1. Semiocapitalismo
Em uma cena de Carne trêmula, um filme de Almodóvar de 1997, um rapaz desliza diante das pernas abertas de uma mulher dirigindo seu olhar maravilhado para a vulva. Era uma vulva cheia de pelos? Na minha imaginação, claro que sim. Uma vulva só é uma vulva se possui pelos.
No olhar do personagem de Almodóvar, não há como não sacar as questões que poderiam lhe vir à cabeça. O que haveria ali, sob o monte selvagem coberto pela mata volumosa? A caverna? Que beleza era aquela, ali desenhada por Deus como alguma coisa que, formalmente, teria de ser declarada feia? Nenhuma vulva é bela, embora erotizada possa sempre ser o que mais achamos de divino na Terra, ao menos para os héteros da minha geração. Almodóvar, que nunca foi hétero nem por minutos, sempre soube como ninguém lidar com o erotismo da minha geração.
Todos os que conviveram com os filmes de Almodóvar durante os anos oitenta e noventa jamais puderam imaginar que um dia o deus Eros iria ser expulso do nosso paraíso!
Esse tipo de curiosidade sobre a vulva não só morreu, mas ela já nem mais é entendida pela chamada geração Z. O erotismo esgueirou-se sob comando de forças inauditas. Os pelos desapareceram, sob as ordens da higienização capitalista desconhecida pelo Cupido. Ele próprio, Eros ou Cupido, perderam a pontaria da seta da paixão, uma vez que todos se tornaram amigos, ou crushes, mas jamais amantes. Nas camadas populares o sexo ainda vive, mas a duras penas. As igrejas evangélicas e o feminismo emburrecido há muito já o tirou da gostosa jocosidade que permeava a “filosofia do para-choque de caminhão” e as paredes das oficinas dos borracheiros. A revista Playboy desistiu. Ela fechou as portas. Percebeu que só a pornografia simbolizada pelo êmbolo, sem qualquer erotismo, teria espaço no mundo do semiocapitalismo.
O semiocapitalismo é exatamente isso: a vitória da conexão sobre a conjunção – assim ensina Franco Berardi. A conjunção necessita de corpos reais, com pelos e dobras, capazes de sussurros que se enlaçam em tramas e dramas de vida. Nesse caso, os corpos apresentam dificuldades de se adaptarem uns aos outros, mas nunca deixam de tentar e acabam conseguindo se envolver em laços afetivos. Diferentemente, a conexão cria o que certos autores têm chamado de “subjetividade maquínica”.1 Ela se faz na interface do homem-máquina, alimentando o fluxo da rede midiática, em especial da internet. Essa subjetividade imita o dinheiro desrreferencializado2 que corre na rede de maneira imediata. Ela é o fruto da transformação da subjetividade humana que, nesse processo, se adapta à pobreza do algoritmo, exatamente para poder haver a conexão. O homem deve ficar igual à máquina do Google para ser ainda algo vivo. Deve livrar-se do corpo vivo e se conformar ao corpo liso. O algoritmo é liso, ele não permite a rugosidade que há em caminhos de diversidade opcional. A estética do liso que predomina na arte atual nos faz notar o espírito de nossa época.
É impossível não citar Berardi aqui:
A geração videoeletrônica não tolera os pelos nas axilas e os pelos pubianos. Para que as superfícies corpóreas possam ter interface em conexão, é preciso uma perfeita compatibilidade. Libertar-se dos pelos supérfluos. Geração glabra. A conjunção encontra seus caminhos por meio dos pelos e das imperfeições da troca. É capaz de leitura analógica, e corpos heterogêneos podem entender-se, embora não disponham de uma linguagem de interface. A destruição da película sensível inter-humana está relacionada ao universo tecnoinformativo, mas também à disciplina capitalista da corporeidade.3
Berardi, F. Regina. Depois do futuro. São Paulo: Ubu Editora. Edição do Kindle, p. 140.
Acordamos no século XXI e constatamos que, pelo que tudo indica, não conseguimos mais viver sem o Google ou algo similar. Ele é a maneira de viver, e não mais um instrumento. A plataforma Google nos dá acesso ao que é o nosso mundo, o nosso trabalho, o nosso sustento e a nossa diversão ou psedodiversão. Ele simplifica tudo, nossa linguagem e desejos, pois o algoritmo que nos é acoplado à mente reduz a linguagem e os afetos. A ordem é esta: cortar arestas, tirar nossos pelos, eliminar o tato sobre a rugosidade e assim completar uma tarefa que possa afastar de nós tudo que o erotismo brindava, nos colocando como seres corporais. A ontologia que tínhamos virou pó diante da ontologia da rede que impõe a conexão sobre a conjunção.
