Para Mariangela, que foi picada pela filosofia
O que é pensar? Uma das primeiras respostas históricas a esta pergunta veio de Platão: “pensar significa falar consigo mesmo”. Acentua-se nessa resposta o que chamamos hoje de reflexão. Sem dúvida, essa característica, a da reflexão, é o que esperamos da atividade do pensar. Quando alguém faz algo que cabe alguma admoestação, podemos comentar: mas você não pensa? Você não pensou? Com isso, queremos dizer: você não refletiu. Você não parou para pensar. Ou então, perguntamos: você não tomou consciência?
Hoje em dia, nossos avanços científicos qualificam o pensamento como uma atividade cerebral. A ciência faz mapas dos impulsos da movimentação do cérebro e os associa a movimentos corporais, atitudes e falas do proprietário do cérebro. Faz essa associação por meio de experiências em que o proprietário do cérebro repete uma atitude determinada enquanto o observador do cérebro, em laboratório, identifica a movimentação dos impulsos elétricos deste. A ciência também estuda cérebros danificados em associação com movimentos, atitudes e habilidades perdidas, desaparecidas. Cada vez mais, falamos do cérebro como se ele fosse o responsável exclusivo pelos nossos pensamentos. Nisso, não há mistério. A correlação que se faz entre atividade cerebral e nossas atitudes se tornou algo banal. Todavia, ainda nesse caso, há mistérios.
O que nos é nebuloso, ainda, é como que impulsos elétricos se transformam em pensamento. Nesse quesito, avançamos menos. Muito do que os filósofos do passado falaram sobre a relação entre matéria e espírito ou entre corpo e alma, no campo do que se chamava metafísica, pode ser atualmente assunto da filosofia da mente. Seja como for, nessa área, o enigma permanece.
Todavia, o problema não é só esse. Os cientistas das neurociências às vezes não distinguem algo que é fundamental para a filosofia. A atividade do cérebro pode ser mapeada e o pensamento que eles associam a tais atividades pode ser estudado objetivamente. No entanto, o pensamento se dá em um âmbito que não chamamos de cérebro, mas de mente, e nesse caso há uma experiência com cada pensamento. O agente ou sujeito que tem um cérebro, no qual o pensamento nós dizemos que se aloja, vivencia o seu próprio pensamento, e essa sua experiência com o pensamento é somente sua, individual, e acaba criando aquilo que chamamos de subjetividade, ou ao menos o que chamamos de vida mental.
Desse modo, toda a pesquisa em neurociências é uma pesquisa que tende a ser algo do âmbito da medicina comum, enquanto a experiência do pensamento, aquela que se dá em um sujeito ou forma um sujeito, é campo de estudo de um outro tipo de medicina, a chamada medicina da alma ou filosofia.
O beijo traz sabor, cheiros, arrepios, imaginação e até nos joga para conjecturas, desejos de aventura ou medo. Isso tudo junto se faz na mente como pensamento. Posso dar um beijo na minha esposa, e então o meu cérebro, neste momento, emite sinais que seriam iguais ou semelhantes aos emitidos quando a beijei na semana passada, ou ao menos localizados no mesmo lugar dos sinais deste mesmo cérebro. Pode acontecer dos meus sinais serem bem parecidos que os do cérebro de outra pessoa, quando o seu proprietário beijou sua esposa. A experiência que eu tive do beijo irá compor a minha subjetividade, enquanto o beijo do outro irá compor outra subjetividade. Elas serão algo que não irão se oferecer a uma comparação. São experiência singulares, e criarão sujeitos singulares. O cérebro não é o sujeito. Nem a subjetividade é o sujeito. Inclusive porque a subjetividade irá guardar um campo do pensamento que pode não estar sendo focalizado na hora do beijo, algo que não será consciente.
Há um fluxo de pensamentos que corre a mente em cada situação. Podemos até dizer que a mente nada é senão esse fluxo de pensamentos. Um fluxo intenso e complexo ocorre quando se beija. Esse fluxo depende dos impulsos elétricos na rede de neurônios. Todavia, nada sabemos sobre como que esses impulsos se transmutam nesse fluxo imaterial chamado pensamento. Também nada sabemos sobre o inverso, como que o pensamento move elementos do cérebro e este, por sua vez, comanda movimentos específicos do corpo. Há então aí, em geral, a postulação de um eu, um sujeito que é o sujeito da experiência do pensamento, algo que difere do pensamento enquanto apenas produto de impulsos elétricos cerebrais. Assim, dizer algo do cérebro não é dizer algo da mente, e dizer algo do pensamento não é dizer algo da experiência do sujeito que abriga pensamentos.
