoas, dando pouca importância ao sexo quanto à sua conformação anatômica. Pênis ou vagina não serão delimitadores prioritários. No entanto, a normatividade binária construiu aparências bastante significativas. Essa normatividade continuará nos brindando com o padrão “homem” e “mulher”. Cabelereiros unissex ou moda unissex dos anos setenta tiveram seu auge para, em seguida, desaparecerem. Tudo se diversificou, mas sobre a base da normatividade binária. A linguagem, a moda e, enfim, o que vier a ser mais inteirado com o lucro capitalista, prevalecerá. O binarismo tem seu lado fraco, mas ainda dá lucro em muitos campos.

Pessoas amarão pessoas. Já é assim. Mas o fantasma do vestuário, dos gestos corporais e até mesmo da predisposição para certas aptidões intelectuais cobrará sua taxa de retorno ainda durante muitos anos. Talvez seja um fantasma eterno! Todavia, será um fantasma incapaz de assombrar alguém.

Isso tudo nos leva à pergunta: por que existe “homem” e “mulher”? Freud deu uma resposta. Mais recentemente Judith Butler deu outra. Ambas têm a ver com o modo como contamos a narrativa ficcional do “tabu do incesto”, mas não vou enveredar aqui por este tópico, deixando-o para o apêndice sobre Butler. Aqui, mantenho a atenção sobre a história de Jéssica.

Rody não mais existe, ele foi repaginado como Jéssica. Até aí, nada de estranho. No entanto, a história tem algo de curioso se observamos o modo como Rody acabou chegando a ser Jéssica. Ele acessou um caminho oblíquo. Ao invés de ir de Rody a Jéssica, ele pegou um desvio, o de se passar um tempo como Ken, um boneco. Por que Rody agiu assim?

Não teria Rody buscado liberar-se da condição humana exatamente para, então, se permitir ser manipulado o necessário para saltar para uma nova condição humana?

Jessica não é fruto de Rody, mas do Ken-humano. Rody primeiro se fez boneco, que é algo manipulável, um brinquedo. Uma vez tendo se transformado em alguma coisa que, por definição, pode sofrer manipulações de todo tipo e, enfim, servir de elemento lúdico para crianças, o seu corpo estaria perfeitamente autorizado a dar o salto mais difícil: mudar de sexo. É como se Rody tivesse precisado reificar-se para além dos processos corriqueiros de reificação, assumindo ele próprio aquilo que o capitalismo faz por si mesmo. Se o fetiche da mercadoria tem, como outra face, a reificação dos humanos, então que possamos, em última instância, nós mesmos encaminhá-lo. Ser boneco por si mesmo. Aí estaria a ordem capaz de concorrer com a ordem pré-dada para a condição humana de todos nós sob o capitalismo, a de ser inexoravelmente um boneco.

Essa tese ganha força quando de seu passo final: Jéssica quer procriar por meio de seu próprio espermatozóide e em seu próprio útero. O narcisismo aqui é bem visível. Não poderia ser diferente. O amor-próprio é saudável, embora o narcisismo não. Mas o narcisismo não deixa de ser uma exacerbação do amor-próprio em um sentido caricaturesco. Ora, só mesmo fortalecido pelo  narcisismo é que Rody poderia se transformar em Jéssica, pois essa transformação se fez por um caminho esdrúxulo: primeiro Rody teve que se desumanizar, torna-se Ken, um brinquedo (de menina!), para passar então a ser Jéssica, que não se pretende ser boneca, mas humana. Jéssica não é Barbie. A caricatura acabou. Ou, ao menos no propósito de Rody-Jessica, a história terminou por aqui. Jéssica deve seguir um caminho solitário. Ela com ela mesma. Seus espermatozóides com o seu útero. O projeto começou necessariamente solitário e só poderia ser encetado solitariamente, segundo um forte autocentramento. Nesse caso especial, o narcisismo se fez necessário. Ele se mostrou como a única porta aberta para que Jéssica pudesse ser Jéssica, e não Barbie. Um passo fora do narcisismo, um olhar que não aquele olhar para o seu próprio umbigo, e Jéssica poderia ser tomada socialmente, e então vista segundo olhos alheios, que iriam batizá-la antes de tudo como Barbie. Caso isso viesse a ocorrer Rody perderia tudo, voltaria a ser um boneco.

Até aqui, temos a fenomenologia do processo. Mas há perguntas que, para serem respondidas, clamam por alguma teoria a mais. A pergunta que salta aos olhos é a seguinte: por que Rody precisou seguir esse itinerário? E mais: como que isso, afinal, poderia dar certo?