Muitos não entendem isso, pois imaginam que o Google não é um criador de subjetividade, mas apenas um instrumento a serviço de um eu humano autônomo, reinante, que poderia se relacionar com ele como quem se relaciona com um martelo ou uma chave-de-fendas. Mas a relação com o instrumento não se parece com a relação com a máquina. E a relação com máquina computacional e associada à Internet é ainda mais diferente que todas. Ela não molda subjetividades, ela não apenas modula o eu, ela recria a subjetividade. A subjetividade maquínica é a subjetividade do presente, que não abriga um duplo eu-máquina, mas cria o fluxo na grande rede comunicacional que garante o ir e vir de informação e dinheiro.
Um exemplo simples: não estamos mais de posse de nenhum sentimento no fluxo das redes comunicacionais, pois respondemos a tudo com emoticons, que estão bem longe de serem a verdade de algum sentimento de quem tecla – ao menos inicialmente. O semiocapitalismo é a vitória do excesso de semiótica na derrota da semântica. Muitos símbolos sem qualquer significado. Os pelos corporais da erotização eram símbolos com muito significado. O corpo depilado significa algo? Ele é apenas o simbolismo do manequim de vitrine.
Outro exemplo: quando usamos o Google, somos corrigidos em nossa língua por ele. Acreditamos que ele está nos prestando um serviço, nos ajudando na gramática e na ortografia. Sim e não! Ele está mantendo nossa escrita dentro de padrões simples que possam ser adaptados ao mundo dos algoritmos. A linguagem que cria metáforas, a linguagem poética, não é bem-vinda na residência do algoritmo. O semiocapitalismo é, como já foi dito, o regime de ampliação da semiótica e do enxugamento da semântica. Em alguns casos, ocorre que a semiótica não se amplie, mas o efeito continua no mesmo sentido, uma vez que é a semântica que perde vigor.
O semiocapitalismo não vem pela maquinização, mas pelo capitalismo financeiro que exige a maquinização do modo como ela se fez. Toda a simbologia das telas que aparecem diante de uma pessoa que lida com aplicações financeiras não possui significado humano, é algo produzido pela máquina para que a própria máquina faça a leitura e indique o que seriam as tendências do mercado. Nada está nas mãos de humanos em se tratando de bilhões de dólares no fluxo das redes. Acreditar que há um humano que “sabe investir” é só para quem acredita em youtubers que dão curso sobre finanças e bolsa de valores e, além disso, também acredita em coelho da Páscoa.
Não devemos tomar as alterações sofridas em nossa época como fruto exclusivo da tecnologia. Nem a perda de interesse diante da vulva tem a ver com o mero excesso de exposição de nós todos diante da pornografia fácil da Internet. Uma tese que vai nessa direção, às vezes é apenas moralismo fora do tempo. É notável que certas performances de jovens na cama, quando são obrigados ao sexo, impulsionados pelo que restou do costume, nada é senão fruto de uma má educação feita na base da rapidez, luta e penetração, uma imitação do trabalho de um êmbolo. (Carícias? Nem pensar!). Todavia, colocar a responsabilidade disso na Internet, sem saber o que ela faz e sem saber que ela é o capitalismo, e não um apêndice dele, pode ser um erro interpretativo fatal. A internet é o núcleo do biocapitalismo.
Semiocapitalismo – o nome é para que possamos lembrar sempre que na explosão de semiologia da mídia, em especial agora a da Internet, temos um excesso de símbolos e uma pobreza de semântica que funciona como o próprio capitalismo funciona e se desenvolve. Este, pelo império da mercadoria e, agora, pelo império do dinheiro, ambos representando a forma-valor, empurram todos nós para uma vida rarefeita, uma abstração que se efetiva no real. Tudo é reduzido ao equivalente. O mundo se torna, na prática, uma grande tautologia. Nada mais comporta detalhes singulares. O particular se exacerba, mas não o singular. Não à toa a equação algébrica é um dos símbolos da nossa época. Não à toa a busca de identidade se tornou a busca do idêntico, de modo que o identitarismo passou a dar o tom do neofascismo desses nossos tempos. Pois o xenofobismo inerente ao neofascismo é exatamente isso: uma preferência exclusivista pelos iguais.