A relação entre o eu e o pensamento gera ainda um outro problema. É que a consciência do pensamento não significa que se esteja consciente de ser o sujeito pensante. Talvez seja o que ocorre com as crianças. Elas podem saber que moveram uma perna, mas até certa idade o bebê não reconhece que este eu que moveu a perna é o seu eu. A perna ainda não é assumida como a sua perna.
No mais, no adulto, o pensamento aparece como sendo pensamento que corre no fluxo de uma mente que é um eu, um sujeito, mas isso não significa que um tal pensamento assim se realizou por decisão deste eu. O sujeito pode muito bem não ser o eu produtor ou criador do pensamento por decisão própria, mas um sujeito que se sujeita ao pensamento. O pensamento surge sem o comando mental. O mental é invadido pelo pensamento que o faz ser o mental. O pensamento funciona com vida própria. A nossa vontade não comanda o que pensamos, senão por um grande esforço. Assim, sou um eu que antes formado pelo pensamento do que um eu que forma pensamentos.
Quando penso posso dizer que sou eu quem pensa, e posso também dizer que o que penso é a mim mesmo como pensamento. Se assim faço, me coloco como repetindo a experiência moderna de Descartes: eu penso, eu sou. Eu sou algo pensante. Sou um Cogito, um me cogitare, isto é, um pensamento que se pensa.
O pensamento em geral pode ser visto como sendo as percepções, a memória, a imaginação e o trabalho da razão. Hierarquizamos este último em três graus. A razão nos faz conceber, nos faz gerar proposições e, enfim, nos faz raciocinar.
Quando concebemos estamos conceituando. Abstraímos características particulares para ficarmos com a características gerais e necessárias. Por exemplo, podemos pensar em José, um vizinho nosso, e evocá-lo por uma representação mental da memória, criamos uma imagem dele em nossa mente. Nisso, não concebemos nada. Agora, se saímos de José como homem determinado para concebermos o homem, então temos de abandonar a imagem mental para ficar no conceito de homem, reunindo neste tudo que pode e deve nos fazer comunicar a outros, por meio da linguagem, o que é o homem. O pensamento conceitual, portanto, pressupõe a linguagem. Logo em seguida, podemos falar a respeito do José como um homem, e nesse caso temos o pensamento proposicional, que implica em relações: “José é homem”.
Por fim, se temos duas proposições e as relacionamos de um modo peculiar, temos o raciocínio. Assim: Todos os homens são mortais; José é homem; e, portanto, José é mortal.
O mais interessante aqui é que quanto mais o nosso pensamento se eleva na hierarquia, mais ele escapa do eu individual para ir para um sujeito coletivo, um nós. O que é do âmbito da concepção, da proposição e do raciocínio é tudo que é mais universalmente comunicável, está imbrincado com a linguagem, e é em geral o que é produzido por nós enquanto humanidade, e não por cada um de nós individualmente. Nossa subjetividade linguística se articula ao nosso pensamento menos individualizado, menos particularizado, e é esse pensamento que é o privilegiado no âmbito das ciências e, especialmente, na filosofia. Não à toa o filósofo Robert Brandom, um discípulo de Rorty, definiu a filosofia como um “dar e pedir razões”.
Até aqui falei do pensar, do pensamento, levando suas características próprias. Podemos falar do pensar a partir da história do pensamento ou história da filosofia. Nesse caso, temos que nos lembrar que a atividade do pensar não é descrita de modo igual entre os antigos e os modernos.
Platão disse que o pensamento é um diálogo que temos internamente. Mas Platão não descreveu o pensamento segundo o modelo moderno, de quem faz uma reflexão, uma meditação interior. Ele descreveu Sócrates sempre em diálogo com outros. Quando Sócrates evocou algo que poderia parecer o pensamento em forma reflexiva, ele preferiu fazê-lo invocando a ideia de que possuía um amigo em sua casa que fazia perguntas a ele, e que ele, então, precisava fazer tais perguntas para o sofista Hippias para, depois, ir transmiti-la ao amigo.