Rody nada fez senão acompanhar com o seu corpo o que ocorre com todo e qualquer produto que se transforma em mercadoria. Ou seja: todo e qualquer produto em uma sociedade de mercado capitalista que preenche todos os poros sociais. Como produto, a mercadoria tem valor de uso, utilidade para alguém. Mas se o destino do produto é ir ao mercado, se transformar efetivamente em mercadoria, ele ganha valor de troca. Como qualquer outra mercadoria, passa realmente para o mundo da abstração. O mercado realiza duas operações: sua função como mercado capitalista é fazer o acúmulo do capital, e não produzir coisas e servi-las aos compradores; além disso, torna o mundo todo, que ele crescentemente abarca, em uma grande equação, uma enorme tautologia. Tudo é igual a tudo, uma vez que tudo é igual a dinheiro. Essa abstração permite que a mercadoria se exponha, especialmente como imagem, para os homens que a produziram e que, nessa situação, a tomam como espectadores passivos. Essa abstração que ocorre no âmbito real, e não apenas na cabeça dos homens, dá chance para as mercadorias se apresentarem por meio de quaisquer imagens, completamente distantes da imagem que lhes seria mais própria, o seu retrato, por exemplo.

O que está dito acima tem a ver com o que foi proposto por Guy Debord em seu célebre Sociedade do espetáculo. Todavia, acrescento algo a mais. Para deixar as coisas mais claras, retomo a tese de Debord e em seguida passo para a minha interpretação, já no interior da história de Jéssica.

Para Debord o que faz com que tenhamos um mundo de imagens que se comportam como espetáculo é antes de tudo o espetáculo da própria mercadoria. Ela sai das mãos de seus produtores para voltar para todos nós como algo estranho, que toma decisões por nós, que nos submete. A mercadoria aparece fetichizada e realmente nos dá ordens. Ela se torna sujeito e faz de nós todos, antigos sujeitos, os objetos. O morto comanda o vivo na medida que se coloca como vivo e nos torna mortos. Todos que foram comprar uma calça sabem que no passado dávamos ordens para a peça que não servia, colocando-a sob a custódia da tesoura de uma costureira. Hoje, ao contrário, é a calça que nos coloca na mesa de operação ou na academia para emagrecer. Só a levamos para casa se ela assim o permitir.

A mercadoria nos faz sermos meros espectadores, e isso pelo modo como o capitalismo nos separa da produção. Uma vez que nos tornamos espectadores, passamos a agir assim sob toda e qualquer circunstância. Tudo para nós faz sentido se é, então, espetáculo.

Até aí, nada além do marxismo de Debord. Ponho minha colher nisso tudo ao lembrar que a   espetacularização corre em igual passo com a abstração. O mercado é o reino da abstração. Ele iguala as coisas segundo o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção, e este, por sua vez, e essa mensuração se expressa segundo uma mercadoria que se põe como equivalente universal, o dinheiro. Ora, essa abstração que se dissemina por toda parte é que permite, de fato, que tudo possa ser agregado a tudo sem qualquer limitação. O espetáculo da mercadoria se torna o espetáculo da mercadoria na mídia. Nesse mundo sem particularidades, a imagem da mercadoria pode deixar a cena e ser substituída por qualquer outra imagem. Essa segunda imagem está longe de fazer referência a qualquer utilidade realmente inerente à mercadoria.

Um exemplo pode esclarecer. Chico Anísio era o garoto propaganda das Havaianas. Ele aparecia na TV para dizer “Exija as legítimas Havaianas, as que não soltam as tiras e não têm cheiro”. A referência era a utilidade inerente às chinelas como chinelas. Hoje, as Havaianas são apresentadas sem qualquer referência às suas qualidades como chinelas. A propaganda se dá ao luxo de colocar chinelas Havaianas coloridas que se ligam a estados emocionais ou estados de sorte. A garota propaganda, nesse caso, é Isis Valverde. Ela pega várias Havaianas e então é interpelada por uma amiga que pergunta “Pra que tantas?”. Isis nega que esteja exagerando, pois cada uma teria uma função: “Branca, para não faltar paz, amarela, para não faltar dinheiro, azul, para não faltar serenidade, verde, para não faltar esperança e” – completa – “vermelha, para não faltar sexo”. As duas riem e deixam a loja. O vendedor, então, se aproxima do rapaz e pergunta se pode ajudá-lo. Rapidamente, ele responde: “Quero 10 pares de vermelha, 39”. Toda imagem de uma mercadoria pode se ligar a qualquer imagem que o publicitário venha a desejar, fora de qualquer referência a alguma utilidade real inerente ao produto.