Esse avanço do identitarismo, completamente desprendido das origens de luta por direitos de minorias, e já acoplado ao neoliberalismo que leva à prática da promoção pessoal, é primo da geração glabra, do mundo liso, da estética criada pela conexão em detrimento da conjunção.
Ter pelos no corpo e se excitar com eles no corpo alheio depende da singularidade que emerge de corpos diferentes e estranhos que se encontram efetivamente, e que se procuram para o amor. Mas a geração Z é incentivada, pelo identitarismo, a só procurar o que é igual. E de fato o igual é de fácil encontro. Nada é singular e estranho em um mundo em que todos devem se igualar ao algoritmo para poderem ser sugados para o interior do Google e adentrar na vida. Sem isso, sem estar no monopólio do Google, não é possível cumprir o desiderato de hoje: ter o direito de escolher quem vai nos explorar. Entrar no Google é entrar no mundo do crédito (e, portanto, da dívida) e do trabalho gratuito, é estar no biocapitalismo. Neste, não há lugar e momento específico de exploração de mais valia. A mais valia é social, ela é extraída de toda a sociedade e durante todo o tempo.
2. Pornografização
Esse fenômeno que eu descrevo a partir da Franco Berardi, pode também ser descrito, por outras vias, pela teorização de Byung Chul-Han. Cito: “O polido, o delicadamente limpo, o liso e impecável é a senha da identidade da época atual. É o que coincide nas esculturas de Jeff Koons, no Iphone e na depilação brasileira”.4 Que se note bem essa frase: “a senha da identidade da época atual”.
Essa sociedade que erige a depilação brasileira, o fim da vulva como mistério e reino de Eros, para Byung Chul-Han é uma nova sociedade que se estabelece imperativamente. Essa sociedade é aquela que superou a sociedade analisada por Foucault. Cito Han:
“A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo, entrou uma outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos. Nesse sentido, aqueles muros das instituições disciplinares, que delimitam os espaços entre o normal e o anormal, se tornaram arcaicos. (…) No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados. A mudança de paradigma da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho aponta para a continuidade de um nível. Já habita, naturalmente, o inconsciente social, o desejo de maximizar a produção.5
Han, B.C. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015, pp. 23-25.
Vale aqui ressaltar Deleuze no seu célebre texto (1990) a respeito da superação da sociedade analisada por Foucault. Neste escrito ele vislumbra a nossa sociedade atual, a sociedade da geração Z. Deleuze pede que notemos o dinheiro. Se este se desrreferencia e segue fluxos das redes, devemos notar que fazemos algo semelhante, pois imitamos o dinheiro. Assim, somos todos seres do fluxo e das cifras. Estas são nada mais que as senhas. Temos acesso a inúmeras identidades através de senhas, e com isso adentramos o reino das máquinas. Nelas, ganhamos velocidade incorpórea, mas voltamos a ter algum controle. O controle de todos contra todos nas redes sociais. Se isso é controle de fato, não vem ao caso. O que vem ao caso nessa formulação é que essa sociedade tem um tipo de autocontrole. Ela força o fluxo e a positividade, ao mesmo tempo, ela força o que Han chama de “sociedade da transparência”.
Na sociedade positiva tudo deve ser claro, simples, direto. A ética de nossos tempos pede que tudo seja transparente. Ora, claridade e transparência é o que ocorre em uma sociedade em que a vulva peluda não pode realmente ter vez. Tudo que é escuro e cavernoso é tomado como suspeito e, então, é condenável e condenado. As nuances desaparecem. Na linguagem, então, a poesia cede espaço para as equações. Nada pode ser sutil. O pornográfico soterra o erótico.