O diálogo interior aparece com os estoicos. Porém, não com os dramas que colocamos hoje em nossas reflexões. Tais dramas aparecem no diálogo interior de Santo Agostinho, em suas conversas com Deus. Com Descartes é que o pensamento é pensado. E daí em diante as maneiras de pensar o pensamento ou descrever o pensar passaram a se alternar entre a chamada forma da primeira pessoa e a forma da terceira pessoa. No primeiro caso descrevemos nossa reflexão, e no segundo caso descrevemos o diálogo entre duas pessoas. Nos dois casos, estamos descrevendo o pensamento ou o pensar acontecendo.
Podemos passar agora a três outros tópicos a respeito do pensar. O primeiro, aquele que nota quando o pensar é um não pensar. O segundo, que é o pensar que é impulsionado pelo desejo. O terceiro, diz respeito às impossibilidades do pensamento (linguagem) diante da coisa.
Primeiro. Não é difícil encontrarmos com pessoas que acreditamos que não pensam. Há algum fluxo mental nelas, claro, mas o que dizem e o que fazem denotam uma tão extrema pobreza de realizações que ficamos na dúvida se devemos ou não atribuir a elas algum pensamento. Sem dúvida, foi assim que Hannah Arendt viu Adolf Eichmann, o criminoso nazista. Ele respondia somente com clichês e esquemas verbais prontos no tribunal. Ele desde sempre agiu assim. Era desprovido de qualquer capacidade de reflexão. Antes que monstro, ou até mesmo estúpido, sua capacidade característica era a irreflexão (A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 18.)
Segundo. Não podemos esquecer que, em Platão, o que impulsiona o pensamento é eros. O pensamento se desdobra do particular para o universal em um processo que é todo ele erótico. O belo rapaz atrai e então o pensamento se dedica aos encômios e poesias e bons feitos. Mas depois, o próprio pensamento vê que os dotes da beleza também existem em outro rapaz, e em outro e outro. Então, nesse caminho erótico, o pensamento se encaminha para o belo, e não para os inúmeros rapazes belos. O pensamento adentra o campo do universal. Buyng-Chul Han prefere dizer que eros conduz o pensamento pelo inusitado (A agonia de Eros. Petrópolis: Vozes, 2020, p. 91).
Terceiro. O pensamento em sua hierarquia maior é linguagem. Mas a linguagem e, portanto, não apreendem as coisas. O componente semiótico da linguagem espanta a coisa. Quando se aponta para algo e se diz “árvore”, eis que o que é apanhado na linguagem e no pensamento é o signo árvore, e não a coisa. A linguagem ou o pensamento é um afastar-se das coisas à medida que encosta nelas. Comentando que “o antigo nó entre as palavras e as coisas é desfeito” especialmente com o humanismo tardio, Roberto Esposito diz: “a linguagem não só não tem mais condição de desvendar o enigma escondido nelas [nas palavras], mas também tende a torná-lo sempre mais indecifrável” (As pessoas e as coisas. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2016, p. 63).
Por fim, trato da condição do pensar, ou seja, de como que nossa época não é uma época propícia ao pensamento. Essa é uma tese do filósofo Peter Sloterdijk. Para ele, sem um distanciamento, não há pensamento filosófico. Nossa época, isto é, o mundo moderno e contemporâneo, afastou de vez o pensamento contemplativo, colocando em seu lugar a figura do sujeito, o autor, e o engajamento deste de diversas formas em situações diversas que não permitem a teoria pela teoria. Sloterdijk louva a tentativa moderna de Husserl, da fenomenologia, pois esta se faz como esforço do não engajamento que se revela nos juízos.
Nesse sentido, pensar é, já no campo filosófico, para Sloterdijk, algo da ordem do “aprender a morrer”. Trata-se da morte em vida, e não da morte propriamente dita. Não significa ser desinteressado ou apático, mas de exercer o pensar filosófico como o que tem o poder de dar um passo atrás, evitando o engajamento do juízo, ao se estar pensando. Manter distância a respeito do objeto que se tem adiante. Sloterdijk elogia a “epoché” de Husserl nesse sentido. A fenomenologia seria exatamente isso, não emitir juízos apressados, e então poder se dirigir para um campo que busca a neutralidade, a teoria pela teoria. Há um enorme prazer nisso, admite Sloterdijk.