O processo no qual Rody se meteu para se transformar em Jéssica seguiu um itinerário possibilitado exatamente pela abstração reinante em nossa sociedade, em que as imagens perdem as referências esperadas e podem ser associadas a qualquer coisa. Isso abre um leque inaudito de possibilidades para a publicidade. Tornando-se boneco manipulável, mera peça de brinquedo produzida em série, Rody fez de seu corpo algo tão abstrato quanto qualquer outra mercadoria. Uma vez assim, pronto apenas para ser visto não como alguém singular, mas apenas uma abstração, qualquer outra imagem a ele agregada passou a ser viável e legítima. Inclusive a perigosa e até então proibida imagem de mulher. Jéssica foi acoplada ao corpo de Rody uma vez que Rody já havia se tornado uma abstração, o boneco Ken que nada é senão ele próprio abstrato como qualquer mercadoria. Assim, Rody desapareceu de vez quando Ken também sumiu. A mulher nascente ali, Jéssica, fincou pé.

Mas a história não termina aí. Jéssica não é uma mulher comum. Seu aspecto continua sendo o de um exagero.  Os seios são volumosos demais, os lábios estão grossos e, enfim, o desejo de fecundar a si mesmo não é nada corriqueiro. Desse modo, Rody pode não ter conseguido seu intento. Todavia, para entender esse segundo passo do processo de transformação de Rody, pode ser útil lançarmos mão das teses sobre hiperrealismo de Jean Baudrillard.

Baudrillard participa da tese, já bastante comum entre filósofos contemporâneos, de que vivemos em um mundo desreferencializado. Debord anuncia isso. Em outro escrito mostrei a desreferencialização da linguagem e do dinheiro, levando em consideração os trabalhos de Quine, Davidson e Rorty, de um lado, e a visão sobre o semiocapitalismo de Franco Berardi, de outro. Sabemos que o próprio Berardi veio beber na fonte de Baudrillard a respeito desse assunto. Nesse caso, a ideia básica é a de que o próprio processo de abstração é desreferencializador. As âncoras do mundo perdem seu peso. O que é chamado por real não é o evidentemente real para todos, nem mesmo para uma maioria que possa comungar os mesmos ideais. Muitos chamaram a isso “condição pós-moderna”. Uns avaliaram isso como ideologia, outros avaliaram como justa condição de nosso tempo. Mas o reconhecimento da desreferencialização, independente de avaliações, se fez algo capaz de ser notado por todos. Em um mundo assim, como sobrevivemos? Qual a reação do real diante dos que vieram a dizer que ele não tinha mais como se firmar?

A reação do real foi ele se transformar em hiperreal. Em busca do que seria a efetiva realidade, capaz de sobreviver acima de perspectivas e, mais, sem que talvez precisasse evocar uma âncora, um fundamento, as imagens procuraram apresentar aquilo que fosse o mais real do real. A pornografia parece ser o exemplo mais fácil para entendermos uma tal reação. O erótico mantinha o corpo envolvo de história (ou roupas), e foi tido como o signo do amor engandor. Então, qual seria o corpo real, não enganador? O corpo pornográfico, escancarado em carnes, passou a ser o real, o verdadeiro. Eis a regra da realidade tomada pelo hiperreal: o amor pode ser verdadeiro se conheço todas as partes de seu corpo. Então, sou seu pornógrafo, seu ginecologista, seu estuprador. O hiperrreal é finalmente legitimo de aparecer, como um grito de revolta que quer firmar a realidade.

Jéssica não é a figura da mulher real. Ela é hiperreal. Ou seja, ela mostra uma realidade aumentada. Ela é a vingança do real ao perder status. Por isso, Jéssica precisa apresentar tudo em exagero. E mostrando tudo em exagero, ela precisa também concentrar em si toda a realidade da mulher. Ela quer ser mãe e pai, quer quase autofecundar-se, quer que seus filhos surjam de seu útero. Qualquer amenização desse projeto e o hiperrealismo de Jéssica não se concretizaria e, portanto, o real estaria ali, decaído, sem legitimidade.

Jéssica é o simulacro. Mas simulacro de quê? Se existisse uma Jéssica inicial, uma mulher trans que viesse de Rody, ela poderia ser o simulacro de alguém. Mas Jéssica é a mulher do nosso tempo na medida em que ela é a mulher real, aquela da realidade que se oferece a nós como hiperreal. Nesse sentido, Rody acertou em cheio ao pegar o caminho oblíquo. Ele nem teve ou teria outra possibilidade.