Byung-Chul Han faz a articulação entre capitalismo, positividade, transparência e fim do erotismo sob o tacão do pornográfico em um parágrafo eloquente:
O capitalismo acentua a pornografização da sociedade, expondo tudo como mercadoria e votando-o à hipervisibilidade. O que se busca é a otimização do valor expositivo, sendo que o capitalismo não conhece nenhum outro uso da sexualidade. A exposição direta da nudez não é erótica. O lugar erótico de um corpo está precisamente ali “onde se bifurca ou se separa a veste”; a pele que “brilha entre duas bainhas”, por exemplo, entre a luva e a manga. A tensão erótica não surge da permanente exposição da nudez, mas da “encenação de um focar e desfocar” (Barthes), como também a negatividade da “interrupção”, que concede brilho à nudez. Já a positividade da exposição da nudez desvelada é pornográfica, pois falta-lhe o brilho erótico. O corpo pornográfico é raso, não é interrompido por nada. A interrupção cria uma ambivalência, uma ambiguidade. Essa imprecisão semântica é erótica. Assim, o erótico pressupõe a negatividade do mistério e do ocultamento. Não existe erotismo da transparência. É precisamente onde desaparece o mistério em prol da exposição e do desnudamento total que começa a pornografia. Ela é marcada por uma positividade penetrante, incisiva.6
Han, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis: Editora Vozes. Edição Kindle, pp. 32-33.
Tudo tem que estar sob o sol a pino. Pois a própria relação dia-e-noite deixa de existir. Só existe o fluxo que nunca é interrompido. A rede nunca sossega, jamais dorme.7 No biocapitalismo a vida toda é explorada sem os ciclos alternativos de descanso. Todos estão tão a descoberto sem os cotidiano dia-e-noite que a regra é da exposição geral das pessoas, como se todos estivessem em um parque pornográfico extenuante. O viver o dia-e-noite como fizemos até pouco tempo era essencial não para o sexo, mas para o erótico e, portanto, para o amor. Como se sabe do conto de Apuleio, Eros e Psiquê, Eros só vinha na noite e pedi para que Psiquê não usasse qualquer luz. Quando ela o traiu e o expôs a luz, tudo se perdeu. Ela feriu Eros e as possibilidade do amor ficaram comprometidas.
3. Ausência do Outro
A positividade e a transparência pedem a formulação de um ego que encontra diversos outros, mas não o Outro. O negativo não é bem-vindo na sociedade positiva. A dialética em que a negatividade se faz pelo Outro é substituída pela aparente dialética do eu que encontra o diverso. Mas o diverso, os outros, não fazem o eu reflexionar-se como o Outro faz. Desse modo, um eu reflexivo perde espaço para um eu narcísico. Este, não admira nada que não seja ele próprio enquanto eu empobrecido. Um eu segundo tal feitio é bem coadunável com o Google. O indivíduo atravessa a soleira dessa porta virtual que é a plataforma que lhe dá acesso à vida atual. Ele ganha nova ontologia e, então, está no reino do possível de nossos tempos. O possível é o que é possível pelo Google. Nessa hora, a subjetividade maquínica impera e uma subjetividade humana deixa de existir. O Google não funciona como o Outro, mas como um simplificador transformativo que cria subjetividade, mas não enriquece nenhuma subjetividade que pudesse se fazer sem ele.
O Outro do negro é o branco. O homem negro não é negado pelo indígena ou pelo gay ou pela mulher ou pelo anão ou por qualquer outro membro de uma outra minoria. O identitarismo favorece o igual, o idem, a identidade, o inferno do mesmo. Nenhuma negação aparece ao homem negro vinda de tribos urbanas e outras minorias. Mas o homem branco, aí sim, ele é o negador do negro. Ele é o seu Outro. Ele, o homem branco, o obriga à tarefa de incorporação de novos parâmetros, os parâmetros que se colocam com o universal. Pois o universal é o homem branco e suas teses e gostos. Nessa incorporação do Outro, do negativo, o homem negro pode se tornar reflexivo: percebe desejos negados diante de outros desejos, percebe compreensões negadas diante de outras compreensões. Assim atua porque as Leis da Cidade agora estão nele uma vez que o branco está nele, no seu interior, para negá-lo. Então, ele nota nele próprio que as Leis da Cidade pedem uma transformação, de modo que elas possam ser realmente leis universais, e não só a lei do branco. Quando isso não ocorre, o homem negro sucumbe no ressentimento de ter apenas sido vencido. Então, inicia sua reação. Passa ao desejo de absolutização da sua mesmidade diante do branco, mas principalmente diante de outras minorias. O identitarismo é o fim da dialética do Eu e do Outro. Essa dialética é que produz a reflexão e também o amor. Ora, o amor não é o que nasce do diferente, se contrapondo ao amor do igual. O amor é amor quando se faz no e pelo radicalmente Outro. O amor do igual é o identitarismo, o narcisismo e as formas fascistas de viver, que exigem que gostemos apenas “dos nossos”. A xenofobia e o fascismo se nutrem dessa tendência. Identitarismo e fascismo estão próximos, ainda que o identitarismo seja alimentado por um aparente inimigo do fascismo, o neoliberalismo.