Nesse caso, a filosofia surge como uma atividade de arquivista, que recolhe, não necessariamente julga, exatamente porque quer ficar “com a coisa mesma”, e não com aquilo que em esta se atrela a algo para ganhar sentido, algo como a vida, a história, a política etc.
O pensar filosófico vai aos conceitos, e sendo estes os universais, o pensar busca o “lugar nenhum”. Não se trata de pensar sobre o homem José, que está em um lugar, mas se trata de fazer o pensamento visitar o homem em geral, o conceito de homem, que não encontra lugar determinado. A Academia de Platão, como boa heterotopia na acepção de Foucault, foi o lugar que Platão reservou para os que queria ficar no lugar que daria caminho para o lugar-nenhum. Os da Academia ficavam … pensando. Ao tentarem se banhar com a luz dos universais, estavam exatamente arrebatados pelo lugar nenhum.
Sloterdijk se aproxima de Hannah Arendt, quando ela cita Heidegger falando de Sócrates. Este, para Heidegger, teria sido “o pensador mais puro do Ocidente”. Não escrevendo nada, Sócrates escapou do erro dos que fizeram o oposto. Pois se alguém escreve algo, está tentando se refugiar disso que é o pensamento. E o pensamento é “um vento muito forte”, uma a ventania. Todos os filósofos após Sócrates foram, segundo Heidegger, refugiados da ventania. Todos fizeram literatura, jogaram a filosofia para um tal campo de abrigo (Apud Ghiraldelli, P. Para ler Sloterdijk. Rio de Janeiro: Via Vérita, 2017, p. 259).
A ventania contínua não permite que alguém fique em algum lugar, o tempo todo o pensamento é, então, deslocamento, arrebata o filósofo para o meio, não para as bordas. É a não-parada. É o êxtase heideggeriano, que não se presta ao sentido psicológico químico, mas à situação do pensamento que é um arrebatar que agrupa o passado, o presente e o futuro em um só lugar, o lugar-nenhum.
A frase de Platão sobre o pensamento, deste modo, abre caminho para duas grandes maneiras de tomar o pensamento e, portanto, o pensamento filosófico.
“O pensamento é um diálogo nosso conosco mesmo” – eis a frase platônica, segundo minha adaptação aqui.
Ora, o pragmatismo, através de Robert Brandon e do endosso de Richard Rorty, tira daí a ideia de que a filosofia, sendo diálogo, se faz no “dar e pedir razões”. Nesse caso, a filosofia não é a busca da verdade em um sentido que esta pode ser mais do que o qualificativo verdadeiro, que se aplica a frases. Não é a atividade de construção de conceitos. Ela é caudatária da democracia, que permite a base social para o dar e pedir razões. “Cuidemos da democracia que a verdade se arranja por ela própria” – escreveu Rorty várias vezes.
Se não estamos diante da busca da verdade, que diz respeito ao conceito e ao lugar nenhum, não somos pegos pela ventania, não estamos no êxtase. Estamos fora, portanto, do prazer de se fazer teoria pela teoria, prática pedida por Sloterdijk para o pensar, especialmente para o pensar filosófico. No entanto, Sloterdijk pode evocar a ideia de Platão, do pensar como diálogo consigo mesmo, em um outro sentido. O diálogo consigo mesmo, a reflexão, é justamente uma forma de diálogo. Ora, quando encerramos um diálogo? No campo do pensar filosófico, nunca. Sendo assim, também a fórmula de Platão esconde exatamente a atividade de Sócrates, o de ser levado pela ventania.
Há maneira de conciliar a filosofia dos pragmatistas com a filosofia de Sloterdijk, sem desconsiderar a acepção pelo pensar? Talvez não. Mas porque haveríamos de conciliar filosofias?
Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo
São Paulo, 10/08/2021
sei,
pode ser que sei,
não sei.
Professor, na passagem de Byung-Chul Han, ele fala de “intransitado”, não inusitado. De qualquer forma, daria para haver um intercâmbio entre as palavras?
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