Nesse mesmo sentido, o fascismo é o cultivo da pornografia, não do erotismo. A pornografia é definida pela visão do igual e do transparente. O erotismo é definido pela alteridade, pelo Outro, pela visão da nuance que exige a imaginação e que provoca a imaginação. O fascismo jamais imagina, ele é o cultivo do realismo. Ele não permite nuances, desvio, intepretações esquisitas, poesia e todo tipo de manifestação que seja sofisticada. Só o que é simples e que tende ao simplório agrada o fascismo. O algoritmo tem algo de fascista.
Sartre ficou responsável, por conta de seus romances, pela frase “o inferno são os outros”. No texto sartriano, esses outros eram negadores, eram o Outro. Mas agora, parodiando Sartre, teríamos de dizer que o inferno são os mesmos, ou então, o inferno somos nós. O inferno se mostra nisso: estamos nos transformando em iguais, como parte do algoritmo, parte de equação, peça de tautologia. Viramos dinheiro, ou seja, equivalente, e agora imitamos o dinheiro que, enfim, em nossos tempos só existe no fluxo das redes comunicacionais. Nós estamos nessas redes e ao mesmo tempo, enquanto subjetividade maquínicas, somos parte estrutural de tais redes. O fluxo das redes de comunicação é nosso esteio ontológico.
4. Fuga de si mesmo
A sociedade lisa é a sociedade do não atrito, da inexistência do Outro. É, portanto, a sociedade glabra. Resta saber se é uma sociedade ativa mesmo, no que ela própria se anuncia, como sociedade da produtividade. Será? Ou se esconde aí uma sociedade depressiva, com pessoas desanimadas, próximas do estado de depressão. Buyng-Chul Han e Franco Berardi tendem a enfatizar o “cansaço de si” e os inúmeros processos depressivos que se espalham na contemporaneidade, bem coadunáveis à deserotização geral. Por sua vez, David Le Breton agrega a isso a fuga do eu, a busca pelo “desaparecimento de si” em nossa sociedade contemporânea.
Breton vai do suicídio (dos jovens japoneses submetidos à pressão da escola) e da anorexia às fugas organizadas de pessoas que desaparecem propositalmente, que não querem mais suas vidas segundo as regras vigentes. Breton analisa os que buscam entrar em coma pelo álcool e os que brincam de asfixia para escapar por minutos da vida pesada. Faz uma boa descrição do fenômeno hikikomori no Japão, dos adolescentes que se trancam em seus quartos e só se apegam à Internet. Ele segue os passos dos que se multiplicam nas redes sociais em avatares mil, buscando a perda de si na multiplicidade de outros. Também se atém ao Alzheimer e outras moléstias. Fala da fuga pelo sono. Comenta a fuga por meios de heterônimos, como o poeta Pessoa. Também menciona o “desaparecimento no outro” quando analisa os jovens que se inscrevem em seitas terroristas. Todas essas formas de fuga, Breton toma como situações que são “tentações contemporâneas”. Elas se revelam no comportamento do que ele chama de “indivíduo hipermoderno”, ou seja, todos nós:
“O indivíduo hipermoderno é descompromissado. Precisa dos outros, mas também do de seu distanciamento Marcel Gauchet lembra que a cidadania, há alguns anos atrás, era uma conjunção entre o geral e o particular. Cada indivíduo devia apropriar-se do ponto de vista do conjunto, situar-se como um entre outros, em um movimento em que nem um nem ou outro se perdem. Hoje, ‘o que prevalece é a disjunção, cada um tendo de fazer valer sua particularidade junto de uma instância geral, cujo ponto de vista em nenhum momento é solicitado a adotar. Os responsáveis que se arranjem (Gauchet). O vínculo social é mais um dado de ambiência que uma exigência moral. Para alguns, ele é apenas o teatro indiferente de sua projeção pessoal. O vínculo com outros é facultativo, dele deixa de ser um dado evidente. No desenrolar do dia a dia, a maioria das relações são descomprometidas; a televisão, a internet, os chats, os fóruns, o telefone celular são meios de estar presente sem estar, e de interromper uma relação ao seu bel prazer, simplesmente desligando a tela. O Ipod ou as outras tecnologias eletrônicas, mesmo no centro da cidade, são na verdade meios de ‘extinguir a rua’ ou de colocar a presença do outro entre parênteses por um tempo, mesmo no meio de uma conversa frente a frente. O indivíduo contemporâneo mais se conecta do que se vincula: embora ele se comunique cada vez mais, encontra-se cada vez menos com os outros. Prefere exatamente as relações superficiais que instaura ou abandona como lhe aprouver”. 8
Breton, D. Desaparecer de si. Petrópolis: Vozes, 2018, pp. 11-12.
Todas as situações mostradas por Breton lembram que a fuga de si talvez não fosse tão possível se o próprio eu fosse algo mais sólido do que é. Caso a hipótese de Breton possa ser levada a sério, então teríamos de lembrar de como a filosofia tematizou a ficção do eu como sujeito, especialmente teorizadas em Nietzsche. O filósofo alemão culpou a linguagem por essa situação. A linguagem força a relação entre predicado e sujeito e, a partir daí, abre espaço para que possamos substancializar o sujeito. Nietzsche avisa: o sujeito nunca foi outra coisa que não parte da linguagem, mas, por motivos de insistirmos na liberdade, conferimos ao sujeito um caráter humano, uma existência substancial.9 Mas, convém lembrar, o eu ou o sujeito como ficções apareceram antes de Nietzsche, denunciados por Pascal e depois por Hume. Ambos falaram do eu como o que nada é senão camadas de qualidades que se superpõem sem qualquer núcleo fixo. Algo semelhante fez Machado de Assis, no conto O espelho, em que o herói só consegue adquirir uma identidade ao vestir-se de alferes diante do espelho.
As fugas de si descritas por Breton seriam possíveis exatamente porque a identidade é social e sempre frágil, uma vez que não contém nada de sólido. Em todas elas, o elemento que precisa desaparecer ou se modificar é o corpo. A sociedade contemporânea é, em geral, na sua deserotização, o modo pelo qual todos nós fugimos, mesmo os que não se enquadram em qualquer um dos capítulos do livro de Breton.
Todas essas situações em que a deserotização está no centro nos lembram um homem moderno depressivo. A leitura dos textos de Berardi, Byung-Chul Han e Breton, de um modo geral, nos induzem a essa conclusão. E a visão que temos do depressivo, então, pode não coadunar com a do homem moderno. A modernidade, ao menos na história oficial da cultura, é marcada pela hora e vez do homem ativo e, nesse sentido, empreendedor. É difícil achar que o empreendedor seria depressivo. A própria criação da “subjetividade moderna” é um marco, uma mudança de paradigma. Esse novo estágio se caracteriza pela atividade em associação com a busca de felicidade individual. A modernidade é a era do entusiasmo.
5. O histérico como modelo
Talvez Peter Sloterdijk seja o filósofo que compreendeu em detalhes a modernidade como uma ênfase na atividade, diferente de outros que também assim compreenderam, mas de modo mais geral. Seus livros destacaram os processos de formação do eu e do sujeito como processos de “desinibição”.10 A modernidade é a era do homem que se intensifica, que faz experiências, que se cria, que se produz. E isso inclusive segundo um aspecto material. Haveria então, se aceitamos que os autores antes citados tomaram o homem atual como depressivo, uma diferença entre o homem moderno e o homem contemporâneo? Seria o homem moderno o ativo e autodeterminante, enquanto o contemporâneo uma versão deprimida desse herói?
Na linha de Sloterdijk, o homem moderno é ativo, mas ele assim o é, não raro, se mostrando mais como o histérico, e menos com qualquer outro modelo patológico. Ora, se pensarmos bem, o histérico é o homem que se ficciona, que faz da sua vida cenas e teatro. Isso se coaduna com a fuga. Não é necessário entrar em depressão ou em estado de melancolia para encetar a fuga. Não raro, a fuga do corpo sexualizado está associada a uma teatralização de si mesmo. Desse modo, a fuga é um ponto de intersecção do homem moderno ativo, desinibido e entusiasmado, na conta de Sloterdijk, e o homem depressivo, que emerge das narrativas dos autores citados acima. Vale aqui retomar Sloterdijk para a melhor compreensão dessa intersecção.
A leitura que Sloterdijk faz da viagem de Ulisses11, em especial a passagem pelos mares das Sereias, difere da de Adorno e Horkheimer. Nestes, Ulisses é melancólico, se deprime, entra na situação do luto mal resolvido: perde instintos para ganhar a razão calculadora. Essa perda é a perda de algo não bem tratado pelo luto.12 Ulisses, então, cai em depressão. Mas, em Sloterdijk, a passagem de Ulisses lembra o texto de Kafka, que aponta para um Ulisses que finge ter escutado Sereias, e usa da mímica do corpo para enganar os remadores e, talvez, a si mesmo. Os remadores olham para um Ulisses enlouquecido, mas que apenas está teatralizando ouvir as tais sereias que, enfim, não podem aparecer mais para ele. Ulisses já era moderno demais para poder ouvir mitos! Todavia, havia ouvido tanto sobre a tais sereias e tanto havia feito diante dos seus remadores, no sentido de poder ouvi-las e ao mesmo tempo manter sua nau na direção que não os rochedos, que não havia mais como voltar atrás. O melhor seria manter o mito diante dos remadores, homens comuns. Nesse caso, Ulisses se comporta como o histérico.
A fuga de Ulisses é a fuga neoliberal, que tem a ver como o nosso comportamento contemporâneo. Todos nós estamos gritando o dia todo, fazendo gestos, assumindo “emoções” na Internet, como se fôssemos felizes e produtivos. Há um frenesi enganos. Fingimos acreditar na “teoria do capital humano”, que diz que cada um é de fato empresário de si mesmo à medida que pode dobrar o capitalismo, pondo-o de joelhos, através de munição pessoal, a saber: o cabedal de conhecimentos que possuímos, dado que trabalhamos em rede e assim produzimos coletivamente. Ora, se há uma verdade nisso, e de fato ela assim aparece em Marx, nos Grundrisse, ela, no contexto do capitalismo atual, uma vez apresentada como teoria para vencermos o capitalismo, nada é senão ideologia. Somos apenas pessoas que estão fingindo para si mesmas ou para outros, na busca de passar mais um dia insuportável. Podemos acreditar que temos um saber como o anunciado por Marx, o General Intelect, um saber difuso que nos permite, uma vez em rede, ser a base para produzir aquilo que aparece como sendo produto de indivíduos individuais. Mas sabemos o quanto esse saber é apropriado pelas empresas, provocando a escassez, fazendo com que todos nós venhamos pagar por aquilo que todos nós criamos. Nesse sentido, a teoria do capital humano é um engodo ideológico. O frenesi e o entusiasmo do empresário de si mesmo, a figura do homem contemporâneo, não se justificam. São teatro do histérico para consigo mesmo.
O mundo neoliberal das redes sociais, o mundo do semiocapitalismo, nos empurra para essa gritaria ulissiana de fuga e de presença ao mesmo tempo. A teatralização implica exatamente nisso: nossos corpos parecem ser os donos de nossa atuação, que é coletiva, mas quando olhamos de perto, não o somos, e também não temos uma participação afetiva na rede como imaginamos que temos à primeira vista. O dia é insuportável na medida em que, alienados do corpo, somos desejosos de sentir sem poder sentir. Cada trabalho conjunto na rede é regrado pela conexão, não pela conjunção – para usarmos mais uma vez os termos chaves de Berardi –, e é isso que deveríamos levar em conta se quisermos desarmar a teoria do capital humano.
A teatralização de Ulisses, sua marca em direção ao histerismo, é evidente na sua dessexualização, sempre presente nesses casos. Quando Ulisses chega à Ítaca, ele é ele mesmo? Há uma dúvida. Todos em Ítaca ficam temerosos em dar um parecer sobre se Ulisses que chega é o Ulisses rei da Ilha. Poucos o reconhecem. O corpo o denota: cicatriz reconhecida pela ama e cheiro reconhecido pelo cão. Ali está ele, de fato, corpóreo. Tudo indica, então, que as coisas caminhariam normalmente. Ulisses sai do mundo mítico, a Odisseia parece chegar ao fim predestinado, e tudo indica que ele deverá voltar a governar Ítaca e abraçar Penélope. Mas, Ulisses, durante a viagem toda, que nada é senão a viagem em direção à modernidade, foi se deserotizando a passos largos. De volta à sua casa, não é mais homem como o que poderíamos esperar que fosse. Seu prazer não é o de pegar Penélope para o amor, como o que se espera de um marinheiro que volta de uma guerra de vinte anos atrás. Seu prazer é o banho de sangue, a vingança sobre os pretendentes de Penélope. É o ódio e a barbárie que forjam a emergência do fim da viagem de anos. O sangue derramado é o resultado do erotismo desaparecido.
Todavia, nunca saberemos de fato porque Ulisses preferiu matar pretendentes que simplesmente mandar seus homens prendê-los e usar seu tempo para ficar com Penélope. Mas, talvez, ele tenha ficado com medo de encontrar Penélope bem peluda em meio às coxas, e ele, já completamente moderno, não conseguiria mais tolerar isso.
6. Nossa volta para casa
A cada dia que voltamos de viagem, não vamos para cama com a mulher que queremos, mas nos dirigimos de novo para o lugar de onde nunca saímos: o Google. Sem ele não estamos em lugar algum! Sem ele, nossas subjetividades maquínicas não seriam subjetividade alguma. Se em um pequeno momento saímos da rede para encontrar corpos, então exigimos das mulheres que, enfim, serão o objeto de nossos jorros de esperma, que não tenham pelos, que sejam tão lisas quanto a tela do celular, que sejam tão simplórias quanto a simplicidade do algoritmo. Se o esperma não desliza, mas gruda, como saberíamos que fizemos algo? Todos vivemos na sociedade glabra.
As mulheres exigem de nós algo semelhante, de modo que os homens começam a se depilar. Não raro, elas dizem: “cale a boca e me beije”. E logo descobrem que não podem conviver com homens de boca calada, pois eles não sabem beijar. Boa parte das mulheres que não se adaptam à inapetência juvenil masculina ao sexo, procuram homens mais velhos. Mas os mais velhos, exatamente por serem mais velhos, desaparecerão. As mulheres se adaptarão ao mundo do amor descorporalizado, o pseudo-amor?
Há quem diga que sim. As mulheres estão se transformando em homens na precarização igual imposta pelo capitalismo neoliberal. O segundo passo dado pelas mulheres é o de se masculinizarem não no sentido dos homens mais velhos atuais. Elas se masculinizam imitando os rapazes de classe média, já completamente desinteressados em sexo-amor, a geração que se tornou cansada do sexo, exatamente a geração que parece que faz sexo por obrigação. Nesse caso, não raro, essas mulheres acabam criminalizando qualquer iniciativa masculina de abordá-las, até as mais doces, honestas inteligentes. A deserotização que é, na verdade, o mal uso corpo, tem sua face de crueldade, fruto da insensibilidade. Ela acolhe a violência e a crueldade, como no final da viagem de Ulisses.
Notas :
1 – Subjetividade maquínica: seguindo os textos de Deleuze e Guattari, os pensadores ligados ao pós-operaísmo italiano, como Toni Negri e Maurízio Lazzarato, o próprio Berardi e outros, tem utilizado e popularizado essa expressão.
3 – Berardi, F. Regina. Depois do futuro. São Paulo: Ubu Editora. Edição do Kindle, p. 140.
4 – Han, B.C. A salvação do belo. Petrópolis: Vozes, 2019.
5- Han, B.C. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015, pp. 23-25.
7 – Ver: Crary, J. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo; Ubu, 2015.
8 – Breton, D. Desaparecer de si. Petrópolis: Vozes, 2018, pp. 11-12.
9 – Sobre isso ver: Ghiraldelli, P. Marx, Nietzsche e o valor. São Paulo: CEFA Editorial, 2021.
10 – Ghiraldelli, P. Para ler Sloterdijk. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017.
12- Ver: Ghiraldelli, P. O que é Dialética do Iluminismo. São Paulo: Manole, 2007.
Muito obrigado professor, leio todos seus artigos. Por favor continue postando e colocando as referências dos livros. Sigo suas referências literárias.
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